quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Portugal | OLHO POR OLHO E DENTE POR DENTE, DISSE ELA

É curioso que, querendo atingir o Governo, os senhorios apontam armas aos estudantes. Fazem mal, mas raciocinam bem. Este é um assunto da responsabilidade do Governo.

Carmo Afonso* | Público | opinião

Esta semana a porta-voz da Associação Lisbonense de Proprietários, Diana Ralha, admitiu que pudesse ser lida como “olho por olho e dente por dente” a decisão concertada dos proprietários de não colocar casas no mercado de arrendamento e sobretudo para estudantes.

Esta decisão dos proprietários é uma retaliação ao anúncio do Governo de fixar em 2% a atualização das rendas no início do próximo ano. Os números apontariam para um aumento muito superior – cerca de 5,43% - mas é certo que António Costa também anunciou uma medida de compensação integral para os senhorios: a diferença, entre o aumento máximo que poderão aplicar e o aumento que resultaria da inflação, será convertida em benefício fiscal em sede de IRS ou IRC dos proprietários.

O Governo fez a sua parte. Interveio no mercado para proteger o interesse de quem arrenda casa e ainda acautelou os interesses dos senhorios. Sucede que esta intervenção foi uma exceção num mercado imobiliário completamente dominado pelas suas próprias dinâmicas. A ver: temos o mercado imobiliário que resultou do jogo da oferta, e sobretudo da procura, puro e duro. Dificilmente se encontra melhor exemplo do liberalismo a funcionar e dos respectivos efeitos.

Os senhorios têm efetivamente o poder de fazer mossa. É que, antes dessa decisão de vender casas em vez de as disponibilizar para arrendamento, a situação já era gravíssima. Agora a escassez de oferta levará a um novo aumento dos preços e ditará que muitos nem terão casa.

Os estudantes precisam de alojamento e têm direito a ele. Sucede que o aumento do número de estudantes a ingressar nas universidades não tem sido acompanhado pelo aumento da oferta de alojamento estudantil público. Há muito que os estudantes recorrem ao mercado de arrendamento. É certo que algumas empresas privadas construíram residências universitárias, mas a preços altos e incomportáveis para grande parte das famílias portuguesas. Não combateram a crise, beneficiaram dela.

Em 2018 a situação dos estudantes, em Lisboa, já era insustentável: preços a cerca do dobro do resto do país e escassez de quartos. Neste momento, e o problema agora alastra-se ao resto do país, estamos à beira da rotura.

Foi neste contexto que a ALP decidiu tomar medidas que, representando uma represália para o Governo, vão atingir em cheio, e imediatamente, quem precisa de arrendar casa e especialmente os estudantes.

O alojamento para estudantes é bom exemplo daquilo que deveria ser um serviço público e não estar entregue ao funcionamento do mercado. O resultado de tratar como negócio o que deveria ser assegurado pelo Estado está à vista: os estudantes não têm alojamento ou encontram-no a preços inacessíveis.

Os senhorios - que desde sempre reclamam, e com alguma razão, que não devem ser eles a fazer o serviço público de manter as rendas antigas - passaram de supostos prestadores de um serviço público a guerrilheiros liberais ou inimigos públicos. Lamentam muito a situação dos estudantes, mas não hesitam em dar-lhes a tacada final. É curioso que, querendo atingir o Governo, apontam armas aos estudantes. Não é jogo limpo. Mesmo a guerra tem as suas regras. E é curioso que contam com isso atingir o próprio Governo. Fazem mal, mas raciocinam bem. Este é um assunto da responsabilidade do Governo; se corre mal, é o Governo que fica em xeque.

Era bom que servisse de lição.

Não é nas mãos do mercado, e ainda menos nas mãos de senhorios acossados, que deve estar o direito dos estudantes a alojamento. Também quem procura casa e não tem meios, para concorrer com inquilinos abastados, está em maus lençóis e mereceria proteção.

Os portugueses confiaram no bom senso do mercado, mas o mercado não tem cara e ainda menos tem bom senso. Não lhe podemos confiar aquilo de que não podemos prescindir. O fornecimento de bens e serviços essenciais tem de ser assegurado pelo Estado ou por ele regulado. A cartilha básica da social democracia dos anos 70 é vista, nos tempos que correm, como ideologia de esquerda radical. Grande mudança. Mas a vida das pessoas e aquilo de que precisam não mudou nada.

Cometeu-se aqui um erro. E não se diga que, por ele, pagam os de sempre. Desta vez as consequências chegam a quase todos. São uma pequena minoria, os portugueses que podem agora arrendar ou comprar casa nos centros urbanos. Perdeu-se o direito à cidade. Os estudantes podem, com a experiência que os aguarda, chegar a algumas conclusões e talvez façam melhor quando chegar a sua vez.

*A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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