Artur Queiroz*, Luanda
A árvore que vejo da janela pode ser a minha última visão. A janela pode ser a antecâmara das cinzas, do pó e do nada. Este pensamento pode bem ser o último esforço para reconhecer o mundo como a minha casa. É uma manhã fresca de Abril! Lembrei-me então daquele poema de Gomes Leal, que me reconciliou com a minha aldeia do Bindo. Um sítio onde o ladrar dos cães e o cântico metálico dos galos é um hino à vida, só pode ser o paraíso.
Gomes Leal é um dos poetas mais
importantes de Língua Portuguesa. Uma voz singular que combinou o ultra
romantismo com o parnasianismo e o modernismo. Foi um tremendo jornalista. Fez
parte do jornal “Revolução de Setembro” e é um dos fundadores de “O
Século”. Quando Ladislau Batalha abandonou os projectos jornalísticos de
Alfredo Troni, ele que era a voz mais maldizente do celebrado “Mukuarimi”,
regressou a Lisboa no vapor
Ladislau Batalha encontrou na
capital portuguesa um homem andrajoso, coberto de feridas na cabeça e no rosto.
As roupas desfeitas mostravam chagas por todo o corpo. Era corrido a pontapé
das tabernas e a miudagem apedrejava-o. À noite dormia nos vãos das portas ou
nos bancos dos jardins. Era o poeta, jornalista, cronista e crítico literário
Gomes Leal, um dos poetas da minha vida e amigo de Batalha. Ele tirou-o da rua
e conseguiu interná-lo num asilo para indigentes. Um povo que vota
Abrir parêntesis. Na minha casa da Avenida do Hospital (Avenida do I Congresso do MPLA) juntavam-se alta noite e madrugada fora grandes amigas e amigos. Das FAPLA apareciam Rui de Matos e a então sua namorada Lígia Ribas (o casal mais apaixonado do mundo!), o comandante Katiana, comandante Ndozi e sua namorada Netita, o Armando Guinapo e sua sobrinha que se entretinha a fazer-lhe tranças nas longas barbas. Da lavra luandense aparecia o António Ole e a Olga, filha do meu querido amigo Lopito de Morais, o Zé Andrade (ZAN) com a Armanda Catanhô e o Rolando Estanqueiro com a sua assistente Mabília. Mais a turma dos cubanos: Os trovadores Vicente Feliú e Sílvio Rodriguez. Os jornalistas Miguelito Roa e Eloy Concepcion Perez.
Naquele tempo de penúria generalizada nem sempre se arranjava material didáctico para as noitadas e eu montei um alambique na varanda, onde destilava kandingolo. Ainda com o líquido quente, agitava um saquinho de chá e aquilo ficava um respeitável conhaque. Quando os fraccionistas me expulsaram da direcção do Diário de Luanda fiquei com todo o tempo do mundo e nas horas vagas, Rui de Matos ia buscar-me para rumarmos ao Mussulo, onde ele tinha herdado um barracão para guardar apetrechos da pesca. Mesmo em frente à porta havia um coqueiro corcovado e ele fez uma escultura no tronco. Ficávamos por ali contemplando a baía e Rui de Matos dizia embevecido:
- O mar exerce sobre mim um grande fascínio!
E eu declamava um poema de Gomes
Leal: Das bandas do poente lamentoso/Quando o vermelho sol vai ter contigo,/-
Nada é mais grande, nobre e doloroso,/Do que tu, - vasto e húmido jazigo!
Nada é mais triste, trágico e profundo!/Ninguém te vence ou te venceu no
mundo!.../Mas também, quem te pôde consolar?!
Tu és Força, Arte, Amor, por excelência! -/E, contudo, ouve-o aqui, em confidência;/- A Música é mais triste ainda que o Mar!
Rui de Matos atravessou o Mediterrâneo, entre o Algarve e Marrocos, sozinho, num barco a remos para se juntar à luta armada de libertação nacional. Era estudante de artes. Foi comandante da guerrilha, artista plástico, general das Forças Armadas Angolanas e meu amigo. Mais do que um Herói ele é um Monumento Nacional.
Carlos Pestana Heineken, médico e
comandante da guerrilha do MPLA. Nasceu
O comandante Katiana honrou-me com a sua amizade. Até ao 27 de Maio de 1977 frequentou a minha casa e aos sábados o Tarique Aparício oferecia-nos grandes manjares na sala dos “morcegos”. Apareciam o Lobo da Costa, campeão dos golpes de tesoura, o professor Feruza, Pio do Amaral Gourgel, os Mais Velhos Boavida e Pugliese, o jornalista Rola da Silva e o Rolando Estanqueiro. Este e Tarique Aparício tinham sido colegas do comandante Katiana no Liceu Salvador Correia.
Carlos Pestana Heineken, o comandante Katiana, é um Herói da luta armada mas também Monumento Nacional. Naquele dia em que me preparei para o último pensamento, o último olhar, a última palavra estava a exagerar. Os médicos desentupiram-me uma artéria coronária e regressei a casa combalido, mas vivo. Quando abri o computador encontrei no meu email um texto do Ivo Pizarro, uma belíssima crónica, anunciando a partida do comandante Katiana. Gomes Leal bem nos avisou que “A Música é mais triste ainda que o Mar!”. Fui ao Jornal de Angola saber algo mais. Nada. Limitaram-se a reproduzir um comunicado do Bureau Político do MPLA também ele seco, mecânico, ululantemente óbvio.
Aquela catrefa de colunistas do Jornal de Angola mete pena. São vírus das palavras e sabujos do papel. Dali não sai uma ideia, um pensamento que não seja reproduzido do discurso dos políticos. E assim Angola se despediu de um dos seus Monumentos Nacionais, Herói da luta armada. Calma, isso não tem nada de escandaloso. Só falta um trimestre completo para terminar o ano do centenário do nascimento de Agostinho Neto. E até hoje, nada de nada. Por que haviam de enaltecer a figura e a vida do general Katiana?
Agostinho Neto é um Herói Nacional. É um Monumento Nacional. É Património Imaterial da Humanidade. E o ano do centenário do seu nascimento corre pachorrento, sem qualquer sobressalto e sem que se veja uma só actividade comemorativa. Estou muito indignado. O Ministério da Cultura tem especiais responsabilidades nas comemorações. Zero. Não sou dos que levam desaforos para casa. Então é assim. Se o Turismo e o Ambiente lhes subir à cabeça, será seguramente um mero devaneio. Quanto à Cultura, nunca passará da planta dos pés. Por isso, todos despedidos! Rua e já. Não tenho poderes para despedi-los? Pois não. Mas despeço-os sem poder. Apenas com a força da minharazão e da minha profunda indignação.
Ao meu comandante Katiana deixo esta trova do poeta Malaquias:
VIAGEM AO FIM DA LINHA
Procurei a verdade
No perfume dos jambos
Só encontrei a cobra cuspideira comendo
Crias de pombos verdes nos ninhos
Nas gotas de orvalho
Depositadas de madrugada no capim novo
Procurei a sabedoria prodigiosa
De quem sacia a sede do viajante perdido
O sol pletórico de luz cegou-me
Mal me tinha libertado da noite
Segui os passos da Liberdade
Até ao fim de todos os caminhos
Para além da última montanha rutilante
Exilado das amadas colinas de Katunda
Longe tão longe do corpo da minha amada
Perfumado de ternura e água fresca
Para lá do horizonte dei passos para ti
Sobre aquela amálgama de caos
Fenecida a dimensão humana no magma revoltado
Tudo se perdia nem noite nem meio dia
O ar era um sufoco de fogo
Que não matava nem se via apenas sufocava
Os sábios do Pingano dizem que o amor
Corre para o nada como as águas do Loge
Se dispersam nas matas ufanas de mil verdes
Desde o vale do Mambamba inundado de fartura
Até à montanha sagrada de Mampuya.
*Jornalista
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