sexta-feira, 27 de maio de 2022

Os EUA apoiaram o massacre de mais de um milhão de indonésios... Há dúvidas?

O livro, editado em português em Abril pela Tema & Debates

VINCENT BEVINS: “A CIA ATUAVA SEM SUPERVISÃO E CONSEQUÊNCIAS. ISSO EXPLICA OS SEUS EXCESSOS BIZARROS”

João Biscaia | Setenta e Quatro

O jornalista californiano falou com o Setenta e Quatro sobre o seu livro O Método Jacarta, recentemente editado em Portugal. Das origens da CIA aos métodos de extermínio aplicados pelos EUA no mundo inteiro, passando pela possibilidade de um golpe bolsonarista no Brasil, Vicent Bevins avisa para o perigo global das superpotências em declínio.

ENTREVISTA

Entre 1965 e 1966, os Estados Unidos apoiaram o massacre de mais de um milhão de indonésios. Com apoio material e propaganda, ajudaram a inflamar por toda a Indonésia uma purga anticomunista que não se limitou aos militantes ou simpatizantes do terceiro maior partido comunista no mundo na altura, o PKI, com cerca de três milhões de filiados.

Os militares, os seus esquadrões de morte e assassinos contratados, a quem a CIA forneceu listas com milhares de nomes, executaram igualmente por todo o país centenas de milhares de outros esquerdistas, feministas, javaneses muçulmanos e indonésios de ascendência chinesa.

No final, Washington conseguiu o que queria: o PKI foi dissolvido e banido, o presidente Sukarno, nacionalista moderado e proeminente líder do movimento anticolonial terceiro-mundista, foi destituído e posto em prisão domiciliária e a Indonésia tornou-se num importante aliado dos EUA. Sob a liderança ultraconservadora do general Suharto, o país abriu a sua economia ao mercado livre. Ainda hoje é ilegal na Indonésia contar a verdade dos factos.

A operação de mudança de regime na Indonésia correu tão bem - o número de baixas norte-americanas foi zero, ao contrário do que se passava ao mesmo tempo no Vietname - que a CIA decidiu replicar essa estratégia noutras partes do mundo. Deu-lhe o nome “método Jacarta” e seguiram-se Brasil, Chile, Timor-Leste, Colômbia ou Sri Lanka. Nas fileiras anticomunistas, o nome da capital indonésia passou a equivaler ao desejo de extermínio em massa de todas as forças e militantes de esquerda. 

É esse o nome do livro de Vincent Bevins, jornalista norte-americano, correspondente no Sudeste Asiático e na América do Sul. A partir da análise de diversos documentos desclassificados pelo governo dos EUA e de dezenas de entrevistas com testemunhas e sobreviventes, Bevins esquematizou um “programa de assassínio maciço” da política externa dos Estados Unidos. Esse programa foi alimentado pelo anticomunismo e “moldou o nosso mundo”, sendo uma peça chave da vitória norte-americana naquilo que se chama de Guerra Fria.

Como conseguiram os Estados Unidos (EUA) abafar um massacre de mais de um milhão de pessoas na Indonésia? Houve um plano? 

Não creio que tenha sido metódico. Aconteceu de maneira mais orgânica, resultado da configuração particular dos aparatos que produzem conhecimento em língua inglesa, ou pelo menos nos EUA. O facto de tão poucas pessoas saberem o que se passou é, antes de mais, resultado do sucesso da operação na Indonésia. 

No fim de 1966, o general Suharto assumiu [o controlo de] todos os meios de comunicação no país e estabeleceu uma história propagandística que construiu com a ajuda dos Estados Unidos e do Reino Unido. Não tenho a certeza se estes países ajudaram a escrever essa história, mas ajudaram a espalhá-la.  

Estabeleceu-se uma determinada verdade sobre o que aconteceu e essa história tornou-se hegemónica. Tornou-se a única versão que se podia contar, tirando os "sussurros" daqueles que fugiam de esquadrões da morte. Depois, a questão do Vietname, onde as coisas se passaram de forma muito diferente. Ainda que os funcionários de política externa dos Estados Unidos acreditassem que a Indonésia era muito mais importante que o Vietname, no contexto da Guerra Fria, este último tornou-se um grande problema político para os norte-americanos ao se tornar um problema doméstico. Era um atoleiro de dinheiro onde jovens norte-americanos iam morrer.

Por outro lado, a Indonésia saltou muito facilmente do campo anticolonial e de esquerda, que liderava, para o lado anticomunista. Tornou-se uma nação aliada dos Estados Unidos sem qualquer custo para os norte-americanos. Não foi grande notícia no meio da guerra do Vietname.

Jogou-se com a perceção norte-americana do mundo?

Há que ter em conta as crenças ideológicas que estão bem enterradas na psique norte-americana: a ideia que o mundo inteiro progride naturalmente em direção ao modelo americano, por exemplo. É quase uma questão de fé religiosa. 

Há uma natureza teleológica para a mundivisão norte-americana. Quando as coisas acontecem como nós esperamos - os Estados Unidos lideram e o resto do mundo adota uma versão qualquer do capitalismo de mercado-livre -, achamos que aconteceu sozinho. É a História, com H maiúsculo, a desenrolar-se e o desfecho será o mundo inteiro tornar-se os Estados Unidos. 

Todos aprendemos isso ao crescer. Então, quando este tipo de coisas acontece, como na Indonésia, não achamos que aconteceu como resultado de violência desmedida ou de uma intervenção consciente e deliberada. Achamos que esses países estão a tomar o seu rumo natural na ordem divina das coisas. 

O esforço propagandístico não foi assim tão expressivo?

É preciso compreender o modo como os media e os aparatos ideológicos do Estado produzem informação e conhecimento nos Estados Unidos. Não há assim tanta intervenção consciente e metódica para garantir que aprendemos que algo aconteceu desta ou daquela forma. Há um sistema incrivelmente eficaz que foi criado para a manutenção de um certo tipo de narrativa sobre o nosso próprio papel no mundo.

E é eficaz precisamente porque não requer intervenção ativa e coerciva da parte do Estado. Certas coisas são notícia e outras não. Certos órgãos de comunicação recebem mais financiamento, seja através de publicidade ou de oligarcas que se querem mostrar como mecenas do jornalismo. Certos tipos de jornalista conseguem ir longe, porque certos temas agarram leitores ou chamam mais atenção.

O New York Times pôde celebrar efusivamente o que aconteceu na Indonésia, em vez de o esconder ou de denunciar qualquer esquema levado a cabo pela CIA. Sabiam que as pessoas leriam aquilo, diriam "ah, que boas notícias!" e nunca mais pensariam nisso. Na minha opinião, isto levanta uma questão mais complexa que o próprio sucesso da operação na Indonésia: para haver um vazio histórico e memorial tão grande no Ocidente sobre um acontecimento tão estranho e significativo foi necessária a confluência de vários fatores.

A sociedade indonésia e a sua história oficial ainda hoje assentam nas mentiras criadas em 1965 e espalhadas com a ajuda dos EUA. Como norte-americano, como foi ir até à Indonésia e falar com vítimas e sobreviventes de um massacre que é visto como tendo sido justo e necessário?

Sim, essa versão da história, baseada na propaganda espalhada em 1965, ainda é considerada verdade oficial. É o que ouves nas ruas. Há-de haver apenas uma pequena comunidade de jovens de esquerda que, entres eles ou talvez online através de contas anónimas, afirme o seu desacordo com a narrativa oficial, porque é ilegal não concordar. É ilegal dizer em público que partes dessa história estão erradas. Há um museu cujo propósito é mostrar e divulgar, detalhadamente, a versão oficial da história.

É muito diferente do que se passou aqui, na América do Sul, onde alguns países passaram por processos de "verdade e reconciliação" e antigas vítimas do terrorismo de Estado conseguiram chegar a lideranças políticas. Nada disso aconteceu na Indonésia. 

Cerca de 25% da população indonésia, em 1965, ou fazia parte do Partido Comunista da Indonésia (PKI) ou estava de alguma forma ligado a ele. Se tivessem ido a eleições, é provável que as tivessem ganho com 1/3 dos votos. Para encontrares, hoje, uma pessoa que admita ter tido sequer a menor simpatia pelo PKI, precisas de passar muito tempo com ela, conhecê-la e ganhar a sua confiança. Tens que mostrar que não és uma ameaça.

Foi difícil?

Foi a minha grande tarefa enquanto investigava para este livro. Através de um padre jesuíta da cidade de Joguejacarta cheguei a um homem que lidera uma organização de defesa dos interesses dos sobreviventes do massacre. Foi particularmente afortunada essa ligação porque fica difícil acusarem um padre jesuíta de ser um bruxo ou um ateu satanista, como ainda é comum fazerem com os comunistas.

Mudei-me para Joguejacarta e apresentei-me aos sobreviventes que fazem parte dessa organização. O meu indonésio era bom o suficiente, mas achei que seria melhor ter um intérprete porque as gerações mais velhas falam indonésio como segunda língua, preferindo, por vezes, algumas palavras ou expressões em javanês. 

Percebi muito cedo que não poderia levar um intérprete comigo. A presença de um jovem indonésio mudaria completamente a maneira como falam desse período, porque aquela pessoa pode ser uma ameaça, pode contar a alguém e arranjar-lhes problemas. Tive de melhorar o meu indonésio para poder trabalhar sozinho e mostrar ao longo de vários meses que compreendia as suas histórias, que não era uma ameaça.

"Acreditava numa história completamente diferente sobre a Guerra Fria e o lugar dos Estados Unidos no mundo, uma versão muito Disney das coisas. Éramos sempre os bons que às vezes tinham que tomar decisões difíceis."

Fiz muitas entrevistas que não usei. Sentava-me com alguém, falávamos calmamente, mas depois percebia que aquela pessoa ou não queria contar a verdade, de todo, ou ser-lhe-ia demasiado doloroso fazê-lo. Depois conheci pessoas que queriam mesmo falar, não se importavam com possíveis consequências. Eram muito eloquentes e queriam contar a sua história. 

Este processo acrescentou dois anos à investigação, com muito trabalho e muita paciência. Escrever um livro baseando-me só em documentos desclassificados e na narrativa histórica estabelecida por académicos e ativistas desde 1965 teria sido mais rápido. E sinto-me um pouco patético ao mencionar isto, porque não passei por nada remotamente parecido com o sofrimento daquelas pessoas, mas foi uma experiência psicologicamente desestabilizadora. Abalou muitas das minhas convicções mais profundas sobre o mundo que habitamos, mas trabalhei para pôr as experiências daquelas pessoas no centro da narrativa.

Viajou pelo mundo a investigar crimes de guerra, golpes de Estado e massacres perpetrados, apoiados ou financiados pelos governos do seu próprio país. Qual o impacto no seu sentimento de identidade nacional?

Abalou definitivamente a minha conceção do que significa ser um cidadão dos Estados Unidos. Cresci nos anos 1990 na Califórnia, era uma criança norte-americana normal. Acreditava numa história completamente diferente sobre a Guerra Fria e o lugar dos Estados Unidos na história do mundo, uma versão muito Disney das coisas. Éramos sempre os bons que às vezes tinham que tomar decisões difíceis. Como nos filmes, quando o quarterback faz um passe para touchdown e ganhamos o jogo no último segundo e toda a gente fica muito feliz porque nos esforçámos muito.

Mas depois, em 2016, quando comecei a trabalhar neste livro, já tinha trabalhado como correspondente no estrangeiro durante alguns anos. Comparando com a maioria das pessoas nos Estados Unidos, achava que tinha  um entendimento relativamente sofisticado das intervenções levadas a cabo pelos EUA. Ou, pelo menos, uma visão com mais nuance daquilo que o meu país tinha feito pelo mundo. 

Mesmo essa narrativa que adquiri depois de trabalhar tantos anos como correspondente foi abalada pelo que descobri ao longo da investigação para este livro. Fui atrás das piores coisas possíveis, ainda que não tenha sido esse o meu objetivo inicial. 

O meu projeto enquanto jornalista nunca foi sobre expôr os crimes dos EUA. O primeiro livro que tentei escrever era sobre a indústria mundial da moda. Aconteceu este livro ser sobre as piores táticas aplicadas pelos EUA, na segunda metade do século XX, na construção da sua hegemonia global. Fui apanhado na curva. Talvez não seja justo extrapolar a partir da minha experiência particular, mas por causa de tudo o que descobri até a versão das coisas que eu achava relativamente sofisticada começou a tremer e revelou-se demasiado otimista e infantil.

Começa o livro com o "axioma de Jacarta", uma espécie de doutrina que levava os EUA a respeitar a posição neutra dos países do Terceiro Mundo, completamente oposta àquela que ficou conhecida como o "método Jacarta". Como é que o Capital, o nacionalismo norte-americano e o anticomunismo se juntaram para dar forma ao que se tornou no modus operandi dos EUA em relação ao Sul Global?

É um período de transição muito importante. Se olharmos para os primeiros anos após a II Guerra Mundial e para a curta era do "axioma de Jacarta", os Estados Unidos, agora o país mais poderoso da história da humanidade, não sabiam o que fazer com o Sul Global. Eram uma superpotência jovem e provinciana, ao contrário do Reino Unido. Não tinha séculos de gestão imperial, nem um aparato colonial com técnicas criadas para gerar determinados resultados em qualquer canto do mundo. A CIA ainda não existia. 

Não era um país com o conhecimento do mundo que os grandes impérios europeus tinham. Nem sequer tinha um aparato ideológico para compreender o que estava a acontecer no Terceiro Mundo, toda a onda de revoluções e movimentos anticoloniais que estavam a reformular a ordem global e a inspirar, inclusivamente, as lutas emancipatórias nos EUA. As classes dominantes não sabiam como lidar com isso.

"A CIA muito cedo estabeleceu uma ala de operações secretas cujo propósito era gerar resultados favoráveis aos EUA em todo o mundo, mais do que apenas reunir informação."

É tentador - e convincente - olhar para esse momento pela perspetiva do presente e dizer que os Estados Unidos eram uma nação capitalista, que tinham um Estado que respondia a uma classe económica dominante e, portanto, iriam sempre procurar a acumulação do lucro. Ou que desde 1776 sempre foi agressivamente expansionista e imperialista. É fácil olhar para trás e dizer: "bem, era inevitável". 

É credível. Podemos alegar que a natureza particular dos EUA os levaria sempre a assumir o vazio deixado pela autodestruição dos impérios coloniais europeus e a tomar os seus sistemas globais. Mas também é interessante olhar para trás e ver que alguns líderes terceiro-mundistas de esquerda tinham esperança que isso não acontecesse. 

Líderes como [o vietnamita] Ho Chi Minh, [o chinês] Mao Zedong e [o indonésio] Sukarno pensaram que, talvez, os EUA se guiariam pela outra face da sua história nacional: um compromisso profundo, ainda que largamente retórico, com as lutas anticoloniais. Todos estes líderes tentaram apelar à putativa natureza anticolonial dos EUA como nação forjada por uma revolução.

Mas depressa decidiram pela primeira opção.

Assim que os EUA decidem o que fazer com os países do Sul Global, que estavam a tomar um caminho considerado ameaça aos seus interesses (a construção de um sistema capitalista global por si liderado), acontece a interação entre motivos económicos e ideológicos. 

Se olharmos para os locais onde os EUA intervieram de maneira mais violenta e destrutiva há sempre uma combinação de fatores. Há a crença, dentro do governo dos EUA, que um certo líder ou movimento nacional está a enveredar pelo comunismo e depois há certas empresas, também norte-americanas, a pressionar o governo a tomar determinadas ações para proteger os seus lucros. Os dois reforçam-se mutuamente.

A CIA apareceu quando os EUA finalmente entenderam o seu papel no novo esquema global. Qual era, realmente, o propósito da CIA? Leu alguma coisa nos documentos desclassificados que, se alguém lhe contasse, diria que não passaria de uma teoria da conspiração?

Completamente! Muito do que a CIA fez no seu início, se contares a uma pessoa qualquer, vai soar a teoria da conspiração. Aliás, a cultura das teorias da conspiração nos EUA é influenciada pelas revelações que saíram nos anos 1970 sobre as coisas loucas que a CIA tinha andado a fazer. Muitas pessoas começaram a achar que se a CIA era capaz de fazer aquilo, então seria capaz de fazer qualquer coisa. E deixaram a imaginação voar.

A CIA foi fundada nos primeiros anos após a II Guerra Mundial e o seu propósito oficial está no nome: serve para adquirir e providenciar informação atualizada ao presidente dos Estados Unidos. Mas cedo estabeleceram uma ala de operações secretas cujo propósito era gerar resultados favoráveis aos EUA em todo o mundo, mais do que apenas reunir informação.

E, como explico no livro, era um conjunto de pessoas que se tornou no mais próximo de uma aristocracia que poderíamos ter nos EUA. São os chamados wasps [protestantes brancos anglo-saxónicos], de pretenso sangue azul. Andaram em colégios internos, modelados a partir das instituições escolares da classe alta no Reino Unido, reverenciavam o Reino Unido enquanto potência imperial. Eram cosmopolitas liberais, pelo menos no contexto norte-americano, que acreditavam ser altamente educados e sofisticados.

E também lhes foi dado muito dinheiro sem qualquer tipo de supervisão, essa é a dinâmica fundamental. É por isso que a sua interação com o [britânico] MI6 é tão estranha e muitas vezes engraçada. A CIA admirava o MI6 enquanto o MI6 olhava para a CIA e só via grandes sacos de dinheiro. Regularmente tentavam que os norte-americanos acreditassem naquilo que eles queriam que eles acreditassem - como no caso do Irão [em 1953, no golpe de Estado contra o primeiro-ministro Mohammed Mossadegh] - para que oferecessem o dinheiro e a mão-de-obra.

Mas não deixavam de ter um poder de ação completamente desproporcional.

Algumas coisas que a CIA inventou no início dos anos 1950 são espantosas e só podem explicar-se olhando para aquele momento particular na história. Temos um país que tem um poder enorme. Não só em relação ao resto do mundo, mas em relação a qualquer país que já existiu. E depois há um pequeno grupo de homens a agir sem nenhum tipo de supervisão, tanto nos EUA como no estrangeiro.

Quando Jacobo Arbenz, presidente da Guatemala, descobre que a CIA está a preparar um golpe de Estado contra ele e manda publicar esse plano nos jornais guatemaltecos, quem é suposto ir atrás da CIA? Quando és a organização de operações secretas do país mais poderosa da história não há qualquer árbitro que te possa mostrar um cartão vermelho. Nada vai acontecer. Esta é a dinâmica que explica realmente os excessos bizarros da CIA. 

Refere muitas operações psicológicas (psy-ops) bizarras que a CIA levou a cabo por todo o mundo. Por exemplo, onde foi a CIA encontrar tanto conhecimento sobre folclore filipino sobre vampiros e a superstição indonésia com bruxas emasculadoras?

Aprenderam muito com os britânicos, aprenderam com a Alemanha e o Japão. As experiências praticadas em seres humanos pelos EUA, no pós-II Guerra Mundial, foram feitas com a ajuda de alguns nazis alemães ou figuras do Japão imperial. E, no fundo, tinham muito dinheiro. Andavam pelo mundo a pagar às pessoas para lhes recolher informação.

Não era a melhor maneira de garantir informação. Muitas vezes esses informadores diziam o que a CIA queria ouvir. Nas Filipinas, por exemplo, éramos nós a potência colonial, portanto havia um conhecimento relativamente sofisticado da cultura nacional filipina, pelo menos desde 1898, quando tomámos o país e levámos a cabo uma contra-revolução brutal. Aí também aprendemos como fazer contra-revoluções. E já tínhamos todo o historial do terror e da violência da conquista da América do Norte [contra os indígenas nativos].

"Os EUA estão em relativo declínio e, historicamente, as potências em declínio pode ameaçar a ordem global quando respondem de maneira irracional ao tentar agarrar-se a algo que lhes está a fugir."

Resumidamente, foi uma confluência de fatores: tínhamos o nosso conhecimento particular, a ajuda do Reino Unido e muito dinheiro para pagar por informação secreta em todo o mundo. Isso não fez com que deixasse de haver um desfasamento entre o que a CIA acreditava e a realidade. Podiam chegar a um país sem saber nada sobre o que lá se passava e usar dinheiro para gerar um determinado resultado, mesmo que não fosse exatamente o desejado. 

Os EUA não entendiam muito do que se passava no Sul Global. Não éramos muito bons a aprender sobre a cultura e a política do Congo, da Indonésia ou do Vietname. E também não sabíamos que não éramos muito bons. Mas atuavamos como se fôssemos.

Parece ser uma abordagem muito norte-americana. Crê que aquilo que se tornou conhecido como "trumpismo" foi uma expressão das fascização contínua da sociedade norte-americana?

Trump é uma coisa muito norte-americana, tanto na sua formação como indivíduo como enquanto fenómeno político. Ele não inventou nada. Não é um grande pensador que forjou uma ideologia ou uma filosofia, apenas tem uma especial apetência para conseguir atenção. Percebeu que, ao dizer certas coisas, conseguiria estar constantemente na televisão e fazer com que as pessoas o quisessem a mandar no país. 

É uma figura que seguiu caminhos ideológicos e padrões emocionais que já existiam, de maneira a conseguir criar o que quer que seja o "trumpismo". Nesse sentido, é profundamente norte-americano.

Os Estados Unidos são um império em declínio?

A hegemonia dos EUA está claramente mais fraca do que em 2010, e em 2010 já estava mais fraca do que em 2003. Todavia, ainda somos o país mais poderoso do mundo: temos a maior economia, controlamos o sistema financeiro, e temos tirado proveito disso cada vez mais. Somos, de longe, a maior potência militar. 

Ainda que a China nos esteja a apanhar em termos absolutos, o nosso PIB per capita é muitas vezes maior que o chinês. É difícil conjugar estas duas realidades: estamos em relativo declínio e ainda temos um poder enorme comparando com todos os outros países. Historicamente, isso pode ser uma situação perigosa. Potências em declínio podem tornar-se bastante ameaçadoras à ordem global, especialmente quando respondem de maneira irracional ao tentar agarrar-se a algo que lhes está a fugir.

Não temos tanto soft power como costumávamos ter, mas ainda temos o sistema financeiro. E as armas.

Está neste momento no Brasil, onde tem passado grande parte do seu tempo nos últimos 12 anos, e no livro fala extensivamente do papel dos EUA no estabelecimento da ditadura militar brasileira. Mencionou uma vez que a antiga presidente Dilma Rousseff lhe confessou não achar que o seu impeachment tinha tido mão dos EUA. Acha que os EUA já não precisam de se intrometer diretamente nos assuntos estrangeiros para obter resultados favoráveis? 

Isso é interessante. Creio que hoje ela acredita que, tanto no processo de impeachment em 2015/16 como na prisão de Lula da Silva, houve envolvimento de agentes estrangeiros. 

O Lula certamente culpa os EUA pela sua prisão, mesmo que parcialmente. Tem graça, porque a intensidade da sua convicção depende da pessoa com quem ele estiver a falar, mas ele acredita que a Operação Lava Jato tem ligações aos Estados Unidos. Passou muito tempo na prisão, portanto é algo que leva a peito.

"A vontade de Bolsonaro é a destruição da democracia e de toda a esquerda, e de forma violenta se necessário. Acredita que a ditadura militar não foi repressiva o suficiente."

O conjunto particular de instituições políticas que emergiram do golpe de 1964 foram até certo ponto remodeladas durante o período de democratização, nos anos 1980. Mas as estruturas económicas fundamentais estão iguais às que a ditadura quis preservar ao tomar o poder. Com o fim da ditadura militar não há reforma agrária, por exemplo. Não há uma mudança profunda no sistema económico.

O papel dos media é central no enquadramento dos acontecimentos de 2013 e 2016 e no sucesso da Lava Jato. As mesmas famílias que apoiaram a ditadura militar ainda controlam os mesmos órgãos de comunicação que controlavam na altura. Tudo o que acontece neste momento na política brasileira tem de ser visto como tendo origem ou sendo profundamente influenciado pela ditadura militar. 

Jair Bolsonaro é um exemplo disso, especialmente pelo uso que faz do anticomunismo viral? É um fenómeno comparável a Trump, como muitas vezes foi apresentado?

Há coisas na comparação com Trump que acho corretas e outras que não. Ambos têm de ser entendidos em relação a uma paisagem mediática particular, onde se tem mais atenção quanto mais chocante for aquilo que se disser. Esse ciclo vicioso põe certas figuras no centro das políticas nacionais em momentos de fraqueza dos partidos tradicionais.

Do outro lado, Bolsonaro e o bolsonarismo querem que as pessoas acreditem que ele é o Trump dos trópicos. Gostam dessa caracterização, porque os associa ao país mais poderoso do mundo e isso dá legitimidade ao movimento. Se os EUA o fazem, não pode ser radical ou louco.

Trump não tinha uma carreira política de 30 anos quando disse que a democracia é má e que precisamos matar milhares de pessoas inocentes. A vontade de Bolsonaro é a destruição da democracia e de toda a esquerda, e de forma violenta se necessário. Trump é um tipo que vem da televisão e que dizia o que fosse preciso para continuar na televisão. Bolsonaro é o herdeiro de uma linhagem ideológica dentro das forças armadas, a "linha dura", que acreditava que a ditadura não era violenta e repressiva o suficiente.

Quando comecei a trabalhar neste livro não tinha noção do quão relevante se revelaria. Bolsonaro apresentou-se como o representante de uma tendência violenta de anticomunismo que emergiu dos anos da ditadura militar brasileira.

No ano passado, Bolsonaro tentou encenar uma espécie de golpe popular, nestas últimas semanas têm saído notícias sobre conversas particulares entre ele e alguns militares. Há uma ameaça plausível de um golpe?

Essa possibilidade tem de ser levada muito a sério. Acho honestamente que nunca devemos fazer previsões no que diz respeito à política brasileira. Ninguém está a prever um golpe, mas é uma ameaça.

Há muito que o Bolsonaro gostaria de se ter visto livre da democracia. Isso não é uma conspiração, ele diz isso constantemente. Para que as eleições decorram de forma legítima, toda a gente terá que estar muito atenta e vigilante. Há muita gente no Brasil que gostaria de fazer um golpe de Estado, incluindo o presidente. 

A questão é: consegue fazê-lo? Teria o apoio, nos vários segmentos da população, que o faria ter sucesso? O grande ponto de interrogação é o exército, porque tem uma grande base de apoio na polícia. E o que faria a comunidade internacional? Como reagiriam as elites económicas? 

Lula conseguiu convencer muitos brasileiros que deveriam voltar a votar em si, mas ainda precisa de convencer muitas pessoas. Se algum dos centros de poder na sociedade brasileira tentar opor-se, isso será um grande problema para Lula.

Acredito que as eleições serão legítimas e tenho esperança que tudo acontecerá normalmente e que os resultados serão respeitados. Não acredito que acontecerá uma ruptura democrática, mas será preciso estarmos vigilantes, porque muitas pessoas não vão aceitar facilmente o regresso do PT [Partido dos Trabalhadores] ou a derrota de Bolsonaro.

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