terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Angola | SÃO PEDRO DA BARRA -- Artur Queiroz

 Artur Queiroz*, Luanda

A Fortaleza Escavada nos Rochedos

Luanda, a cidade das fortalezas, tem em São Pedro da Barra uma das fortificações mais singulares. É a única que não foi construída na totalidade pelos portugueses, mas pelos holandeses, que decidiram construir o forte na falésia. A bateria inferior foi escavada por prisioneiros, à picareta, nos rochedos que se erguem do mar. E lá montaram artilharia suficiente para impedir a entrada de navios hostis aos ocupantes. O local escolhido foi o Morro de Kassandama. 

Salvador Correia de Sá e Benevides expulsou os holandeses e a fortaleza foi abandonada. Mas em 1703, o Nobre Senado da Câmara de Luanda, que governava a colónia, por morte do capitão general e governador Bernardo de Távora, resolveu criar uma bateria superior, “a olhar para terra” e mandou fazer as muralhas actuais, de pedra e cal.

Durante quase quatro anos, a metrópole nem sequer se dignou enviar o substituto do defunto Bernardo de Távora. A lei determinava que no impedimento do capitão general e governador nomeado pela metrópole, o Senado da Câmara devia assumir o governo da colónia. E assim foi durante quase quatro anos. As obras de edificação das muralhas de São Pedro da Barra demoraram três anos e foram pagas exclusivamente pela Câmara de Luanda.

Os documentos da época dão nota que o forte “fica a uma légua da cidade de Loanda” e do lado de terra há duas colinas, no tempo cobertas de cajueiros e excelentes pastagens. Numa das colinas há uma fonte de água sulfurosa, a Fonte de Kassandama. Os jesuítas fizeram a exploração dessas águas termais. Mas só mais tarde, já com a administração portuguesa restaurada, foi construído um canal de telhas de meia cana e tijolos, que transportava a água até às proximidades da esplanada da fortaleza. A bica corria para um grande tanque onde o gado bebia e os camponeses se abasteciam de água para consumo e para rega das plantações. 

Os padres jesuítas construíram ao lado de São Pedro da Barra um hospício que acolhia todos os loucos que vagueavam pelas ruas de Luanda. Muitos eram criminosos condenados ao degredo e que devido aos maus-tratos e à sífilis acabavam por enlouquecer. O hospício e a prisão do forte de São Pedro da Barra também serviram como centros de detenção dos hereges e sobretudo daqueles que atentavam contra os “bons costumes” promovendo a feitiçaria, os chamados xinguilas.

“A porta principal da fortaleza de São Pedro da Barra foi aberta na parede interior do reparo”. E lá foi colocada uma lápide com esta inscrição: “D. Pedro II rei de Portugal e da Etiópia mandou fazer este forte, e o fundou o Nobre Senado da Câmara, governador e capitão general destes reinos. Ano de 1703”. A lápide ignora os holandeses, verdadeiros fundadores da fortaleza, como atestam todos os documentos da época e que o general Francisco Xavier Lopes confirma, no seu relatório produzido em 1846, após uma inspecção aos fortes de Luanda e de Angola.

O fiscal da Meia-noite

Passados 50 anos, a fortaleza de São Pedro da Barra estava praticamente arruinada. O governador e capitão general, D. António Álvares da Cunha (1753-1758), mandou restaurar o forte “quase desde o seu pé”.

O governador ia todos os dias ver o andamento das obras. O general Francisco Xavier Lopes faz esta referência pitoresca: “ele saía do Palácio depois da meia-noite para evitar o sol”. Os artífices tinham que trabalhar dia e noite. Mal começava a nascer o dia, o conde da Cunha recolhia ao Palácio e as obras continuavam à luz do dia.

Em 1772, o governador e capitão general D. António de Lencastre (1772-1779) resolveu dar melhor forma à bateria inferior, que olha para o mar. Foi rebaixada porque estava colocada a uma altura exagerada, o que levava a errar os tiros contra os navios piratas. Como esta é a bateria escavada nos rochedos da falésia, o trabalho foi penoso e demorado. As obras só ficaram concluídas no governo de D. José Gonçalo da Câmara (1779-1782). 

Nesta época, São Pedro da Barra passou a ser a peça principal na defesa da barra. E cruzava fogo com a fortaleza de Nossa Senhora da Flor da Rosa, construída na ponta da Ilha do Cabo. Mas não se trata do lugar onde está o farol ou o Ponto Final. Violentas calembas lamberam quase metade da Ilha e a fortaleza desapareceu! Nunca mais foi reconstruída.

Existe pouca informação sobre a fortaleza de Nossa Senhora da Flor da Rosa, mas um documento autêntico do século XVII, recolhido pelo sábio benguelense Augusto Bastos, dá conta que ela foi construída durante o governo do capitão general Henriques Jaques de Magalhães (1694-1697).

Esplendor e Decadência

A fortaleza de São Pedro da Barra teve o seu momento de esplendor em 1779 e nos anos seguintes. Mas em 1826 tinha apenas uma pequena guarnição comandada por um sargento de artilharia. O porto de Luanda ficou vulnerável e em 1826 foi restaurada a casa do governador, para lhe devolver a importância na defesa da cidade. Foi construído um amplo quartel para os soldados e um armazém para as munições e a pólvora. 

A fortaleza ficou com uma grande cisterna “com 27 pés e meio de comprimento, 14 pés e meio de largura e 16 pés de altura. A sua capacidade era de 760 almudes de água”. Os altos e baixos na vida do forte sucediam-se e em 1846 estava de novo tudo arruinado. Só nos anos 20 do século passado a fortaleza foi restaurada. Hoje está de novo em ruínas.

Ao lado direito da entrada foi construída, em 1826, a casa da guarda. Em meados do século XIX, esta dependência passou a ser uma prisão. Do lado oposto foi construída a ermida de São Pedro. Francisco Xavier Lopes escreve que se trava apenas de um oratório.

Fonte de Kassandama

Os jesuítas construíram nas imediações de São Pedro da Barra a Fonte de Kassandama. Enquanto os prisioneiros escavavam os rochedos para construir a bateria inferior que recebeu os canhões de defesa do porto de Luanda, ao lado, nascia uma obra que visava aproveitar as águas termais, que brotavam na encosta de uma colina próxima. A Companhia de Jesus tinha que abastecer o hospício, quase sempre cheio de loucos ou de hereges e infractores dos bons costumes.  

Na estrada de acesso, do lado dos morros, foi erguido outro forte que foi baptizado com o nome de Nossa Senhora da Conceição. Na inspecção feita pelo general Francisco Xavier Lopes, em 1846, esta fortificação ainda tinha três peças de artilharia montadas. Mas estava tudo arruinado. 

O governador-geral Bressane Leite ainda mandou rasgar uma estrada mais directa, em direcção ao forte de Nossa Senhora da Conceição. Mas ele morreu com os trabalhos a meio e o projecto foi abandonado pelos seus sucessores.

Águas Milagrosas

Na colina em frente à esplanada da fortaleza de São Pedro da Barra a fonte de água sulfurosa foi muito famosa na época. A ela se atribuíam qualidades curativas para algumas doenças, que iam da pele ao fígado! O governador Manuel Vieira Tovar (1819-1821) mandou explorar a nascente mas os trabalhos foram mal sucedidos.

 Em 1836, o governador Saldanha encarregou o major de engenharia Bernardino José da Costa de prosseguir os trabalhos e ordenou a construção de um canal para transportar a água até à esplanada das fortificações. Os trabalhos só foram concluídos no tempo do governador Vidal (1837-1838).

O canal foi assente em “tijolos burros” e era constituído por telhas de meia cana. A água servia para as guarnições dos fortes, para o hospício e o tanque era bebedouro do gado e servia para a rega das plantações. Alguns anos depois, o sistema estava muito degradado e a estrada de acesso à esplanada ficou praticamente intransitável. De tal forma que era penoso fazer deslocar as peças de artilharia.

Na área existia uma grande cerâmica que produzia tijolos, telhas e louças, sobretudo moringues. Era a principal unidade industrial no fornecimento de materiais para construção e utensílios domésticos em barro. Com a desactivação dos fortes e do hospício, a degradação foi imediata. E o cúmulo da decadência foi a venda, em leilão, da fonte de águas sulfurosas “ao negociante de Loanda Magalhães, que por ela deu 100 mil réis”. 

Grilhetas e Monangambas

A fortaleza de São Pedro da Barra tem a forma de um quadrado (bateria superior) com quatro meios baluartes, que constituem quatro frentes ligadas por cortinas. “A frente que olha para o mar tem três baterias”. 

A bateria inferior, escavada na rocha, foi guarnecida pelos holandeses com sete peças de artilharia, que “permitem ricochetear os navios que passarem a 600 pés de distância della”. Na época áurea tinha seis canhões Paixhans e artilharia de calibre 24 com balas incendiárias. A casa da guarda e o paiol de munições também foram escavados nos rochedos da falésia.

O pórtico tem apenas sete pés de altura. Na fachada existiam duas canhoneiras. nos flancos, uma. Na cortina, quatro. Ao todo eram dez bocas-de-fogo na bateria superior, que “olha para terra”. 

Em 1846, o forte de São Pedro da Barra tinha ao seu serviço, para tarefas civis, quatro prisioneiros com grilhetas (trabalhos forçados) e duas monangambas. “Limpavam o caminho, forneciam água à guarnição, quartel do governador e à prisão, cortavam e carregavam a lenha e iam à cidade de Loanda buscar comestíveis”.

Em 1961, este forte serviu de centro de detenção e de tortura. Muitos luandenses presos na sequência do 4 de Fevereiro passaram pela prisão da fortaleza. E há relatos de que alguns presos foram atirados vivos, da esplanada inferior para o mar. Estamos perto do 4 de Fevereiro. Uma forma de honrar os Heróis que se ergueram de armas na mão contra o colonialismo, é criar um Centro de Interpretação. A Fortaleza de São Pedro da Barra é a última etapa. Ali foram torturados e assassinados muitos revolucionários. Ninguém sabe quantos. Mas seguramente várias centenas.

Em 1974/1975, a Fortaleza de São Pedro da Barra voltou a ser utilizada como centro de detenção. Durante um curto período, forças estrangeiras ligadas à FNLA ocuparam o forte. Para lá foram levados centenas de luandenses que eram submetidos à tortura e depois mortos. Muitos eram lançados das muralhas para o mar. Chegou a hora de ser a etapa final do Centro de Interpretação do 4 de Fevereiro. Todos os anos vamos lá fazer uma vénia de reconhecimento aos nossos Heróis, criadores da matriz revolucionária que nos tem ensinado a viver desde a Luta Armada de Libertação Nacional até à Independência e à Guerra pela Soberania e Integridade Territorial.

* Jornalista

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