quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

LIBERDADE DE IMPRENSA AMEAÇADA EM CABO VERDE?

Investigação do Ministério Público a dois jornalistas e respetivos órgãos de comunicação continua a gerar críticas. Jurista diz estar-se perante "um ataque à liberdade de imprensa". Jornalistas pedem revisão da lei.

Em poucos dias, dois jornalistas e respetivos órgãos de comunicação foram constituídos arguidos pelo Ministério Público em Cabo Verde.

Hermínio Silves e o jornal online "Santiago Magazine" foram os primeiros indiciados. São acusados de crime de desobediência qualificada por, alegadamente, terem violado o segredo de justiça, com a divulgação de uma notícia sobre o processo da morte de um cidadão, em 2014, que envolve o atual Ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, na altura dirigente da Polícia Judiciária.

Seguiu-se o jornalista Daniel Almeida e o jornal "A Nação". Foram também constituídos arguidos, sem saberem os motivos. Mas, supõe-se que seja no âmbito do mesmo processo.

Jeremias Furtado, Presidente da Associação dos Jornalistas de Cabo Verde (AJOC), aponta o dedo ao Ministério Público, dizendo que constituir jornalistas e meios de comunicação arguidos é uma estratégia para silenciar a imprensa no país.

"Ficamos com medo, porque está-se aqui a abrir um precedente para, de agora em diante, calar todos os jornalistas e jornais que se enveredam para o jornalismo investigativo. Está-se a calar um jornalista e um órgão de comunicação social, o que é grave", diz Jeremias Furtado.

Alteração da lei

Segundo o artigo 112 do Código do Processo Penal cabo-verdiano, os jornalistas não estão vinculados ao segredo de justiça. No entanto, o artigo 113 afirma que qualquer pessoa pode ser acusada de desobediência qualificada, incluindo jornalistas, se divulgar processos em segredo de justiça.

Uma contrariedade que a AJOC quer que seja resolvida com a alteração da lei.

À DW, o Presidente da associação afirma "que é hora de ir atrás do legislador para influenciar que haja uma mudança nas leis para fazer cair o artigo 113 do Código do Processo Penal".

Isso mesmo pediu também a direção da AJOC ao Presidente José Maria Neves, esta quarta-feira (02.02), em audiência.

Em declarações aos jornalistas, também na quarta-feira, o chefe de Estado disse que está a acompanhar os casos "com muita serenidade e muita tranquilidade", que foi o que pediu também aos jornalistas, aos órgãos de comunicação social e a todos os cabo-verdianos.

"Nós somos um Estado de Direto democrático, o interesse público e a liberdade de imprensa devem, em todas as circunstâncias, prevalecer", sustentou. 

A Associação dos Jornalistas de Cabo Verde já denunciou aquilo que considera ser uma perseguição aos jornalistas a vários organismos internacionais e convocou, para esta sexta-feira (04.02), uma manifestação pacífica em prol da liberdade de imprensa no país.

No final de janeiro, em comunicado, o Comité de Proteção de Jornalistas pediu o fim da investigação a Hermínio Silves.

"Ataque à liberdade de imprensa"

Também em entrevista à DW, João Santos disse ver com preocupação a atuação do Ministério Público. O jurista considera estar-se perante "um ataque à liberdade de imprensa".

"Se tivermos em linha de conta a forma como o Ministério Público tem chamado para se pronunciarem em processos já em curso, jornalistas que, ao que parece, não são parte desses mesmos processos, e que as informações que trouxeram a público são fruto do seu labor investigativo, então o jornalista não pode estar incurso no crime de segredo de violação de justiça".

Para João Santos, o Ministério Público deveria focar-se no processo criminal que precisa ser esclarecido, ao invés de apontar as baterias para os jornalistas. "O que estamos a discutir, essencialmente, aqui, em Cabo Verde, é a morte de um indivíduo que ocorreu em circunstâncias pouco claras. E é sobre essa morte que todos nós queremos saber, as circunstâncias em que ela ocorreu", constata.

Entretanto, numa entrevista ao Jornal da Noite da Televisão de Cabo Verde (TCV), na quarta-feira, o Procurador-Geral da República, Luís José Landim, disse que o foco do descontentamento que este caso está a gerar deveria ser orientado para quem faz as leis no país e não para o Ministério Público.

"O Ministério Público e as autoridades judiciárias apenas se limitam a interpretar e a aplicar a lei que existe", afirmou Luís Landim, indicando que há dois processos diferentes neste caso, sendo um sobre a violação do segredo de justiça, em que já há arguidos constituídos.

"O jornalista aqui é apenas indiciado pelo crime de desobediência qualificada, não de violação do segredo de justiça (...). O foco não pode ser o Ministério Público, mas sim quem faz a lei", insistiu.

Ângelo Semedo (Praia) | Deutsche Welle

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