sábado, 29 de outubro de 2022

Angola | O ADORADOR DE SAVIMBI ARREPENDIDO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Em Março de 1988 o regime de apartheid da África do Sul era derrotado pelas FAPLA no Triângulo do Tumpo. P W Botha ordenou ao chefe dos serviços secretos, Neil Barnard, para ir buscar Nelson Mandela à Cidade do Cabo. O chefe dos racistas tinha pressa em negociar a transição. Era a única forma de salvar alguma coisa, já que a ocupação ilegal da Namíbia também tinha os dias contados. Daí ao Acordo de Nova Iorque foi um pequeno passo. 

O futuro Presidente da África do Sul contou que já no fim das conversações com Neil Barnard, telefonou a PW Botha no dia do seu aniversário (12 de Janeiro) para lhe dar os parabéns. O chefe do apartheid, para retribuir a amabilidade, convidou-o para tomar chá e serviu-o. “Saí com a impressão de que tinha falado com um chefe de estado criativo, caloroso, que me tratou com todo o respeito e dignidade”, recordou depois Nelson Mandela nas suas memórias.

Nas negociações em Nova Iorque, Angola, Cuba e África do Sul prescindiram das grandes potências e tudo correu bem. Mas ficou um grande problema por resolver. O que fazer aos sicários da UNITA? Porque várias unidades do Galo Negro também foram esmagadas pelas FAPLA no Triângulo do Tumpo. Jonas Savimbi já era tóxico para Paris, Bruxelas, Londres e Washington. A imensa generosidade dos angolanos e do Presidente José Eduardo dos Santos  conduziu ao Acordo de Bicesse.

Naquele ano de 1988, os apoiantes políticos, financiadores e fornecedores de armas à UNITA já sabiam que só um milagre tirava o Galo Negro e Jonas Savimbi do caixote do lixo da História, onde ficavam a fazer companhia ao finado regime de apartheid e seus sequazes. Por isso, recorreram a Fred Bridland para escrever uma “biografia” romanceada e adocicada do criminoso de guerra. 

A obra foi publicada em inglês mas rapidamente traduzida para português e publicada em Portugal pela editora Perspectivas & Realidades, propriedade de João Soares. Cada título do catálogo escorre das suas páginas o sangue dos diamantes roubados pela UNITA ao Povo Angolano.

O livro chama-se “Jonas Savimbi : Uma chave para a África”  e tem 605 páginas. Um verdadeiro calhamaço que balança entre a invenção e o ridículo. O autor esforça-se por apresentar Jonas Savimbi como o asceta da mata, o revolucionário impoluto, o grande lutador contra a presença de russos e cubanos em África. Enfim, o criminoso de guerra, segundo Fred Bridland, era um modelo para o continente africano.

O biógrafo de Jonas Savimbi, arrependidíssimo, por considerar o criminoso de guerra como a “chave de África” publicou agora um novo livro, “A Guerrilha e o Jornalista” onde afirma que o chefe do Galo Negro afinal é um assassino psicopata. Mas que grande cambalhota! A nova obra de Fred Bridland apresenta depoimentos de algumas vítimas do criminoso de guerra, entre as quais Tito Chingunji, que o autor considera “o jovem e brilhante secretário dos Negócios Estrangeiros da UNITA”. E diz mais. Ele aproximou-se do biógrafo “para o ajudar a revelar que Savimbi era na verdade um tirano assassino especialmente psicótico”. 

Escreve Fred Bridland: “A história é tão absurda, tão diabólica, que me sinto demasiado desconfortável em contá-la por medo de ser desacreditada. Tito Chingunji contou-me a história básica e eu enriqueci-a confirmando os factos em várias outras fontes”.

Jorge Valentim foi o primeiro angolano a denunciar a vertente assassina de Jonas Savimbi. Na sua obra descreve as fogueiras da Jamba de uma forma arrepiante. Conta um pormenor chocante. Jonas Savimbi, olhos injectados, disse-lhe ais berros: Corra, corra, vá buscar lenha para a fogueira! Estranhamente, ninguém reagiu à descrição de como as elites femininas da UNITA foram queimadas vivas na Jamba, algumas com os seus filhos bebés ou crianças de tenra idade. Bela Malaquias voltou ao tema de uma forma ainda mais chocante. As páginas do seu livro são uma acusação a todas e todos os angolanos que se remetem ao silêncio, face aos hediondos crimes de Jonas Savimbi naquele “Setembro Vermelho”.

Fred Bridland descreve a relação amorosa de Tito Chingunji com Ana Isabel Paulino, antes de ser a Senhora Savimbi, que o criminoso de guerra enterrou viva no covil de um jimbo, perto do Bailundo. Abílio Camalata Numa colaborou no crime e agora diz que vai defender a democracia e as instituições republicanas. Um assassino cruel vestindo a pele de cordeiro.

Jonas Savimbi mandou Tito Chingunji para Marrocos e obrigou Ana Isabel Paulino a ser sua mulher. Para prevenir recaídas, matou cruelmente o outro! Escreve o biógrafo arrependido do criminoso de guerra, sobre as fogueiras da Jamba:

“Os guarda-costas e comandos de Savimbi receberam ordens para garantir que ninguém perdesse grande comício na praça da Jamba. À medida que as pessoas se dirigiam para a arena - onde equipas de televisão internacionais filmaram políticos e funcionários de alto escalão dos EUA, britânicos, portugueses, franceses e checoslovacos - viram uma pilha gigante de madeira no centro e homens vendados amarrados a árvores à beira da arena. Era a praça do desfile. Savimbi chegou com seus oficiais superiores. Todos usavam lenços escarlates.

Soldados formaram batalhões e companhias para prestarem honras militares a Savimbi, à sua chegada. Bela Malaquias, que estava entre a multidão, mais tarde escreveu uma autobiografia baseada nas suas experiências como membro da UNITA. Escreveu ela: A atmosfera era de terror. Canções revolucionárias foram cantadas pelos soldados: “Amigos, apenas ouçam os ensinamentos do nosso grande rei, Jonas Savimbi. Só a ele seguimos!” Bela Malaquias disse que houve malabaristas, dançarinos tradicionais e uma demonstração de karatê antes de Savimbi se levantar para falar de um dia que seria lembrado como Setembro Vermelho.

De acordo com relatos recolhidos por Tito, Eduardo Chingunji, Bela Malaquias e outros, Savimbi disse que as bruxas estavam assolando o movimento, fazendo com que soldados perdessem a vida nas linhas de frente do campo de batalha. A partir de hoje as bruxas não serão mais capazes de sabotar o esforço de guerra, disse o líder da UNITA. Um destacamento armado caminhou em direcção aos homens vendados. Os soldados alinharam, atiraram e os homens caíram mortos, ainda presos pelas cordas às árvores.

Savimbi tinha apenas começado.

Ele ordenou que todas as pessoas, crianças também, pegassem em lenha e a jogassem na pilha. A fogueira gigante foi acesa. O Mais Velho disse nomes de mulheres e pediu-lhes que dessem um passo em frente. Elas, disse Savimbi, eram bruxas que haviam sido condenadas à morte. Algumas tinham filhos – eles também morreriam com suas mães porque “filho de cobra também é cobra”. A trupe de música de propaganda feminina de Savimbi, o chamado Departamento de Agitação e Politica (DAP), aplaudiu e dançou. A maioria dos membros do DAP eram concubinas Savimbi.

Savimbi disse que o que estava para acontecer seria um exemplo para todos: As pessoas que praticassem feitiçaria seriam queimadas. Qualquer um que defendesse as mulheres condenadas estaria em apuros. 

Vitória Chitata implorou a Savimbi que salvasse o seu filho pequeno, que foi arrastado com ela para a fogueira. Ninguém se mexeu e ela e o filho morreram juntos nas chamas.

As mulheres cujos nomes Savimbi leu em voz alta foram ordenadas a comparecer diante da plataforma presidencial. Uma mulher chamada Judite Bonga foi chamada primeiro. Judite ficou tão chocada que não conseguiu mexer-se. Comandos agarraram-na e atiraram-na para as chamas. Testemunhas oculares disseram que ela saltou do fogo e implorou por misericórdia. Savimbi levava sempre à cintura uma pistola de cabo de marfim que fascinava tanto os repórteres que a tornaram quase tão famosa como o próprio homem. Agora ele sacou a arma e com um de seus generais mais antigos, forçou Judite a voltar para o fogo onde morreu.

Vitória Chitata implorou a Savimbi que salvasse o seu filho pequeno, que foi arrastado com ela para a fogueira. Ninguém se moveu. Morreram juntos nas chamas. Vitória clamou por alguém para salvar o seu filho, que ela disse ser inocente. Ninguém se mexeu.


Aurora Katalayo, irmã mais nova de Violeta Chingunji e tia de Tito, era pediatra e hematologista com formação médica na Suíça. Ela também era viúva de um comandante guerrilheiro popular, o major Mateus Katalayo, que ela disse a parentes e amigos ter sido morto por ordem de Savimbi três anos antes. Katalayo criticou publicamente Savimbi por tentar destruir o seu casamento.

O jornalista e escritor vencedor do prémio Pulitzer Leon Dash, que passou três meses nas matas com os combatentes da UNITA, conheceu Mateus Katalayo durante a primeira das suas duas longas caminhadas por Angola. Katalayo actuou como intérprete de Dash. “Suspeitei então que o major, inteligente e de fala directa acabaria colidindo com Savimbi”, disse Dash. “Mateus era demasiado independente para endeusar qualquer homem.”

Aurora Katalayo recusou resolutamente os convites de Savimbi para dormir com ele antes ou depois da morte de Mateus. Aurora, de acordo com vários relatos, protestou veementemente a sua inocência ao ser arrastada da multidão com seu filho Michel, de quatro anos.

“Eu não te fiz nenhum mal. Eu não mereço isto. Depois deste dia, é o começo do teu fim, Savimbi”, disse Aurora. Ela amaldiçoou Savimbi em voz alta, chamando-lhe criminoso e avisando que ele se condenou e nunca seria vitorioso, quando ela e Michel foram lançados nas chamas. A prova que Savimbi deu da feitiçaria de Aurora foi a “swissificação” de Michel e sua irmã de 12 anos M’Bimbi, mas, segundo Tito e outras fontes, ela morreu apenas por causa de sua resistência aos avanços sexuais de Savimbi.

Quando Clara Miguel foi chamada para ser queimada, estava com a filha bebé nos braços. Segundo relatos, ela não disse nada, mas jogou o seu filho nos braços do par de mãos mais próximo antes de caminhar para a morte.

Bela Malaquias escreveu isto: ‘Num acto de grande traição, o marido de Clara correu na sua direção e empurrou-a na direcção ao fogo. Suponho que ele queria demonstrar, tal era o seu pânico e medo, que não tinha nada a ver com a feitiçaria da esposa e do filho e que apoiava a acção do presidente Savimbi de livrar o partido de todas as mulheres perigosas’. 

Um homem solitário, João Kalitangue, morreu na fogueira. Sua esposa, uma enfermeira qualificada, cuidava há muitos anos da mãe de Savimbi. Isabel Kalitangue era professora de jardim de infância, e seus quatro filhos dos 7 aos 15 anos, incluindo uma filha com deficiência mental, e um sobrinho de 12 anos,  também foram queimados vivos.

Descobri anos depois que outra mulher assassinada por Savimbi nas chamas foi Arlete Navimbi Matos, irmã da esposa de Tito, Raquel, e mais uma das muitas concubinas de Savimbi. Navimbi estava grávida de Savimbi no momento de sua morte, já tendo dado à luz uma filha dele, Celita Navimbi Sakaita. O seu crime, segundo os caçadores de bruxas de Savimbi, foi ter sobrevoado várias vezes a residência principal do líder da UNITA para o impedir de ganhar a guerra.

Tony da Costa Fernandes testemunhou as mortes nas fogueiras. Ele descreveu-me os factos como sendo os mais horríveis que alguma vez  experimentou”. 

O livro do qual tirei este texto tem o título “The Guerrilla and the Journalist: Exploring the Murderous Legacy of Jonas Savimbi”, de Fred Bridgland. Foi publicado por Jonathan Ball.

Fico à espera de ver se João Soares vai publicá-lo em Portugal. Mas acima de tudo fico à espera de saber o que vai acontecer a Adalberto da Costa Júnior e todos os sicários da direcção da UNITA. Porque todos dizem que Jonas Savimbi é o seu modelo, o seu farol, o seu guia, o seu exemplo. 

E as instituições do Estado Angolano não têm nada a dizer sobre o Setembro Vermelho? As vítimas eram cidadãs e cidadãos angolanos. Nunca se esqueçam!

*Jornalista

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