domingo, 13 de março de 2022

Portugal | A CONDENAÇÃO DE RICARDO SALGADO

Cândida Almeida* | Jornal de Notícias | opinião

Ricardo Salgado foi condenado a pena única de seis anos de prisão, em cúmulo jurídico de três penas parcelares de quatro anos de prisão, pela prática de três crimes de abuso de confiança. A sentença ainda não transitou, dela naturalmente serão interpostos recursos.

Nesta fase, e com o conhecimento rudimentar do conteúdo da decisão, três apontamentos a registar: o primeiro resulta dos factos e dos crimes pelos quais foi condenado. Daqui se pode concluir que esta matéria nada tem a ver com o chamado processo Marquês, não tinha que dele fazer parte, porquanto nada tem a ver com os crimes de corrupção activa e passiva, estabelecidos como objectivo da investigação. Os factos de um e de outro não se interligam, não existe qualquer rede de comparticipação e co-responsabilidade criminal entre eles. Esperemos que não se verifiquem outras situações semelhantes no conjunto dos milhares de volumes, dezenas de arguidos, centenas ou milhares de outros meios de prova carreados para aquele processo e que afinal nada têm a ver com ele. É esta confusão e tendência para acrescentar factos e agentes que não estão na mesma esfera de investigação que ocasiona o mal-estar contra os megaprocessos. Estes são imprescindíveis, não divisíveis, quando em causa estão teias entre vários arguidos e vários factos criminosos cometidos na sequência uns dos outros. Não é o caso da presente condenação, cujo processo deveria ter sido instaurado autonomamente. Em minha opinião, andou mal o MP. O segundo apontamento reporta-se à pena de seis anos de prisão. Considerando a gravidade dos factos, as consequências negativas provocadas, a responsabilidade de um banqueiro prestigiado como ele era acrescenta-lhe uma responsabilidade criminal especial, que esta pena não reflecte. Só a situação de doença e a sua idade podem justificar a bondade da decisão. As penas superiores a cinco anos de prisão são sempre efectivas. As penas de prisão parcelares aplicadas tiveram em consideração por força de lei a culpa do arguido, o dolo e o modo de execução, as exigências da prevenção e todas as circunstâncias que militem a favor e contra o arguido. Mais uma vez, a benevolência destas penas deve ter resultado da sua saúde precária e idade. O cúmulo jurídico na pena única de seis anos resulta da ponderação e das razões que levaram à aplicação das penas parcelares, não resultando dessa análise um desvalor de tal modo expressivo que exigisse o agravamento excessivo da medida única que deve ser imposta. Ou seja, nesta hão-de ser considerados o conjunto dos factos cometidos e a personalidade do agente. O terceiro apontamento refere-se à não repercussão na execução da pena da doença de Alzheimer de que padece o arguido. Sabendo-se que esta é uma doença neurológica degenerativa e evolutiva, que pode provocar uma percepção errada da realidade, necessariamente há que apurar, através de perícia adequada, o estádio actual da doença para efeitos de cumprimento da pena em estabelecimento prisional ou não.

*Ex-diretora do DCIAP

A autora escreve segundo a antiga ortografia

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