A gravidade da situação na Ucrânia vai para além da ameaça - alimentada pela NATO - de um confronto militar potencialmente catastrófico. Inclui igualmente equacionar o facto de o poder ucraniano, instalado pelos EUA, não só ter institucionalizado a presença de fascistas em zonas chave da governação como ter tornado o país um centro de treino, de apoio, de contactos e ligações entre organizações neonazis de todo o mundo.
A proliferação da ideologia
nacionalista branca nas forças militares e de segurança da Ucrânia, treinadas e
apoiadas pelo Ocidente, é um tema pouco estudado”, afirmava de Washington esta
semana o jornalista de investigação Oleksiy Kuzmenko. A revista norte-americana
Newsweek, nada suspeita de simpatizar com a Rússia, dedicava por estes dias uma
extensa reportagem e que aprofundava o alerta de Kuzmenko e os perigos que
supunha para a própria segurança dos EUA: “Um ano depois do assalto ao
Capitólio, a guerra da Ucrânia atrai a extrema-direita dos EUA à luta contra a
Rússia e a treinar para a violência em casa”, era o título da reportagem
assinada por Tom O’Connor e Naveed Jamali.
Para além das análises geopolíticas que tentam explicar a escalada da tensão
entre a Rússia e o Ocidente na fronteira ucraniana, nós que há anos estudamos a
extrema-direita, acompanhamos de perto os acontecimentos que se desenrolam
neste cenário. Fugindo do maniqueísmo e tentando concentrar-nos no nosso
objecto de estudo, temos alertado para o barril de pólvora que se está a formar
na Ucrânia, cujas análises usuais sobre o conflito muitas vezes ignoram ou
menorizam.
Já a BBC o alertara em 2014 durante os protestos de Maidan, quando o jornalista britânico Gabriel Gatehouse entrevistou vários neonazis que estavam na linha de frente do combate contra as forças de segurança ucranianas, antes do golpe consumado, e como, posteriormente, o novo governo apoiado pelo Ocidente reforçou os seus laços com vários destes grupos de extrema-direita.
“Desde a revolta de Maidan em 2014, o governo, o exército e as forças de segurança institucionalizaram nas suas fileiras antigas milícias e batalhões de voluntários vinculados à ideologia neonazi”, declarava recentemente Kuzmenko à Newsweek, citando como exemplo o Destacamento de Operações Especiais Azov, que foi estabelecido pelo Ministério do Interior da Ucrânia em 2014 e posteriormente transferido para a Guarda Nacional.
Oito anos depois, enquanto não cessaram os confrontos na região de Donbass, e às portas de um possível confronto entre Rússia e Ucrânia com a NATO pelo meio, nem todos os especialistas norte-americanos em geopolítica alinharam com o seu governo. Menos ainda quando a ameaça da violência e do terrorismo de extrema-direita é já considerada a principal ameaça interna do país.
Não são poucos os grupos e activistas neonazis europeus e norte-americanos (e também espanhóis) que visitaram a Ucrânia nos últimos anos para fazer contactos ou receber treino paramilitar. Alguns participaram inclusivamente na guerra no Donbass, inseridos maioritariamente no bando ucraniano, embora nas fileiras contrárias tenham sido detectados um ou neonazi ou de extrema-direita, especialmente de origem russa. Dentro da extrema-direita existe também um sector mais próximo das teses eurasianistas de Aleksandr Dugin, ou que acreditam que a aliança com a Rússia seria melhor do que com os nacionalistas ucranianos, que têm por detrás a NATO e os governos dos seus próprios países. Embora este sector seja minoritário, não pode ignorar-se que existe.
De facto, o próprio Dugin foi convidado por neofascistas espanhóis para dar
palestras no nosso país em mais de uma ocasião. No relatório recentemente
publicado pela Fundação Rosa Luxemburgo sobre a direita radical no Estado
espanhol, foi dedicado um capítulo à análise dos contactos dos neofascistas
espanhóis com os seus homólogos ucranianos e russos. Tentar enquadrar esse
conflito no eixo esquerda-direita não só é complicado como por vezes
impossível.
Para além das responsabilidades do governo ucraniano por ter institucionalizado
as milícias ultra-direitistas, não podemos ignorar que tanto a UE como a NATO
não só o sabem como também participaram activamente na sua formação. Kuzmenko
já em 2018 alertara que a Academia Europeia de Segurança (ESA), uma empresa com
sede na UE que oferece programas de treino avançado para profissionais de
segurança, forças da ordem e militares, havia treinado membros do Azov e
activistas neonazis vinculados a ataques ou acossos a ciganos ucranianos, pessoas
LGBT e activistas de direitos humanos, como o Tradição e Ordem, o Corpo
Nacional e a Milícia Nacional.
Há exactamente um ano, uma investigação da televisão pública catalã revelou a presença na Catalunha de um grupo com sede na Rússia ligado ao mundo das artes marciais mistas (MMA) apenas para brancos e organizações paramilitares estabelecidas na Ucrânia: o Programa de Treino Pai Natal (PPDM na sua sigla russa). Como podemos ver, os ecos do Oriente há muito chegam ao nosso país, embora poucas pessoas lhes prestem a atenção que deveriam ter.
Recentemente, em Setembro de 2021, o Institute for European, Russian and Eurasian Studies (IERES) da George Washington University publicava um relatório intitulado Grupo de extrema-direita montou casa no principal centro de treino militar ocidental da Ucrania, em que se demonstrava como a Academia Nacional do Exército, a principal instituição de ensino militar e um importante centro para a assistência militar ocidental ao país, era o lar de Centuria, uma autodenominada ordem de oficiais militares “tradicionalistas europeus” que têm os objectivos declarados de remodelar as forças armadas do país segundo linhas ideológicas de direita e defender a “identidade cultural e étnica” dos povos europeus contra os “políticos e burocratas de Bruxelas”.
A impunidade e as cumplicidade dos grupos de extrema-direita neste conflito não devem ser ignoradas, pois as suas repercussões, tal como alertam já especialistas em terrorismo, inclusivamente dos próprios Estados Unidos, acabarão algum dia por alastrar para além do conflito entre a NATO e a Ucrânia com a Rússia. Os neonazis que hoje veem ali uma oportunidade de treinar e actuar poderão um dia fazê-lo nos nossos respectivos países, como já o fizeram os jihadistas que participaram das guerras da Síria ou do Iraque. “Se não for controlado, pode afectar outros países ao proporcionar um espaço e permitir o crescimento de conexões com pessoas e grupos de ideias afins. (…) Os serviços de segurança ocidentais deveriam levar a extrema-direita muito a sério neste momento, por exemplo, em relação à possível infiltração neles dos referidos elementos “, alertam também Alex MacKenzie e Christian Kaurnet do Departamento de Política da Universidade de Liverpool e do Centro Internacional de Vigilância e Segurança, da Universidade de South Wales, respectivamente.
Já não se trata de nos posicionarmos com um ou outro lado neste conflito, mas
de procurar pela nossa própria segurança e as nossas próprias ameaças internas,
sobretudo quando o terrorismo de extrema-direita nunca foi levado a sério
As guerras não são nunca a melhor opção, e há sempre que defender outras formas de resolução de conflitos. Este conflito, como todos os conflitos, tem numerosas leituras, mas para nós que nos dedicamos a estudar a extrema-direita, este cenário obriga-nos a alertar para o que se passa para além dos gabinetes e dos movimentos de tropas de ambos os lados daquela não tão distante fronteira.
Fonte: https://blogs.publico.es/dominiopublico/42714/el-polvorin-neonazi-en-ucrania/
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