sábado, 2 de julho de 2022

Portugal | UM GOVERNO EM “MODO DE VOO”

Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião

No terramoto político de ontem em Portugal, Pedro Nuno Santos marcou-se como seguro. Só uma visão muito ingénua da política pode admitir que o processo de decisão sobre a construção de um novo aeroporto (ou de dois, no caso em concreto), já amplamente debatida com autarquias, com a ANA e outras entidades, anunciada pelo próprio ministro em "prime time" televisivo, possa ter sido omitido a António Costa e a outros membros do Governo. É muito difícil acreditar no acto de contrição do ministro das Infraestruturas quando tudo soa a tacticismo e sobrevivência. O desconforto é evidente.

Quando os portugueses entregaram uma maioria absoluta a António Costa, não pensaram na instabilidade que iriam criar na luta interna pela sucessão no PS. É absolutamente incompreensível que uma precipitação ou excesso de voluntarismo de Pedro Nuno Santos comprometa as suas ambições em liderar o Partido Socialista mas é totalmente entendível que António Costa o queira manter por perto, diminuído. A guerra civil irá acalmar dentro do partido. A desnecessidade de consensualizar a decisão com o PSD de Luís Montenegro, que já, no início de Junho, registara a "confissão de incompetência" de António Costa por procurar esses mesmos consensos, foi devidamente assinalada por Pedro Nuno Santos antes da revogação do despacho. Há um PS que acha que não precisa do PSD para nada, mas há um primeiro-ministro que não hesitará em simular negociações, mesmo quando o futuro líder da oposição delas se distancia e a solução a propor já aparece em envelope lacrado. Marcelo Rebelo de Sousa percebeu a gravidade da situação e não falou até o facto consumado. Apanhado de surpresa pelo inusitado, conteve-se, esperando para perceber que só lhe restava unir os laços. No limite, poderá ser ele mesmo a consensualizar com António Costa aquilo que Montenegro não quer pela sua nova lógica de oposição. No momento em que Marcelo apela ao consenso e à rapidez da decisão, Montenegro, distanciando-se, arranca na liderança do PSD em maus lençóis. Qualquer solução que acabe com uma discussão de décadas e seja distinta da que foi agora apresentada como ideal parecerá um plano de fuga num desenho de inconsistência. O ministro das Infraestruturas conseguiu afundar um porta-aviões em plena pista de aterragem de aeroporto.

Um Governo em "flight mode". Este espectáculo de assincronismo, com António Costa a cuidar das ambições europeias e os potenciais candidatos à sucessão em roda livre, não pode permitir a vitória do esquecimento perante o caos e o desastre que se anuncia para o SNS. Para além da enorme gravidade e calibre da proposta, feita despacho revogado. A dimensão megalómana de construir dois aeroportos, aniquilando um já existente e sem debater com seriedade o plano ambiental e uma nova travessia sobre o Tejo, é completamente incompreensível e um desrespeito aterrador por um país assimétrico que já deixou de ter duas velocidades, para escolher andar parado.

O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA

*Músico e jurista

Sem comentários:

Mais lidas da semana