terça-feira, 22 de novembro de 2022

Portugal | POLÍCIAS E ÓDIO, UMA RE(VE)LAÇÃO PACÍFICA

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Não pode ser novidade para ninguém, muito menos para sindicatos e hierarquias, a existência de discurso de ódio nas polícias. Se não é sequer novidade a existência de violência suscitada pelo ódio - e a sua desculpabilização. Descontando a evidência da escala, nada no panorama exposto pela investigação do Consórcio é novo.

"Tens muitas saudades da Kova, dasse"; "Eu andei nessas colónias mais de 15 anos, saudades???? Puta que os pariu esses indígenas todos." Estas duas frases, escritas por um subchefe da PSP em público, na página de Facebook (FB) de outro agente da mesma polícia, e referindo-se ao bairro da Cova da Moura, foram reproduzidas em novembro de 2020 numa notícia do DN.

A notícia, publicada em 27 de novembro de 2020, diz respeito a um post, também público, da autoria do dono da página, João Nunes, um dos condenados no caso da esquadra de Alfragide (ou da Cova da Moura) - a quatro anos de prisão, com pena suspensa por igual período -, em reação à decisão do Tribunal da Relação que confirmava a sua condenação.

De acordo com o que ficou provado em tribunal, Nunes abriu, a 5 de fevereiro de 2015, fogo com a shotgun (que dispara balas de borracha) no bairro da Cova da Moura, atingindo duas mulheres e depois, dentro da esquadra de Alfragide, alvejou à queima-roupa, com a mesma arma, um homem, Celso Lopes, que em resultado ficou com lesões permanentes numa das pernas. A seguir, o agente mentiu no relatório em que descrevia o motivo pelo qual usou a arma. Cinco anos e nove meses depois desses factos, no momento da confirmação da sua condenação por três crimes de ofensa à integridade física qualificada e por um crime de falsificação de documento agravado, continuava ao serviço da PSP; tinha sido apenas suspenso por seis meses, como medida disciplinar preventiva, entre julho de 2015 e janeiro de 2016, em resultado do processo disciplinar da Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI).

Uma pena suspensa significa que o seu objeto está sujeito a determinadas condições durante o seu cumprimento - que naturalmente implicam não cometer crimes. João Nunes, no entanto, decidiu, naquele post no FB, caluniar as suas vítimas, apelidando-as de "bandidos com cadastro", "traficantes" e "vagabundos". Crismou também o sistema judicial de "madeira podre e nojenta", assegurando ser um "facto" ter sido "condenado por ter feito o seu trabalho, conforme toda a legislação em vigor".

Entre os "amigos" de Nunes no FB, consultáveis por qualquer pessoa, estavam, como o DN referiu, pelo menos dois dirigentes sindicais conhecidos: Jorge Resende, presidente do Sindicato Nacional de Oficiais de Polícia, e Pedro Magrinho, presidente da Federação Nacional dos Sindicatos de Polícia, e nº 2 da lista do Chega por Setúbal nas legislativas de 2019.

Confrontada pelo jornal com o post de Nunes, no qual vários outros polícias exprimiam a sua concordância com o escrito, a direção da PSP admitiu ter "conhecimento da referida publicação" mas alegou desconhecer "de momento, quem seja, de facto, o responsável", recusando pronunciar-se "sobre a interpretação do texto". Assegurou no entanto que "quando verificados conteúdos que possam constituir matéria disciplinar ou criminal, a PSP desencadeia os procedimentos legalmente previstos que se coadunem com cada situação em concreto". Apesar de repetidamente questionada pelo DN sobre as consequências daquele escrito do agente (que o apagou depois de o jornal contactar a PSP), esta polícia nunca respondeu.

A PSP também nunca explicou, apesar de a isso instada pelo DN, por que motivo manteve ao serviço, até hoje, quer João Nunes quer todos os outros sete agentes condenados no mesmo caso, nomeadamente os três que receberam penas superiores a três anos, as quais de acordo com o Estatuto Disciplinar da PSP constituem "infração disciplinar muito grave", implicando "demissão" ou "aposentação compulsiva".

De resto, apesar de Luís Farinha, que era diretor da PSP na altura dos acontecimentos na Cova da Moura, ter em 2017, quando foi conhecida a acusação do Ministério Público, falado em "episódios negativos recentes que afetaram a imagem e a confiança na instituição, protagonizados por quem não honra o compromisso de ser polícia", assegurando "soluções adequadas", o atual diretor desta polícia, Magina da Silva, nunca exprimiu qualquer juízo crítico específico sobre o comportamento dos agentes condenados. Aliás, quando foi inquirido sobre a sua reação à condenação, falou em "calma na análise ao processo", assegurando por um lado que não hesitaria em "punir os polícias que violarem de forma grave e dolosa os seus deveres funcionais", e por outro que defenderia "até às últimas consequências os agentes que forem injustamente acusados, inclusive na praça pública".

Como nenhum dos agentes em causa foi expulso da PSP, tem de se concluir que Magina da Silva considera que "não violaram de forma grave e dolosa os seus deveres funcionais". Ou seja, aparentemente nem lhe interessa o julgamento dos tribunais nem o próprio Estatuto Disciplinar da polícia que dirige, o que é o mesmo que dizer que a lei não lhe diz muito.

Coisa que se percebeu logo no seu primeiro dia em funções, quando entendeu garantir, sobre a atuação do agente da PSP Carlos Canha no caso de Cláudia Simões, e enquanto os inquéritos disciplinar e criminal respetivos estavam no seu início, que o que vira nos vídeos que circulavam (mostrando o agente em cima da mulher a fazer-lhe uma "chave ao pescoço") era "um polícia a cumprir as suas obrigações" e "uma atuação policial legítima".

Uma tal desautorização inaugural, pelo diretor da PSP, quer do MP (que viria em outubro de 2021 a acusar Carlos Canha, mais outros dois agentes, por agressões a Cláudia Simões) quer da IGAI, a instituição que fiscaliza as polícias, encarregada pelo governo do inquérito disciplinar, passou no entanto como se fosse normal.

Tivemos de esperar quase três anos para que surgisse uma reação institucional a este discurso de Magina da Silva (que de resto é a prática habitual na PSP e na GNR quando existe algum caso que as envolva: apresentam sempre comunicados em que se relata, como verdade, a versão favorável aos agentes envolvidos).

A reação veio da dirigente da IGAI, a juíza Anabela Ferreira, na reportagem sobre discurso de ódio nas polícias, do Consórcio de Jornalistas de Investigação. Diz Anabela Ferreira o óbvio ululante: "Não é boa prática emitir comunicados imediatamente depois dos acontecimentos".

Caso para perguntar o que fez a IGAI em relação a isso até hoje (se alguma coisa, não surtiu qualquer efeito, como se constata). Como para questionar os sucessivos governos que tal permitiram, criando assim as condições para que nas polícias se alimente a ideia de que estão acima da lei, e nos agentes a noção de que a instituição em que são supostos servir a legalidade tem como princípio defender-se, defendendo-os, contra tudo e contra todos, incluindo essa mesma legalidade.

Direções de polícia que afrontam - porque é disso que se trata - a justiça e a entidade que as fiscaliza, que recusam o escrutínio do jornalismo, que mantêm ao serviço, contra a própria lei, agentes condenados por crimes gravíssimos, e que perante a evidência do discurso de ódio no seu seio em vez de o investigar e punir fazem vista grossa (como se comprova pelo caso reportado pelo DN em 2020) e ainda se queixam, como fez Magina da Silva aquando da apresentação do Plano de Prevenção de Práticas Discriminatórias nas Forças de Segurança, em julho de 2020, de que os polícias são "bodes expiatórios", não têm lugar num Estado de direito.

Como não têm lugar num Estado de direito sindicatos de polícia que convivem pacificamente, quando não o alimentam, com o discurso de ódio nas suas fileiras - e chegam mesmo ao ponto de apontar a porta da rua a quem o denuncia, como sucedeu com Manuel Morais.

Em 2018, recorde-se, Morais dizia ao DN: "Há elementos das várias forças de segurança que exteriorizam as suas ideias racistas e xenófobas, usam tatuagens e simbologias neonazis, pertencem a grupos assumidamente racistas. Isto é do conhecimento de todos e, infelizmente, as organizações nada fazem para expurgar estes 'tumores' do seio das forças de segurança." E concluía: "Pergunte-se à Inspeção Geral da Administração Interna, à PSP, à GNR, à Guarda Prisional ou a qualquer outra força: o que fazem quando são detectadas estas situações? Nada, não fazem nada."

Mais de quatro anos depois, o nada está à vista - até no facto de as evidências do discurso de ódio nas polícias chegarem aos jornalistas, como sucedeu com o DN nos casos referidos e com a citada investigação do Consórcio, pela mão de agentes chocados com o que veem, e que receiam denunciá-lo dentro das instituições em que servem.

Poupem-nos então ao estrepitoso instaurar de inquéritos, destinados as mais das vezes ao arquivamento; ou as polícias portuguesas chegam à democracia - e começando por cima - ou não há porque afetar espanto ou choque com o resultado.

Imagem em Duas Linhas

Sem comentários:

Mais lidas da semana