terça-feira, 30 de agosto de 2022

Portugal | PARA TERMOS UMA IDEIA

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Quando um líder partidário elogia o linchamento do bispo castelhano de Lisboa em 1383 e o compara ao primeiro-ministro, rematando com "não é para terem ideias, mas nós estamos noutro momento de risco da pátria", se calhar não é só mais um sound bite.

Fernão Lopes quem conta. Martinho de Zamora (cidade de Castela onde nasceu), bispo de Lisboa, "bom grande letrado e bom eclesiástico" que "regia mui bem sua igreja", fechou-se na Sé quando no dia 6 de dezembro de 1383, na sequência do homicídio do conde de Andeiro, ouviu os sinos da cidade a repicar.

Como os da Sé não soassem, alguns "homens-bons do concelho" terão então subido a um dos torreões e perguntado ao bispo porquê, tendo este dito que não sabia o motivo para o fazer. Não estaria segundo o cronista no intuito dos que foram falar com o clérigo fazer-lhe mal, mas o povo furioso exigia que o atirassem Sé abaixo, ameaçando os que estavam com ele. Estes, aventa o cronista, terão considerado não haver alternativa, e arremessaram o prelado.

A morte não matou a raiva da turba: desnudaram-lhe o cadáver, roubaram o que havia para roubar, agrediram-no até fartar e depois "assim o arrastaram pela cidade, com as vergonhosas partes descobertas e o levaram ao Rossio, onde o começaram a comer os cães, que o não ousava nenhum soterrar."

Testemunho do horror e bestialidade a que pode conduzir o ódio político, nacionalista e religioso - havia um cisma na Igreja Católica à época -, eis um relato do qual, pensar-se-á, não passará pela cabeça de alguém orgulhar-se.

Engano: há quem se orgulhe. Ou quem diga orgulhar-se, o que dá igual. Viu-se isso este fim de semana, na "academia de verão" do partido de extrema-direita, quando o seu líder, a propósito ao que parece da vinda de imigrantes para Portugal, invocou o episódio de modo elogioso, louvando como "coragem" e "força" a façanha de arremessar um sacerdote católico, desarmado e sozinho, de um torreão, profanando de seguida o seu cadáver.

"Até quando fomos invadidos, até quando os espanhóis nos dominaram e escrevemos os Lusíadas, até nesse momento tivemos coragem de pegar no bispo de Zamora, que estava na cidade de Lisboa, e atirá-lo lá de cima da torre. (...) É verdade: foi atirado da torre e depois foi dado de comer aos cães", disse o líder e presidente do grupo parlamentar do referido partido, prosseguindo, entre risos e mímicas e ante as gargalhadas e aplausos da audiência: "Não digo que façamos isto a António Costa... mas já me pass... não é que o nosso parlamento é alto! Lá de cima, também... Mas reparem como tivemos essa força. Não é para terem ideias, mas nós estamos noutro momento de risco da pátria."

Por esta altura já conhecemos bem a técnica habitual deste político, que depois de tentar a sorte no PSD decidiu, ao dar-se conta do êxito que o discurso de ódio teve no Brexit, com Donald Trump, com o Vox e Bolsonaro, copiar a fórmula e criar um partido como projeto de poder pessoal.

Passa por fazer determinadas afirmações (ou até gestos - recorde-se a forma como várias vezes, quando sabe estar a ser fotografado, encena o que parece ser a saudação fascista, para depois a desfazer e poder dizer que estava "simplesmente a acenar"), que sabe irem causar indignação, de modo dúbio, como se fossem "piadas" ou "forças de expressão", para obter o máximo de efeito mediático mas poder recuar e vitimizar-se, alegando "perseguição" e "ter sido mal interpretado". Aqui, bom ator que é, levou a performance (quantas vezes ensaiou aquilo?) ao ponto de iniciar as frases e não as terminar, de modo a que toda a gente saiba o que quis dizer enquanto se defende juridicamente de uma acusação de incentivo à violência.

Outra coisa que devemos notar, além de que não sabe quando os Lusíadas foram escritos e tem da história de Portugal um conhecimento de banda desenhada, é que a sua retórica tem vindo a tornar-se cada vez mais violenta - e graficamente violenta. Foi já várias vezes suspenso no Facebook e Twitter por discurso de ódio; em 2021, queixou-se de o censurarem por ter escrito que Eduardo Cabrita, então ministro da Administração Interna, "devia ser decapitado". Agora, elogia a coragem de um linchamento "em nome da pátria", fazendo equivaler o bispo alegadamente "traidor" e "inimigo" ao primeiro-ministro.

Não admira pois que atraia pessoas que acreditam que a violência é uma prática aceitável. Não admira que transpire que um deputado e membro da direção foi agredido numa reunião; que é comum os membros do partido ameaçarem-se e insultarem-se. Não admira que um candidato autárquico tenha sido preso por disparar contra uma família estrangeira - um crime que foi descrito como tendo motivação xenófoba.

Mas não é só às personagens de aspeto patibular e modos de taberna que pululam no partido que a fórmula atrai; por mais que repugne e por mais que pareça impossível, está provado que funciona, ou não tivesse multiplicado votos e deputados, aqui como noutros países.

Estão identificados pelos cientistas políticos os fatores-chave do êxito: a criação da ideia do "Outro", ou seja a tendência para ver os membros dos outros partidos como essencialmente diferentes, alienígenas; a aversão, ou tendência para não confiar e não gostar de pessoas que não sejam do mesmo partido ou não professem as mesmas ideias; e a moralização, ou seja a tendência para ver esses "outros" como iníquos. Tudo junto, é uma mistura explosiva, que conduz, como se tem provado - agora como noutras alturas da história - da violência discursiva à física.

O que deve então admirar é que, conhecendo-se os resultados que este tipo de retórica tem, se veja um discurso como o deste domingo a passar como mais um sound bite, mais um fait divers, reproduzido no site de um dos canais de TV sem qualquer enquadramento ou questionamento.

É como se, apesar de fazerem notícia de toda e qualquer afirmação deste político, por acharem que "dá cliques" e audiências, e assim o promovendo e dando lastro à sua mensagem, os media fossem incapazes de perceber o que estão a ver e ouvir.

Ou, quiçá, achem que têm de ser "imparciais".

"Imparciais" como foram quando num debate na campanha das últimas presidenciais, nas quais foi candidato, mostrou uma foto de um grupo de pessoas negras com Marcelo e acusou este de estar "com os bandidos e a bandidagem", sem que nem o presidente nem a jornalista presente ou quem nos vários canais comentou o debate tenham sublinhado a gravidade da afirmação. Foi preciso que o assunto chegasse aos tribunais, com condenação do político e do partido por difamação e discriminação socioeconómica e étnica, para os media terem uma ideia daquilo a que tinham impavidamente assistido. Daquilo que, com passividade acrítica, comercial e imoral, estão - estamos - a promover.

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