terça-feira, 1 de março de 2022

CRIAÇÃO DO HOMEM -- O Descobridor do Paraíso de Feti e Choya

Artur Queiroz*, Luanda

O primeiro homem nasceu no paraíso da Babaera acalentado pela mãe do Cunene e Cuanza. Para uns, caiu do céu aos trambolhões. Para outros, foi criado por Suku, a partir de um rochedo que ele pacientemente amoleceu. Com essa massa granítica fez Feti, o Adão dos angolanos que habitam o Planalto Central, até à região de Caconda. A primeira mulher, Choya, nasceu no leito do grande rio do Sul, gerada pelo Rei das Águas

No mosaico cultural do Cassai, desenhado e criado ao longo de milénios, o primeiro Homem é Congo, filho de Suku, que também lhe deu vida a partir de um rochedo. O rio nasce em Angola e corre centenas de quilómetros em direcção ao grande Zaire ou Congo, onde desagua. Mesmo ao lado, médios e pequenos cursos de água avançam pacificamente para a vertente do Zambeze e lá vão para Oriente. Por esses caminhos foram os filhos dos nossos ancestrais, povoando todo o Mundo.

O paraíso que recebeu o primeiro Homem fica situado a 75 quilómetros da cidade do Huambo, na estrada que liga ao Lubango. Nos anos 50, um professor primário, Júlio Diamantino Moura, descobriu o Éden angolano. Dava aulas na capital do planalto central, nessa época ainda uma estação ferroviária. Nas férias escolares, arranjava uma equipa de ajudantes e explorava os rios da região, à procura de pepitas de ouro. Nessa actividade esquadrinhou o curso do rio Cunene desde a sua nascente até à Huíla. Um dia encontrou o paraíso.

Num texto colorido e empolgante, ele contou, no boletim do Instituto de Angola, como descobriu a casa de Feti, o primeiro Homem. Andava à procura de ouro, junto ao Cunene, a 75 quilómetros da cidade do Huambo. Na hora de descanso no acampamento, ao início da noite, um elemento da equipa, nascido na região, contou quase em segredo que ali estava o “princípio de tudo” (Feti). E a lenda tornou-se real. Por trás de uma densa barreira vegetal, era o Éden. O princípio da Humanidade. A nossa casa.

No dia seguinte, Júlio Diamantino Moura decidiu explorar o território por trás da densa barreira vegetal. Os ajudantes não queriam acompanhá-lo. Tinham uma razão de peso. No paraíso existe um rochedo, conhecido na região como a Pedra da Água. Quem olhava para a rocha ou lhe tocava, era imediatamente fulminado pela morte.

O professor primário não se comoveu com a lenda e marchou para o paraíso. Os ajudantes, timidamente, acompanharam-no. E encontraram algo extraordinário. Júlio Diamantino Moura descreve no seu texto um grande espaço com a dimensão de um campo de futebol, coberto de cinza. E ossadas de pessoas e animais, mais ou menos encobertas. 

Numa das extremidades, o paraíso de Feti tinha uma pirâmide de pedra, desmantelada até quase metade da altura. As pedras que faltavam na construção estavam despalhadas na zona. Muito perto, corre lentamente o Cunene. 

Júlio Diamantino Moura durante três anos explorou a casa de Feti. Descobriu que por baixo da pirâmide existiam galerias que entretanto foram assoreadas, o que não permitia a circulação de pessoas. Durante dias e dias, o professor primário e seus ajudantes desobstruíram as galerias e fizeram achados interessantes. Algumas flechas com ponta de ferro, alfaias agrícolas muito antigas, mas também enxadas da época. Apenas estavam cobertas de ferrugem. 

Todos esses materiais foram desenterrados e levados para o Huambo. As investigações de Júlio Diamantino Moura estavam autorizadas pelas autoridades locais e ele reportava todas as suas descobertas. Porque havia a suspeita de que existia ali um tesouro fabuloso!

 O Rei Lobengula

Lobengula, o rei dos Matabeles, em 1893 revoltou-se contra os ingleses. À frente dos guerreiros Ndebele e Shona, enfrentou os ocupantes. O Império Britânico tremeu. A guerra foi travada entre 1893 e 1897, na área do actual Zimbabwe. 

As tropas de Lobengula tinham armas rudimentares e os ocupantes estavam bem armados. A derrota foi inevitável. O soberano retirou e entrou no território que é hoje a província do Cunene. Em Xangongo foi subindo o curso do rio, até Galangue. Trazia com ele um tesouro fabuloso, de marfim, pedras preciosas e ouro.

Quando chegou ao paraíso, resolveu enterrar as riquezas. Depois matou um a um, todos os que conheciam o local. Para sinalizar o sítio, mandou construir a pirâmide. Como disfarce, ao lado, foi criado um campo de sacrifícios aos deuses, o que justifica as ossadas de pessoas e animais. A construção de pedra seria uma espécie de Totem. 

O rei Lobengula desapareceu sem deixar rasto. Ninguém, desde então, sabe para onde foi. Mas os sobreviventes dos massacres dos ingleses ali construíram as suas casas, criaram gado, cultivaram a terra e alimentavam-se da abundante caça que ainda hoje existe.

Faraó exilado

Júlio Diamantino Moura descobriu outra versão. A pirâmide continua a ser um ponto de referência e um local sagrado, mas foi mandada construir por um faraó do Egipto, deposto pelo irmão.

O soberano conseguiu reunir muitas riquezas e fugiu acompanhado do seu séquito e protegido por guerreiros ferozes dispostos a tudo, para defenderem o seu Faraó. Desceram África até ao paraíso de Feti. As riquezas foram enterradas e um número restrito dos seus colaboradores sabia que a pirâmide era o ponto de referência do tesouro enterrado.

O professor primário foi desobstruindo as galerias, uma a uma, mas não encontrou qualquer tesouro. Escavou novas galerias, foi esventrando a terra à volta da pirâmide mas além das alfaias agrícolas e das flechas com ponta de ferro, nada encontrou. Se existia um tesouro, ele foi levado por outros. Mas Feti é em si um tesouro extraordinário, à espera de ser apreciado e desvendado como uma preciosidade da Cultura Angolana.

Em 1926, um nobre egípcio descendente do Faraó exilado, pediu autorização ao Governo-Geral de Angola para caçar a Palanca Negra Gigante, na época abundante naquela parte do curso do Cunene. Entrou em Angola pera fronteira da Zâmbia, com uma dezena de viaturas de carga e todo-o-terreno. Perto da Pirâmide, ao saltar um riacho desequilibrou-se caiu. A arma que levava disparou-se acidentalmente. Teve morte imediata. A Pedra da Água não admite intrusos!

Revolucionários brasileiros

Antes do Grito do Ipiranga no Brasil, sucediam-se revoltas dos patriotas brasileiros que exigiam a independência da colónia. Alguns revolucionários de Minas Gerais foram condenados ao degredo perpétuo em Caconda. Conhecedores das técnicas de exploração mineira, começaram a garimpar ouro no Cunene. 

Grandes quantidades de ouro foram amealhadas e os garimpeiros resolveram enterrar esse tesouro num local próximo da pirâmide desmantelada que ainda hoje está visível e pode ser visitada. 

Quando o Brasil se tornou independente, os revolucionários foram perdoados e reabilitados pelo imperador D. Pedro. Antes de regressarem à pátria, foram desenterrar o ouro e levaram-no. Só ficaram as enxadas e outras ferramentas do garimpo, encontradas pelo professor primário, Júlio Diamantino Moura.

Uma coisa é certa: a pirâmide junto ao rio Cunene, na época ficava a dois dias de viagem de Caconda, a pé. Muito perto.

Comerciante Pedro Lota

O “Jornal de Benguela”, em 1925, publicou uma história empolgante sobre o nosso paraíso e a pirâmide desmantelada. Segundo o repórter, o comerciante benguelense Pedro Lota percorria os sertões entre o litoral e o interior, na sua tipóia. A mercadoria era levada às costas, por dezenas de carregadores. O pumbeiro (ou pombeiro) ia de Benguela ao Chongorói, Quilengues, Lubango, Caconda, Babaera, Huambo e Bié.

Nas suas actividades comerciais descobriu uma mina de ouro no paraíso de Feti. Passava lá grandes temporadas e mandava o ouro para a sua casa comercial de Benguela, dissimulado nas bolas de cera. Acumulou uma fortuna incalculável. O ouro era armazenado em galerias e a pirâmide foi construída como referência dos armazéns.

Júlio Diamantino Moura descarta esta possibilidade. O comerciante Pedro Lota existiu mesmo e era riquíssimo. Mas no paraíso de Feti e de Choya não existe qualquer indício de ouro.

Rei das Águas e Sereias

O que existe é uma queda de água belíssima. As águas do Cunene despenham-se de 30 metros e além da catarata há uma ilha formosa com 200 metros de comprimento e 50 de largura. Mesmo sem o primeiro Homem, é um verdadeiro paraíso. 

Nesse ambiente bucólico, muito para baixo do fundo do rio, fica o palácio do Rei das Águas e a ilha é povoada de sereias. Choya foi a primeira de todas e é a mãe de Cacanda, Galalangue e Bié. A primeira mamã de todos nós. Foi ali que Feti casou e de lá desapareceu para abrir todos os caminhos.

Choya ficou e morreu de velhice, muito perto da pirâmide, num grande espaço delimitado por quatro frondosas songues. As várias tonalidades de verde são o seu manto natural. Os angolanos têm pai e mãe.

*Jornalista

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