Roger McKenzie e Vijay Prashad | Mail & Guardian | Tradução de João Ventura
A maioria dos países que votaram contra a condenação da Rússia não o fizeram porque apoiem a guerra da Rússia na Ucrânia, mas porque reconhecem que a polarização é um erro fatal.
A guerra é uma das faces feias da experiência humana. Tudo nela é medonho. Ela é o acto mais óbvio de invasão e brutalidade, aspectos que sempre acompanham as suas operações. Nenhuma guerra é necessária; toda a guerra atinge civis. Cada acto de bombardeamento provoca um estremecimento neurológico na sociedade.
A Segunda Guerra Mundial deu mostra desse horror no Holocausto e no bombardeamento atómico de Hiroxima e Nagasaki. A partir do Holocausto e de Hiroxima, cresceram dois poderosos movimentos, um pela paz e contra os perigos de mais ataques nucleares, e outro pelo fim da divisão da humanidade e pelo não-alinhamento a essa divisão. O Apelo de Estocolmo de 1950, assinado por 300 milhões de pessoas, procurou um banimento absoluto das armas nucleares. Cinco anos depois, 29 países de África e da Ásia, representando 54% da população mundial, reuniram-se em Bandung, na Indonésia, para assinar um documento de dez pontos contra a guerra e pela “promoção dos interesses mútuos e a cooperação”. O espectro de Bandung orientava-se à paz e ao não-alinhamento, para que os povos do mundo centrassem os seus esforços em construir um processo de erradicação dos seus fardos históricos (analfabetismo, doença, fome) fazendo uso da sua riqueza social. Para quê gastar dinheiro em armas nucleares quando o dinheiro deveria ser gasto em salas de aula e hospitais?
Apesar dos grandes ganhos de muitas das novas nações que haviam emergido do colonialismo, a força esmagadora dos antigos poderes coloniais impediram que o espírito de Bandung definisse a história humana. Ao contrário disso, a civilização da guerra predominou. Essa civilização da guerra é revelada no maciço gasto de riquezas humanas na produção de forças armadas – suficiente para destruir centenas de planetas – e no uso dessas forças armadas como uma primeira opção para resolver disputas. Desde os anos 1950, o campo de batalha dessas ambições não foi a Europa ou a América do Norte, mas África, Ásia e América Latina – áreas do mundo onde a vida humana é menos importante para as retrógradas sensibilidades coloniais. Essa divisão internacional da humanidade – que prega que a guerra no Iémen é normal, ao mesmo tempo que a guerra na Ucrânia é terrível – é definidora dos nossos tempos. Há 40 guerras acontecendo em todo o mundo; é necessária vontade política para pôr fim a cada uma delas, não apenas àquelas que acontecem na Europa. A bandeira ucraniana é omnipresente no Ocidente; quais são as cores da bandeira iemenita, da bandeira saharaui ou da bandeira somali?
Regressar à Paz, regressar ao não alinhamento
Somos esmagados nestes dias com certezas que parecem cada vez mais irreais. À medida que a guerra da Rússia na Ucrânia continua, é fortalecida a desconcertante visão de que as negociações são fúteis. Essa visão circula até mesmo entre pessoas de mentalidade razoável, que concordam que todas as guerras devem acabar através de negociações. Se esse é o caso, por que não fazer um apelo por um cessar-fogo imediato, e construir a confiança necessária para avançar com negociações? Negociações só são viáveis se houver respeito de todas as partes, e se houver uma tentativa de entendimento do facto de que todos os lados num conflito militar têm causas razoáveis. Ou seja, pintar esta guerra como um capricho do presidente russo Vladimir Putin é parte do exercício da guerra permanente. Garantias de segurança à Ucrânia são necessárias, mas também são necessárias à Rússia, o que incluiria um regresso a um regime internacional de controlo de armas sério.
A paz não virá apenas porque a desejamos. Ela requer uma luta nas trincheiras das ideias e das instituições. As forças políticas no poder lucram com a guerra, por isso usam o seu chauvinismo para melhor representar os negociantes de armas que querem mais guerra, não menos. A essas pessoas, nos seus burocráticos fatos azuis, não devemos confiar o futuro do mundo. Elas falham connosco no que se refere à catástrofe climática; falham connosco quando se trata da pandemia; falharão connosco no que toca à construção da paz. Precisamos reavivar os velhos espectros da paz e do não-alinhamento para colocá-los em voga nos movimentos de massas, que são a única esperança desse planeta.
Não é um passo meramente sentimental voltar ao passado para dar vida ao Movimento dos Não-Alinhados hoje. As contradições do presente já levantaram o espectro do não-alinhamento em partes de África, Ásia e América Latina. A maioria desses países votou contra a condenação da Rússia não porque apoiem a guerra da Rússia na Ucrânia, mas porque reconhecem que a polarização é um erro fatal. O que necessitamos é uma alternativa aos dois campos mundiais da Guerra Fria. Esta é a razão pela qual os dirigentes de muitos desses países – do presidente chinês Xi Jinping ao primeiro-ministro indiano Narendra Modi, passando pelo presidente sul-africano Cyril Ramaphosa – fizeram um apelo, apesar das suas orientações políticas bastante divergentes, por uma superação da “mentalidade da Guerra Fria”. Eles já estão a dar passos em direcção a uma plataforma não-alinhada. É esse movimento da história que nos convoca a reflectir sobre um regresso aos conceitos do não-alinhamento e da paz.
Ninguém quer imaginar as implicações totais de um cerco à China e à Rússia pelos Estados Unidos e os seus aliados. Até países que são aliados próximos dos Estados Unidos – como a Alemanha e o Japão – reconhecem que se uma nova cortina de ferro for posta em redor da China e da Rússia, ela seria fatal para os seus próprios países. A guerra e as sanções já criaram sérias crises políticas nas Honduras, Paquistão, Peru, Sri Lanka, com a expectativa de mais crises à medida que os preços dos alimentos e combustíveis cresçam astronomicamente. A guerra é muito cara para as nações pobres. Os gastos da guerra estão a comer o espírito humano, e a própria guerra tem aumentado o sentimento de desespero dos povos.
Os belicistas são idealistas. As guerras deles não resolvem os maiores dilemas da humanidade. As ideias de não-alinhamento e paz, por outro lado, são realistas; elas dão resposta às crianças que querem comer e aprender, brincar e sonhar.
*Colaboração de João Ventura | Traduzido por João Ventura para Página Global
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