O Rio Invisível e os Caminhos Novos de Natula
Nas terras do Bailundo existia um rio sagrado que só corria de noite, rasgando a escuridão. De dia escondia-se na paisagem e as suas águas apenas eram vistas pelos que tinham a alma limpa e o coração amável. Os velhos diziam que foi a partir das suas águas que um dia Ndungula, o adivinho das montanhas, inventou o umbanda wesengu, feitiço tão forte que torna os homens invisíveis. Até dava aos ladrões o poder de roubar nas aldeias, à luz do Sol, sem serem vistos.
Ndungula era um oráculo e além de conhecer o leito do rio invisível convivia com os dias por nascer. Um dia, chegou à sua casa na montanha a bela Natula. Partiu da aldeia dos seus ancestrais e andava à procura de um lar para plantar a sua vida.
- Porque vive tão pobremente poderoso adivinho? – Perguntou Natula.
O adivinho respondeu:
- Tu que estás numa posição elevada, lembra-te que tudo é passageiro e cabe num instante. Mas podes passar muito tempo na miséria. Utumbu eteke, okusepuka ulima: Importância um dia, ser desprezado, um ano.
Natula achava-se a mais bela da aldeia. Mas também a mais forte. A sua lavra dava frutos para toda a família. E dos familiares nada recebia. Por isso decidiu criar raízes na grande montanha onde dorme a noite e brilha o Sol.
- O que deve fazer uma jovem que trabalha tanto e nada recebe em troca?
Ndungula fixou os olhos no
horizonte e ficou
Sem encarar os olhos dela disse tranquilamente:
- A bela rapariga, por ser muito formosa, não pode desprezar os que a geraram. Um dia ela também vai ser mãe e avó.
Natula não ficou satisfeita com a resposta do oráculo. Queria ouvir palavras de incentivo a que fundasse a sua aldeia e construísse novos caminhos.
- Eu sou a filha mais forte, minha lavra é a que garante comida na nossa mesa, perdi os progenitores, quero plantar uma árvore nas montanhas e criar a minha aldeia.
Natula acabou de dizer estas palavras e olhou ansiosa para Ndungula, na esperança de que o adivinho lhe desse um sinal do futuro.
Mas o homem que inventou o poderoso umbanda wesengu não lhe abriu o caminho. Pelo contrário, amordaçou ainda mais o seu sonho:
- Manda esta montanha mergulhar no mar! Ela não vai obedecer. Ninguém é tão forte que mova montanhas. Podes criar o teu caminho mas nunca te deixes cegar pelo poder.
Ao ouvir isto, Natula partiu em direcção ao Poente e depois de muito andar encontrou um campo verde, muito aberto, entre as montanhas e o rio. Ali nasceu a sua aldeia. Foi buscar as irmãs e depois chegaram os rapazes em idade casadoira.
A aldeia de Natula tornou-se tão rica que atraía famílias de toda a região. Todos os que chegavam eram agasalhados e tratados como filhos. Um dia caiu sobre a aldeia uma violenta tempestade que arrasou as lavras. As enxurradas levaram a comida e quando a lama secou, chegou a fome.
Natula foi pedir comida e dinheiro para sustentar o seu povo. Um dia pagaria em dobro tudo o que pediu. Mas as colheitas eram devoradas por terríveis pragas e a miséria instalou-se na aldeia luminosa de Natula. Os credores apresentaram-se para cobrar as dívidas e não havia um grão de milho na aldeia para pagar.
Natula vagueou por todos os caminhos, na esperança de encontrar novos credores. E cantava assim:
- Okwetu, a Ndajamba, nda oñiha eyo lyove há sifeti omanu v’okungavisila olofuka: Amigo elefante, dá-me por favor o teu marfim para eu pagar às pessoas que me estão a perseguir por causa das dívidas.
O seu canto ecoava na montanha mas até hoje, ninguém respondeu.
Outra versão deste conto:
O rapaz rebelde e a paciência da avó Natula
Natula partiu da aldeia e construiu um abrigo entre o monte e o rio, à sombra do rochedo que guardava os segredos de uma guerra longínqua na qual pereceram os guardiões da liberdade. Nos primeiros meses ficou sozinha, mas um dia chegaram as irmãs, belas meninas. Em breve o trabalho das mulheres fez correr naquelas terras tanto mel como correm tranquilas as águas do Keve.
Passaram os tempos e vieram novos tempos até que a aldeia ficou repleta de crianças. Natula e suas irmãs ficaram tão velhas que já nem se lembravam da primeira panela que cozeu o pirão. Nem do primeiro rapaz que desposou a jovem casadoira. Nem do primeiro choro da criança recém-nascida. Ou das crias que berravam nos currais pelo leite das mães.
A aldeia tinha os celeiros de milho sempre cheios e os currais com tanto gado que era preciso fazer sempre mais. Havia tanta abundância que até a caça comia fartamente nas lavras. Natula, já mais velha do que o monte e o rio, recordava o encontro que seu pai teve com um guerreiro no estertor da morte, ainda os campos de batalha estavam banhados de sangue.
O guerreiro balbuciou palavras estranhas para aquele momento de tragédia:
- Antes morrer do que entregar a terra e vender a nossa mãe.
- E que acontece a quem vira as costas à terra e abandona a mãe? – Perguntou o pai de Natula. O guerreiro agonizante sussurrou:
- Olongembya vyove vyasoka nd’omoko yatombola utima wove. As tuas dores são como uma faca que trespassa o coração.
A poeira da terra daninha cobriu as memórias da guerra e o sol calcinou as ossadas dos guerreiros que recusaram entregar a terra e vender as mães. Nasceram aldeias nas cercanias do grande rio Keve, à vista do rochedo que fazia de sentinela sempre alerta. Foi à sombra desse passado que nasceu a aldeia de Natula, onde todos tinham abundância de comida. As terras daninhas voltaram a dar frutos. A vida nunca parte para sempre.
Natula tinha um neto, Elavoko, que trouxe grande alegria à mãe. Mas à medida que ia crescendo, a alegria dava lugar à tristeza porque o rapaz estava sempre envolvido em zaragatas e tinha uma grande inclinação para a maldade. A mãe, o pai, os irmãos e irmãs, primos e primas afastavam-se dele e deixavam-no a vaguear, sozinho, entre o monte e o rio.
Natula lembrava-se do dia em que deixou a aldeia dos pais e chegou à fonte da abundância. Ela também vagueava sozinha até ao dia em que decidiu deixar tudo para trás e começar uma nova vida. Com infinita paciência falava com Elavoko e contava-lhe como tudo aconteceu, desde que começaram a crescer aldeias ao longo do rio e da terra, antes daninha, começou a brotar leite e milho.
Elavoko era rebelde, mas gostava de ouvir a sua avó. Aos poucos foi aprendendo a conviver com os outros, começou a evitar confrontos, ouvia as críticas, suportava as desilusões. Natula, mais velha que o monte e o rio, boca desdentada, dizia ao neto:
- Kuvingwa kundjila. Kutukukwa kumunu! Se não és enxotado, não és pássaro. Se não és falado, não és gente!
Elavoko compreendia a mensagem da avó. Ninguém deve ficar melindrado quando é criticado, só é rejeitado quem existe. E as suas palavras davam-lhe força e coragem para enfrentar as dificuldades.
Aos poucos, a família de Elavoko abria-lhe os braços. E pouco a pouco ele tinha consciência dos seus erros. Como sabia quando errava, cada vez errava menos. Deixou de andar sozinho entre o monte e o rio. Passou a ser um jovem sociável.
Um dia Elavoko foi à caça com o pai. Pela primeira vez lhe foi confiada tão grande responsabilidade. Elavoko sentiu que era um caçador. E no momento da glória, teve um pensamento para avó Natula. Foi ela que o educou.
Depois da caçada foi a casa da Avó Natula e perguntou-lhe como fez dele, um caçador.
A velha respondeu:
- Soma kapeyeka, ukamba kapeeyi. O soba não danifica, a amizade não faz nada à força. Para deixares os maus hábitos, não te bato nem te obrigo a nada!
CONTOS TRADICIONAIS ANGOLANOS
A comadre Lebre e o Leão Generoso
A comadre Lebre andava muito preocupada porque tinha uma grande dívida com os donos das lavras das margens férteis do rio Cului e com o rei do Jau. Com medo de ser castigada, um dia foi ter com o compadre Leão e pediu-lhe um boi emprestado para pagar aos credores.
- Compadre Leão, peço um boi de empréstimo para pagar as minhas dívidas.
O Leão foi ao curral buscar um animal gordo, o melhor do seu rebanho, e entregou-o à comadre Lebre. Ela foi embora muito feliz e pagou todas as suas dívidas.
Passou um ano e a Lebre nunca mais apareceu. O compadre leão estava numa grande aflição, porque naquele ano não choveu e a fome chegou às suas terras. Foi ter com a comadre e disse-lhe:
- Tens que pagar a tua dívida, o meu gado está a morrer à fome e à sede porque não choveu e preciso do boi que me deves para alimentar a minha gente.
A comadre Lebre ficou muito preocupada porque o Leão foi generoso com ela e não queria desiludi-lo.
- Compadre Leão, não posso pagar o boi agora, mas em breve a dívida será paga. Amanhã regresso com boas notícias.
A comadre Lebre correu até uma nascente de água que alimenta o rio Cului, fez um grande cercado, deixando apenas uma pequena entrada. No dia seguinte de manhã ela apresentou-se no covil do compadre Leão e disse:
- Compadre, vem comigo até à nascente do Cului. Já posso pagar-te a dívida.
Partiram os dois em direcção à nascente e quando chegaram próximo do cercado, a Lebre disse:
- Ainda não posso pagar a dívida, mas se ficares escondido naquele muxito em breve serás pago a dobrar.
O compare Leão escondeu-se por trás dos arbustos e a Lebre foi à chana onde pastava uma manada de cudos.
- Precisam de água? Eu tenho muita no meu cercado, é só virem atrás de mim.
Dito isto a Lebre partiu a saltitar e os cudos seguiram atrás dela. Quando chegaram ao destino entraram todos no cercado e começaram a saciar-se com a água fresca da nascente.
A comadre Lebre foi ter com o Leão e disse:
- Eis o pagamento da minha dívida. Basta ficares na pequena entrada do cercado e apanhares os cudos que quiseres.
O Leão saiu do seu esconderijo e ficou feliz com o que viu. Alguns cudos bebiam água descontraidamente sem saberem que estavam numa armadilha preparada pela comadre Lebre. Foi chamar a sua família e todos se banquetearam com os antílopes que bebiam na nascente do rio Cului.
Dizem os sábios e adivinhos que a amizade entre o onkheyama e a kandimba começou ali mesmo e ficou para sempre.
CONTOS POPULARES ANGOLANOS
A Última Palavra de Mwanga Arruinou os Inimigos
Mwanga tinha o poder da Lua sobre as colinas do Bailundo e o calor do Sol que rachava rochedos nas montanhas. Era um homem pacífico e trabalhador, mas escolheu ser solitário. A sua família era o mundo, as plantas dos vales e das montanhas, os animais dos matagais. E sentia-se tudo: Árvore e trepadeira, pássaro cantor e rio, olongo à solta nos vales verdejantes. Também era a palavra que amava ou arruinava.
Quando o criticavam na aldeia por não constituir família, ele apontava para o céu e a terra, para cada rosto iluminado pelos raios de sol ou as chamas da fogueira e dizia:
- A minha família está aqui e além, até onde alcança a minha vista e à distância do fim do mundo.
Se lhe diziam palavras ásperas, ofensivas, ele respondia com um sorriso de bonomia:
- Que o vosso falar seja pacífico, temperado com sal! U popi wene ukale l’ombembwa, usingiwe l’omongwa!
As suas palavras encerravam o enigma dos ausentes mas também a doçura dos corações que amam.
Mwanga era incompreendido. Alguns insinuavam que o viram dançar em cima das águas do rio. Ou viram o seu vulto trepar ao alto das árvores, na madrugada, para conviver com as almas perdidas.
O mais velho dos velhos insinuou que Mwanga vivia só porque tinha apoios poderosos:
- Okassi l’esinde lyae kandi l’ovava! Quem tem o seu pedaço de terra não vai pela água abaixo. Quem tem bom padrinho não morre escravo.
Na sua sabedoria, Muanga continuava a trilhar o caminho da bondade e dava amizade a todos. Quando uma cabra tinha um parto difícil, ele ajudava o vizinho. Se as colheitas eram abundantes, ele ajudava a colher sem olhar a quem. Estava sempre disponível porque o seu compromisso era com todos. Toda a aldeia era a sua família.
Apesar da sua bondade, os vizinhos faltavam-lhe ao respeito falando e murmurando sobre a sua vida, mas pelas costas. Alguns fechavam a porta quando ele passava. Nunca recebeu nada de ninguém, apesar de dar tudo.
Um dia cansou-se de tanta hostilidade e procurou um recanto na curva do rio, onde as plantações cresciam depressa e os frutos se multiplicavam. Ergueu ali a sua cubata e evitava ir à aldeia.
A sua solidão um dia foi perturbada. A chuva nesse ano era tanta que alagou as lavras e apodreceu as plantas. Não havia comida e um bago de milho passou a valer mais do que a vida. Mwanga tinha construído o seu celeiro no alto de uma colina e como era um homem só, tinha muito milho para o pirão. Com as ratoeiras apanhava peixe e a fome nunca chegou ao seu recanto.
As mulheres da aldeia andavam à procura de comida para dar aos filhos e subitamente encontraram o celeiro de Mwanga. Encheram as quindas com espigas de milho e soltaram cânticos de agradecimento a quem lhes pôs na mesa aqueles manjares.
Muanga viu e falou:
- Esse é o meu milho, fruto do meu trabalho. Como não tenho filhos eu dou-vos as espigas. Mas não agradeçam a nenhum deus. É a mim que têm de agradecer!
Ouvidas estas palavras, as mulheres soltaram uma grande gritaria. Os homens da aldeia ouviram os gritos e acorreram à colina onde Mwanga tinha o seu celeiro. O eremita olhou todos de frente, com dignidade, e disse:
- Este milho que levais é meu e foi plantado, cultivado e colhido com o meu suor. Não é uma oferta dos deuses. Mas podeis levá-lo para matar a fome aos vossos filhos.
Estas palavras foram ditas com tal rispidez que tiveram o efeito de pedras lançadas ao rosto dos que lhe roubaram o celeiro. Fez-se um breve silêncio mas de seguida, da multidão saiu um clamor:
- Maldito sejas, homem daninho!
Mwanga morreu amaldiçoado e odiado por todos: Mwanga wafa wasingaliwa, wasuvukua l’omanu vosi.
Mas antes de soltar o último suspiro ele também amaldiçoou os ladrões do seu suor. E os que foram amaldiçoados por ele, arruinaram-se para todo o sempre:
Ava vasingaliwa l’ahe vañoleha!
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