terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Apartheid de Israel na Palestina: crime contra a humanidade. Israel rejeita acusações

Um sistema de políticas montado para discriminar palestinianos e respostas desproporcionadas aos protestos. A Amnistia acusa Israel de apartheid e crimes contra a humanidade. Israel rejeita com veemência.

Ricardo Alexandre | TSF

O sumário executivo do relatório da Amnistia Internacional (AI), que resulta de um trabalho de cinco anos, começa assim: "Israel não é um estado de todos os seus cidadãos... [mas sim] o estado-nação do povo judeu e apenas deles".

A mensagem foi publicada online em março de 2019 pelo então primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Em maio do ano passado, palestinianos em cidades e aldeias de Israel e na Cisjordânia ocupada e na Faixa de Gaza fecharam escritórios, lojas, restaurantes e escolas, abandonaram obras e recusaram-se a comparecer ao trabalho durante todo o dia. Numa demonstração de unidade que não se via há décadas, "desafiaram a fragmentação territorial e a segregação que enfrentam" diariamente e fizeram uma greve geral para protestar contra a repressão por parte de Israel.

O relatório da Amnistia dá conta da crise e protestos desencadeados pela tentativa de despejo de famílias palestinianas do bairro de Sheikh jarrah, em Jerusalém Oriental, dizendo que as forças de segurança israelitas "responderam aos protestos com a mesma força excessiva que vêm usando há décadas para reprimir a dissidência palestiniana. Prenderam manifestantes pacíficos arbitrariamente, lançaram granadas de atordoamento contra multidões, dispersaram-nos com força excessiva e tanques de água e dispararam granadas de flash contra fiéis e manifestantes reunidos no complexo da mesquita de Al-Aqsa".

A Amnistia Internacional considera que as forças policiais israelitas "orquestrou uma campanha discriminatória contra cidadãos palestinianos envolvendo prisões arbitrárias em massa e força ilegal contra manifestantes pacíficos, enquanto falhava em proteger os palestinianos de ataques organizados por atacantes judeus após o surto de violência intercomunitária". Hostilidades armadas eclodiram a 10 de maio, quando - refere a Amnistia - "grupos armados palestinianos dispararam roquetes indiscriminadamente contra Israel a partir de Gaza". Israel, assinala a organização de defesa dos direitos humanos, respondeu de forma, desproporcionada, mais uma vez: "com uma implacável ofensiva militar de 11 dias contra o território, visando residências sem aviso prévio eficaz, danificando infraestruturas essenciais, obrigando a deslocar dezenas de milhares de pessoas e matando e ferindo centenas de outras", lê-se no relatório.

Para Pedro Neto, diretor da Amnistia Internacional Portugal, na linha do que a organização recomenda internacionalmente, "são atos de opressão prolongada e institucionalizada que apontam sempre para as mesmas pessoas, ou seja, os palestinianos, seja lá qual for a sua realidade e o seu estatuto, isto é, sejam da Cisjordânia, da Faixa de Gaza, ou morem até em Jerusalém Oriental. É um sistema montado com políticas públicas, com leis e com práticas também dos militares, que nos levam a concluir que estamos perante um sistema de apartheid, que é um crime contra a humanidade e que tem que ser desmantelado o quanto antes e drasticamente, pois esta é uma situação que já perdura há muitos anos", afirma, em entrevista à TSF.

Também ouvido pela TSF, o Embaixador de Israel rejeita de forma veemente o conteúdo e conclusões do relatório: "Em primeiro lugar, Israel rejeita este relatório e a falsa alegação da Amnistia Internacional. O relatório é uma coleção de mentiras. E, na verdade, copia relatórios de outras organizações anti Israel. O relatório nega ao Estado de Israel o direito de existir como um Estado do povo judeu. E devo dizer que é incrível ler tal relatório porque o estado de Israel é uma democracia forte e vibrante em que todos os cidadãos têm direitos iguais, independentemente da religião ou raça". Dór Shapira questiona: "Como se pode chamar Israel de estado de apartheid? Quando olha para o governo hoje, vê membros judeus e árabes no parlamento israelita, no governo israelita, também seculares e religiosos, pessoas com deficiência, imigrantes, LGBT, todos juntos no mesmo governo? Chamar Israel de estado de apartheid, é apenas uma mentira e com uma sentido de anti-semitismo."

O diplomata garante que o estado de israel não discrimina ninguém: "Israel foi fundado como um estado judeu que é aberto a todos e aceita todos os tipos de pessoas: Judeus, Árabes, Cristãos e Muçulmanos. Todos podem fazer parte com direitos iguais dentro do Estado de Israel e ter os mesmos direitos. Foi assim que o nosso Estado de Israel foi formado."

O relatório, de 182 páginas e ao qual a TSF teve acesso, intitulado "Apartheid de Israel contra os Palestinos: Sistema Cruel de Dominação e Crime contra a Humanidade", documenta como as "prisões massivas de palestinianos, confisco de terras e propriedades, assassinatos ilegais, despejos forçados, restrições drásticas de movimento e a negação de nacionalidade e cidadania aos palestinos são todos componentes de um sistema que equivale ao apartheid sob o direito internacional", com base no Estatuto de Roma e na Convenção do Apartheid. Um sistema de apartheid é um regime institucionalizado de opressão e dominação por um grupo racial sobre outro. É uma grave violação dos direitos humanos que é proibida pela lei internacional. A investigação e análise jurídica da AI, realizadas em consulta com especialistas externos, demonstram que Israel aplica tal sistema contra os palestinianos por meio de leis, políticas e práticas que asseguram um prolongado tratamento discriminatório e cruel. Pedro Neto afirma que este crime deve ser "investigado e drasticamente desmantelado e por várias entidades".

A Amnistia sustenta as suas conclusões com base em medidas decretadas pelas autoridades israelitas "para negar deliberadamente aos palestinianos os seus direitos e liberdades básicos, incluindo restrições draconianas de movimento nos territórios palestinianos ocupados, subinvestimento discriminatório crónico em comunidades palestinianas em Israel, e a negação do direito de regresso dos refugiados. O relatório também documenta a transferência forçada, detenção administrativa, tortura e assassinatos ilegal", tanto em Israel, quanto nos territórios sob jurisdição da autoridade palestiniana.

A Amnistia Internacional (AI) considera que esses atos fazem parte de "um sistemático e amplo ataque dirigido contra a população palestiniana, e são cometidos com a intenção de manter o sistema de opressão e dominação. Constituem, portanto, apartheid", ou seja, "crime contra a humanidade de apartheid".

AI pede ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que considere crime de apartheid na sua atual investigação nos territórios palestinianos ocupados e apela a todos os estados "para que exerçam jurisdição universal para levar à justiça os perpetradores de crimes de apartheid". O relatório da Amnistia considera revelar a verdadeira extensão do regime de apartheid de Israel. Quer vivam em Gaza, Jerusalém Oriental, Hebron ou no próprio território de Israel, "os palestinos são tratados como um grupo racial inferior e sistematicamente privados dos seus direitos". A organização condena "as políticas cruéis de Israel de segregação, expropriação e exclusão em todos os territórios sob seu controlo", o que considera equivaler claramente ao apartheid.

"Não há justificação possível para um sistema construído em torno de uma prolongada opressão, institucionalizada e racista, de milhões de pessoas. O Apartheid não tem lugar no nosso mundo, e Estados que optam por fazer concessões a Israel encontrar-se-ão do lado errado da história". Os governos que continuam "a fornecer armas a Israel e a protegê-lo de prestação de contas na ONU" estão a apoiar, revela a AI, um "sistema de apartheid, minando a ordem jurídica internacional e exacerbando o sofrimento do povo palestiniano", pode ler-se no extenso relatório da organização.

Estas revelações têm por base um crescente corpo de trabalhos teóricos e de campo de palestinianos, israelitas e ONGs locais e internacionais, que têm aplicado cada vez mais a estrutura do apartheid à situação em Israel e nos territórios palestinianos ocupados. Há cerca de vinte anos que os palestinianos fazem lóbi pelo reconhecimento internacional das práticas israelitas como apartheid, mas os estados, "particularmente os aliados ocidentais de Israel, têm rejeitado atender a esses apelos e sempre se recusaram a tomar qualquer ação significativa contra Israel." Enquanto isso, organizações palestinianas e defensores de direitos humanos que lideram os esforços da campanha anti apartheid "enfrentam a crescente repressão israelita como punição pelo seu trabalho".

Para os palestinianos, viajar dentro dos próprios territórios é "difícil, demorado e subordinado às considerações estratégicas israelitas que favorecem os colonatos judaicos e a sua infraestrutura associada", acabando por perpetuar um "sentimento de impotência e dominação no quotidiano" da sua população.

Neto reitera que não se trata apenas, como se já pouco fosse, "de um sistema de opressão a partir de políticas públicas ou das leis do poder legislativo. Tem que ver também com práticas militares. Muitos palestinianos têm até vários cartões de identificação - e isto em si acaba por limitar as movimentações - e um deles, o green card, diz que "o portador deste cartão é um assunto militar. Compete às autoridades militares e nem sequer às autoridades civis".

É uma realidade que incide sobre os palestinianos, particularmente depois do início da segunda intifada em 2000, restrições que, segundo a Amnistia Internacional continuam em vigor de várias formas. O sistema de clausura "inclui uma rede de centenas de postos de controlo militares israelitas", cancelas em estradas, além de "estradas bloqueadas e um sinuoso muro (cerca)". O muro de 700 km, que Israel construiu em terras palestinianas dentro da Cisjordânia ocupada, isolou 38 localidades e sensivelmente dez por cento da região que, do ponto de vista político formal, é governada pela Autoridade Palestiniana. Nestas zonas, os residentes "têm de obter autorizações especiais de entrada e saída das suas casas e adquirir autorizações diferentes para aceder às suas terras agrícolas".

Por outro lado, os palestinianos no resto da Cisjordânia permanecem "sujeitos ao regime militar de Israel e ordens militares draconianas adotadas desde 1967". A grande maioria dessas ordens não se aplica à Faixa de Gaza depois que Israel removeu a maioria dos aspetos de regime militar com a retirada dos colonos em 2005. Mas ainda que Embora Israel não apreenda mais casas e terras de palestinianos em Gaza, usa força letal ilegal para controlar e restringir os seus movimentos na "zona tampão" ou "zona de segurança" que separa o território de Israel e uma área marítima de acesso restrito na costa de Gaza. De acordo com organizações de direitos humanos, a "zona tampão" estende-se a uma distância entre 300 e 1.500 metros do "muro" e cobre um total de cerca de 62 quilómetros quadrados, perto de de 17% da área total da Faixa de Gaza. Abrange mais de 35% das terras agrícolas em Gaza. Enquanto isso, a área marítima de acesso restrito cobre 85% das águas de pesca palestinianas.

Em Jerusalém, os palestinianos recebem um estatuto de residência permanente frágil que lhes permite residir e trabalhar na cidade e desfrutar de benefícios sociais fornecidos pelo Instituto Nacional de Seguros de Israel e pelo seguro nacional de saúde. Sob legislação e políticas discriminatórias, no entanto, as autoridades israelitas revogaram esse estatuto a milhares de palestinos, inclusive retroativamente, se não conseguirem provar que Jerusalém é seu "centro de vida". Em contraste, os colonos judeus israelitas em Jerusalém Oriental gozam de cidadania israelita e estão isentos de leis e medidas decretadas para os palestinianos ali residentes.

As autorizações de residência, trabalho, circulação, acesso à terra para fins agrícolas multiplicam as exigências a que milhares de palestinianos são sujeitos, naquilo que o relatório da Amnistia considera um "regime militar, burocratizado e arbitrário, que apenas se aplica aos palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Não se aplica aos colonos judeus, aos cidadãos israelitas ou estrangeiros, que geralmente têm liberdade de movimentos no interior da Cisjordânia e entre a Cisjordânia e Israel", escreve-se no relatório.


O diplomata israelita em Lisboia contesta as alegações do relatório da AI, não aceitando a ideia de que haja uma espécie de regime militar de vistos que limita de forma substancial a liberdade de movimentos da população palestiniana nos territórios palestinianos e em israel. "não há nenhum regime militar em Israel, o relatório não fala apenas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Fala também de dentro de Israel, o que é totalmente absurdo, porque toda as pessoas que vivem em Israel têm direitos iguais. Em relação à Faixa de Gaza e à Cisjordânia, essa é uma disputa que Israel tem com a Autoridade Palestiniana, e com a organização terrorista que tomou conta da Faixa de Gaza, e isso é algo que está a ser resolvido e está a ser negociado, que não tem nada a ver com o relatório". Argumenta o representante do estado judeu na capital portuguesa, em declarações à TSF, que a Faixa de Gaza, é uma área da qual "uma organização terrorista tomou conta, o Hamas e de lá lidera a sua gente, lançando rockets em direção a Israel. E hoje, dentro da Faixa de Gaza, não há nenhum israelita. Nós já nos retirámos da Faixa de Gaza em 2005. Então, penso que o relatório apenas mistura coisas que não têm nada a ver com aquilo de que estamos a falar, e apenas espalha mentiras e ódio. E devo concluir que infelizmente, não é surpreendente que, enquanto Israel está ocupado em promover a paz na região com os nossos vizinhos, uma organização internacional na Europa está ocupada em promover mentiras e ódio puro". Tão pouco Dór Shapira aceita as acusações de que a resposta de Israel aos protestos e ações dos palestinianos é, frequentemente, bastante desproporcionada: "Não, não aceito", refere, porque "quando uma organização terrorista lança rockets contra civis, acho que é direito do governo desse estado agir e garantir que essas ameaças contra os civis sejam interrompidas imediatamente".

Desde 1948, Israel demoliu dezenas de milhares de casas e outras propriedades palestinianas em todas as áreas sob sua jurisdição e controlo efetivo. Os mais afetados são algumas das comunidades mais pobres e marginalizadas da sociedade israelita e palestiniana, muitas vezes refugiados ou deslocados internos, que são forçados a depender da família e de atores humanitários para abrigo e meios de subsistência. As provas da investigação da Amnistia sugerem que "a maior parte da destruição não foi justificada por necessidade militar e representou violações do direito internacional humanitário. Consideradas no contexto do sistema de opressão e dominação, as violações contribuem para a manutenção desse sistema de apartheid".

Sobre a constante resposta israelita desproporcionada aos protestos palestinianos, Pedro Neto denuncia, na entrevista à TSF, "escolas destruídas, famílias desfeitas, crianças mortas. É aquilo que é mais chocante é que não há uma criança que não tenha um primo ou um irmão que já morreu, muitas vezes em episódios em que estão a jogar futebol na praia e caem bombas". Também as condições económicas, refere o dirigente da AI, nomeadamente das pessoas que vivem na Faixa de Gaza, "como é um território tão estreito, tão densamente povoado, como está completamente isolado e o governo de Israel controla tudo o que entra e o que sai, a vida economicamente falando, é muito mais difícil". Além de que o trabalho agrícola é, amiúde, devastado, uma vez que "vêm as retroescavadoras e destroem tudo", sejam estufas ou terras agrícolas dos palestinianos. "Isto mantém-nos na pobreza, mantém-nos à fome", refere Pedro Neto. "Todo o abastecimento do sistema de gás e de água é controlado pelo governo israelita, frequentemente no verão a água é cortada, frequentemente no inverno o gás é cortado", denuncia. O dirigente reitera que se trata de "uma forma sistemática, prolongada e institucionalizada para tratar os palestinianos como pessoas inferiores, com um estatuto menor, que nem sequer é o de cidadania, e para os desencorajar cada vez mais a habitarem ali e manifestarem a sua identidade".

Nas recomendações do relatório, a Amnistia entende que "todos os governos e atores regionais, particularmente aqueles que mantêm relações diplomáticas estreitas com Israel, como os EUA, a União Europeia e seus estados membros e o Reino Unido, mas também os estados que estão em processo de estreitamento dos seus laços - como alguns países árabes e Estados africanos - não devem apoiar o sistema de apartheid ou prestar ajuda ou assistência para manter tal regime", devem sim cooperar para pôr fim a uma situação ilegal. Desde logo, reconhecendo que "Israel está a cometer o crime de apartheid e outros crimes internacionais e usar todas as ferramentas políticas e diplomáticas para garantir que as autoridades israelitas implementem as recomendações descritas neste relatório". A Amnistia Internacional também reitera o seu apelo de longa data aos Estados para que "suspendam imediatamente o fornecimento, venda ou transferência direta e indireta de todas as armas, munições e outros equipamentos militares e de segurança, incluindo o fornecimento de treino e outras assistências militares e de segurança".

A ONU, em particular, deve tomar todas as medidas, segundo a AI, "para garantir razoavelmente os direitos dos palestinianos violados pelo sistema de apartheid" instituído no país e nos territórios palestinianos ocupados (TPO), convocando as Nações Unidas a "pressionar o governo de Israel para desmantelar o sistema de opressão e dominação e garantir remédios e reparações individuais a todos aqueles cujos direitos foram violados". O relatório conclui dizendo que "desmantelar este terrível sistema de apartheid é essencial para os milhões de palestinos que continuam a viver em Israel e os TPO, bem como pelo regresso dos refugiados palestinianos que continuam deslocados na região, para que possam desfrutar dos seus direitos humanos básicos livres de discriminação."

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