segunda-feira, 18 de abril de 2022

Angola | O LIVRO DA RÁDIO E RASCUNHOS DA HISTÓRIA -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Antes de entrar no que interessa apresento humildemente desculpas ao bêbado da valeta e ao motorista do RI20 que é hoje membro da Academia Angolana de Letras ainda que a sua escrita seja aracnídea e balbuciante. Desculpem-me um dia ter entrado na Emissora Oficial de Angola, ainda no barracão de zinco ao lado dos Correios da Cuca. Perdoem-me por um dia ter alinhado na equipa fabulosa da Voz de Luanda: Pedro Moutinho, Paulo Cardoso e Horácio da Fonseca. Peço imensa desculpa por ter colaborado em programas independentes na antena da Rádio Eclésia, que eram o melhor da Rádio Angolana: Luanda (do inigualável Zé Maria), Equipa (do mestríssimo Brandão Lucas) e Café da Noite (do Sebastião Coelho). Também colaborei no Paralelo Nove, realizado, produzido e apresentado por Norberto de Castro. 

Com estes radialistas de excepção aprendi umas coisas. Antes que leve nas orelhas, quero convocar as mulheres da Rádio que me ensinaram imenso, apoiaram eajudaram a cumprir a minha missão: Concha de Mascarenhas, Maria Dinah, Graça D’Orey, Isabel Colaço, Catarina Gago da Silva e Luísa Fançony. Mandaram-me um texto do Humberto de Monfalino onde ele afirma que a Maria Dinah faleceu. Não consegui confirmar. Nem quero. Prefiro ficar na minha: Ela é eterna.

Depois do 25 de Abril de 1974 fui chefe de redacção da Emissora Oficial de Angola, hoje Rádio Nacional. Nessa altura ia todos os dias, ao fim da tarde, a casa do Presidente Agostinho Neto, no Bairro de Saneamento, para lhe contar o que tinha acontecido no mundo. O Mena Abrantes selecionava e traduzia os telegramas das agências noticiosas. Eu escrevia um resumo e fazia uma exposição ao nosso líder. 

Em meados de 1975, o Presidente Agostinho Neto dizia-me que a Rádio é muito importante mas a Imprensa é o rascunho da História. E nós estávamos a falhar nesse aspecto. Mas não havia falhanço nenhum. O MPLA simplesmente não tinha mão-de-obra.

O bêbado da valeta ainda era um rosqueiro analfabeto e o motorista do RI20, coitado, ainda não tinha descoberto o filão do MPLA. Mas recuperou do tempo perdido e ainda hoje vive à custa do Estado Angolano. Em grande! Saca o triplo dos generais que lutaram pela Independência, na Guerra de Transição e na Guerra pela Soberania Nacional e a Integridade Territorial. A Imprensa Angolana, naquela época, tinha poucos jornalistas interessados em colaborar no rascunho da História Contemporânea de Angola. A maioria estava mais interessada em adulterar a nossa luta, falsificar a nossa política e perpetuar o colonialismo.

Um dia, por insistência do Presidente Agostinho Neto, saí da Rádio e fui trabalhar para o Diário de Luanda. Ali sim, fazíamos todos os dias o rascunho da História. Os nomes desses heróis: Raimundo Sotomaior, Luciano Rocha, João Serra, Ernesto Lara Filho (pouco tempo, infelizmente...), Gouveia e Lucas Bernardo (repórteres fotográficos). Na redacção tínhamos dois estagiários. No rascunho da História foram importantíssimos os tipógrafos, capitaneados pelos grandes mestres Coelho, Airosa e Alves.

Um dia destes informaram-me que foi apresentado em Luanda o livro “A Rádio no Ar”. Assim se faz a História do Jornalismo Angolano. Há alguns anos o meu antigo colega Mogas pediu-me um depoimento sobre o período da transição na Rádio, após o 25 de Abril de 1974. Colaborei com todo o gosto. Um dos jornalistas mais distintos desse projecto, Manuel Rodrigues Vaz, mandou-me agora o seu depoimento, que é publicado no livro. A obra é resultado do trabalho do engenheiro Mogas e da radialista Luísa Fançony. Parabéns aos dois e a todos os que colaboraram. Mas também à administração da Rádio Nacional. Os meus agradecimentos.

Uma correcção indispensável. O Manuel Rodrigues Vaz e o Zé Mena Abrantes dizem que os convidei a trabalhar na então Emissora Oficial de Angola, hoje Rádio Nacional. É mentira. Disse-lhes que não tinham escolha. Ou trabalhavam voluntariamente ou iam amarrados, à força. Eles preferiram ir voluntariamente e fizeram um trabalho notabilíssimo. Imprescindível. Obrigado, camaradas!

Leiam o que escreveu Rodrigues Vaz no livro “A Rádio no Ar”:

Este Depoimento foi inserido no livro “A Rádio no Ar”, que acaba de ser publicado em Luanda, em edição da Rádio Nacional de Angola, 2022.

1 – Eu entrei para a EOA, em Luanda, em Setembro de 1974, a convite do Artur Queiroz, que tinha sido encarregado pelo então capitão miliciano Alcântara de Melo, de origem goesa e actualmente do Sindicato de Aviação Civil, em Lisboa, que estava coordenador da estação por nomeação do MFA.

Numa segunda fase, depois da tomada do poder em Luanda pelo MPLA, quem virá dirigir a depois Rádio Nacional de Angola será o Alexandre da Silva Carvalho, irmão do Rui de Carvalho, que depois a dirigirá, por sua vez.

O Alcântara de Melo tinha encarregado o Artur para constituir a chefia de Redacção, que ficou repartida entre mim, o António Cardoso e o Artur, tendo ficado a chefia de reportagem sob o comando do Francisco Simons.

O Aldemiro Vaz da Conceição aparecerá depois para substituir o António Cardoso, que chegou a ser raptado pela FNLA e tinha ficado muito abalado, e também o Mena Abrantes.

A Maria Dinah ainda lá ficou a trabalhar mais uns tempos, como locutora de continuidade, assim como o Ivo de Oliveira.

Foi um período emocionante, cheio de peripécias, em que foi preciso fazer uns últimos saneamentos, pois alguns colaboradores não tinham dado conta de que era preciso mudar tudo e continuavam a julgar que as coisas ainda podiam retroverter.

Comigo começaram o João Melo, assim como o João Pires Ferreira, o José Anapaz, o Sebastião Sá (Tatão), e os Joões  Mirandas –o ex-ministro e o mais conhecido como Joãozinho Popular, que viria a fazer carreira nos CTT em Lisboa – assim como a Ana Filomena (Filó), a Paula António, a São Van-Dúnem e a irmã Francisca, que foi ministra da Justiça em Portugal, e ainda um primo destas, o Júlio Silva.

O Mena Abrantes meteu lá depois a Lúcia como tradutora e ainda havia outras tradutoras: a Margarida Rosa Coutinho e a Silvana Silva, que tinha vindo de Kinshasa.

Já numa fase final apareceram depois a Carolina Cerqueira, que foi ministra da Cultura, em Angola, e o Dinis Martins.

Como repórteres de exteriores contávamos com o Arlindo Macedo, o Fernando Alves, atualmente um dos pivots da TSF em Lisboa, o Paulo Pinha, o Raimundo Vilares, o José Patrício, que viria a ser embaixador de Angola em Lisboa, e depois Ministro, o Pitra Solano e ainda com o Pedro Reis e Almeida, um dos meus grandes amigos em Angola, que depois será transferido para o Huambo.

Na escuta, além do Domingos Buta, havia também o Júnior, que dormia a maior parte das vezes num dos estúdios vagos e era perito em ir banhar-se à noite no lago do hall da entrada, com o Fernando Alves, o que me obrigava a fazer às vezes verdadeiras maratonas para o encontrar a fim de ler os noticiários horais.

 2 – Um dos episódios mais picarescos que ali passei, além da ocupação da estação como protesto contra o rapto do António Cardoso, foi num domingo, quando os guerrilheiros já tinham começado a chegar à região de Luanda.

Pelas 16 horas, sou chamado à recepção, tendo-se-me apresentado um cidadão armado com pistolas a tiracolo, que, em nome da facção Chipenda, exigia a leitura aos microfones da emissora de um comunicado. Foi-lhe dito o que era norma, até por exigência da UNITA e da FNLA e da própria fação Chipenda: primeiro teria de passar pelo Ministério da Informação, então liderado pelo Manuel Rui Monteiro e depois de aposto o visto, líamos tudo o que quisessem.

Nem pensar, – disse-me. – Tens de mandar ler, se não, temos 10 mil homens nos arredores de Luanda e invadimos isto tudo.

Disse-lhe para esperar, que eu ia telefonar e ver o que se podia arranjar. Era domingo, pelo que o Ministério da Informação estava fechado e nem a Gagui, então secretária do Ministério,  me atendeu em casa o telefone. Volto à recepção e digo que não pode ser nada, era impossível.

Não se conformando, continuou a vociferar, pelo que lhe pedi para ir de novo à redacção para fazer uns contactos a fim de resolver a questão. Liguei a seguir para a delegação do MPLA na Vila Alice, tendo-me atendido o Lopo do Nascimento que me diz: – Olha camarada, resolve isso, porque nós não nos podemos meter.

Quase desesperado, lembro-me então de ligar para o Artur Queiroz, que me disse para ter calma, pois ele viria resolver o assunto. Nem passados 10 minutos, chega o Artur Queiroz, que manda chamar as sentinelas – ainda do exército português – e lhes diz: – Seus grandes trastes, como é que deixaram entrar estes bandidos armados na estação? – e os insultos foram mais do que muitos. E para os representantes do Chipenda: – Rua, rua, ou mando-vos enxotar a pontapé. – E eles foram mesmo, e acabou a história.

3 – O meu trabalho como chefe de turno foi essencialmente preparar pessoal que nunca tinha estado numa redacção para aprender a fazer uma notícia. Foi uma grande experiência porque eu próprio também me fui apurando, pelo que, depois de ter ganho estatuto, fiz uma proposta ao Rui de Carvalho para criar um centro de documentação, cuja necessidade se fazia cada vez mais sentir.

A direcção da RNA, nesta altura já com o Rui de Carvalho como director e a Luisa Fançony como subdirectora, foi impecável: deu-me tudo o que eu fui pedindo, como enciclopédias fundamentais e assinatura de revistas de actualidades, e também pessoal.

A seguir, fui aproveitado para preparar uns cursos de iniciação ao jornalismo, que estiveram na génese da Rádio Escola. Eu fazia quase tudo: os testes de admissão e a programação, cabendo-me leccionar a disciplina de Iniciação ao Jornalismo.

Foram tempos inolvidáveis. Havia muita mobilização do pessoal jovem e também de alguns kotas. Valeram a pena.

* Jornalista 

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