segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

CAMPEÕES DO MUNDO EM MATRAQUILHOS – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Manecas Balonas foi campeão mundial de matraquilhos. Ao nível dele, só o Morais “Máré” e eu próprio, que tenho uma esquerda imparável porque sou canhoto. O maior do mundo é angolano do Huambo, filho de um pioneiro do caminho-de-ferro. O tempo fez dele campeão de futebol. Começou a jogar no “Ferrovia” e quando foi estudar Medicina na Universidade de Coimbra, rapidamente ganhou lugar na defesa da primeira equipa de um grande clube português, a Académica, também chamada “Briosa”.

Manecas jogou com grandes campeões como Maló, Mário Torres, Wilson, Piscas, manos Campos, Araújo, Chipenda, Rocha ou Manuel António. Campeões! Um dia a “Briosa” foi jogar com o Sporting Clube de Portugal ao estádio de Alvalade e o senhor árbitro começou a roubar escandalosamente a equipa dos estudantes de Coimbra. Sua graça era Décio de Freitas. Artur Agostinho, Nuno Brás e Amadeu José de Freitas, os narradores desportivos da época, aos microfones da Emissora Nacional chamavam-lhe Doutor Décio de Freitas. Coisa nunca vista.

Depois de muita roubalheira o Manecas foi ter com o doutor da arbitragem e disse-lhe: - Você está a gamar-nos. Fica avisado que se continua a roubar eu não jogo mais! O doutor do apito nem queria acreditar no que ouviu. Mas continuou a gamar. O Manecas foi ter com ele e disse-lhe: - Eu avisei. Não jogo mais! E foi saindo do campo enquanto os colegas o agarravam. O doutor do apito duvidava do que estava a ver. Foi uma cena homérica.

O Manecas licenciou-se em Medicina e quando estava a fazer o internato geral foi preso, acusado de pertencer ao Partido Comunista. Os torcionários da PIDE levaram-no para Lisboa, onde foi entregue aos cuidados do inspector Sacchetti. Interrogatórios mais interrogatórios e o prisioneiro negava todas as acusações. 

O chefe dos torcionários era de Coimbra e num dos interrogatórios disparou: - Doutor, você acredita na imortalidade da alma? O Mancas, com a sua voz de artista da Rádio, respondeu calmamente: - Eu só acredito na imortalidade do átomo. O inspector virou-se para os outros torcionários e disse-lhes para terem especial atenção ao sentido de humor de um verdadeiro coimbrão!

Ao fim de alguns meses de clausura e maus-tratos, eram 22 horas, dois pides entraram na sua cela e levaram-no à presença do Sacchetti. Mais uma sessão de interrogatórios. Face à recusa em aceitar as acusações, o inspector disse-lhe: - Doutor vá à cela buscar as suas coisas, está livre! Agora veja lá, não volte a meter-se em trabalhos, você é um médico!

O Manecas olhou o torcionário nos olhos e com a sua voz cava disse calmamente: - A esta hora não saio daqui. Não tenho dinheiro para a pensão nem para o comboio. Você diz a um destes gajos para amanhã me levarem ao princípio da autoestrada e vou à boleia para Coimbra. Se não tem mais nada para me dizer, vou para a cela.

Uma resposta destas desorienta qualquer defesa. O Sacchetti mandou pôr o prisioneiro na rua e o Manecas foi bater à porta de uns amigos, que lhe deram guarida e emprestaram dinheiro para o comboio. Já estão a ver de que fibra era feito. Apesar de libertado, ficou marcado e nunca mais teve paz. Por isso, mal terminou a especialidade regressou a Angola. 

Manecas arranjou trabalho como médico no Caminho-de-Ferro de Benguela. Mas não estava à espera dos doentes num gabinete. Andava nos comboios e ficava nas estações a dar consultas. Partia depois para outra e assim andou mais de um ano, entre o Lobito e o Luau. Um dia tiraram-lhe parte da carga e só via doentes entre o Luena e a fronteira. Nessa altura tivemos logos convívios. Eu fiz uma reportagem sobre as comunidades ribeirinhas do Zambeze. Depois estive uns meses mergulhado no mosaico cultural do Cassai. A amizade com o Manecas aprofundou-se.

Em 1974, ele era médico anestesista no Hospital Américo Boavida, na altura Hospital de São Paulo. Quando começou a primeira fase da Grande Batalha de Luanda pela Independência Nacional, o Manecas aguentou firme no bloco operatório quando o pessoal médico e outros técnicos foram partindo para Portugal. 

Em 1975, já era o único anestesista na única unidade hospitalar a funcionar em Luanda. Passou a viver lá! Sempre que podia, o Mano Tarique arranjava arroz e peixe-espada frito. Levávamos o pitéu ao Manecas. E ele, à nossa frente, entregava o saco da comida aos colegas do bloco. Um dia, olhou-nos e disse quase em surdina: Eu hei-de acabar com a dor neste hospital. Acabámos de amputar a perna de  um faplinha…

O único anestesista no Hospital Américo Boavida aguentou a segunda fase da Grande Batalha de Luanda. Aguentou a penúria generalizada após a Independência Nacional. Mas tinha um filho quase bebé e entendeu que não podia sujeitar a sua família a tantas dificuldades. Um dia partiu. Foi colocado no Hospital da Figueira da Foz, onde trabalhou até se reformar. 

Hoje telefonei para ele e o telefone não dava sinal. Liguei para o número fixo e atendeu a Fatinha. Perguntei pelo Manecas e ela disse-me, contristada, que ele tinha partido em Maio. Morreu o campeão de matraquilhos. O homem que só acreditava na imortalidade do átomo. O médico que queria acabar com a dor. O militante do MPLA abnegado. O patriota angolano que levou a resistência popular generalizada até ao impensável. 

A morte não me quer. Mas amigou com o Manecas. É a diferença entre um qualquer e um Herói Nacional. Mas quando todas as portas ficarem eternamente abertas,

no céu eu vou dormir. Muílo mungúia, Weza! Vou mesmo dormir no teu céu.

Aceitem esta trova como postal de Boas Festas:

Adeus Menino 

Nas cavernas da rota da seda

o meu irmão fuma ópio e afaga o camelo

come uma tâmara madura

escondido da luz do dia na nuvem de poeira 

que o vento sul sopra em cortina castanha

o horizonte é a sua casa de pedras e palhinha 

quente como a manjedoura inóspita da Palestina

(Vamos explodir menino do deserto

 que a liberdade é um oásis destroçado!)

Nas prisões que vão do mar às nuvens

está prisioneiro o meu irmão que nunca afagou um camelo

nem fumou ópio na solidão da poeira translúcida do vento sul.

(Ao sol escancarado do meio dia há lágrimas puras

derramadas na vala comum de mães desesperadas)

O meu irmão roubou pitangas na granja do chefe de posto

e colheu jinguengue madurinho dos capinzais queimados pelo napalm 

arrasados pela ventania de Março

que soprava em lufadas de calor do alto Pingano

(os cães uivam angústias ao mistério da noite).

O meu irmão sobreviveu aos saldos e à inflação

nas ruas de um império perfumado de sangue suor glamour e burbon

som do contrabaixo rompendo as colunas de fumo do cavô

a cantora soltando mágoas do rapaz do Bindo

levado nas cordas de um barco negreiro lavado nas lágrimas da nossa mãe.

(A cobra cuspideira anda nos ninhos devorando o amanhecer

quem aprendeu a voar sabe cantar o dia que nunca viu nascer) 

África do sofrimento e do cemitério 

onde morre a dignidade dos elefantes

a preciosidade dos seios da amantíssima profetiza Weza

a boca petrificada dos mucubais

a rota apagada dos escravos fugitivos dos passos cativos 

dos abraços quebrados

e o canto rompendo muros e murmúrios

becos iluminados por sete estrelas do Cruzeiro do Sul

e mulheres parindo deuses na fuga para o Egipto

no encalço do alfabeto e do pássaro do Nilo 

que escreveu os falsos evangelhos nos papiros de Alexandria.

(mãe, nossa mãe, como se perdeu tão cedo 

e foi brevíssimo o inebriante sabor do teu leite!)

Maria era mulher rica e opulenta de seios 

mãe do meu irmão que foi pregado na mulemba 

enquanto dançavam kanzumbis 

movidos a pilhas e com controlo remoto

última maravilha dos circuitos integrados.

(As mães do Alabama nunca tinham visto cruzes em brasa

e os meninos do Bindo desconheciam que o Dange era um rio de sangue)

Nas praias do mar Egeu paira o som da ngaeta do meu irmão 

quando Dido enlouqueceu

ululando amor desesperado nos claustros do seu palácio assombrado

nas pedras de Creta está desenhada a fuga dos marinheiros

num tropel desordenado em demanda da cidade de Tebas

ali ao fundo da rua que desce para o Kanwango 

o rio onde naufragou a nossa infância

meninos com alma de pássaros desesperadamente livres

a mandioca curtia nos riachos

e deixávamos crucificar nos troncos das muanzas os passos trôpegos 

de uma liberdade impiedosamente vigiada.

(Se deus fosse grande oferecia à Humanidade o dia prodigioso 

em que os nossos sonhos voaram da valeta para a liberdade)

Nascem deuses a Oriente adorados pelos mágicos dos batuques 

na trepidante festa da morte

todos os seus filhos procuram o som das tumbadoras

o longo manto da rainha das colheitas

o olhar insinuante de uma virgem enjaulada

o desejo ardente de corpos mutilados pelos golpes da escravidão.

(A sorte nunca prestou contas ao destino

e a morte tem asas brancas e corpo de menino).

Nas ruas arruinadas de Luanda pairam os sonhos do meu irmão

uma dança felina no Marítimo da Ilha um beijo longo no Braguês

uma cama de esteira e luz a pitrol no Bairro Operário

quando apagaram a luz mexeram abusadamente na mana Josefa 

e nas nádegas opulentas da bela Canducha

sem respeito pela cadência e o ritimo dos Invejados Kazukuta Cidrália

quem arreia a mãe dele é gato até às cinzas deste Carnaval.

(Nunca esqueçam, mães, os filhos tristemente pródigos

que escolheram andar perdidos da memória dos maternos regaços)

As deusas campestres do Libolo gostam de parir mulatos

e em sinal de perdão pelos presentes e passados maus-tratos

um deles vai ser o messias fatal que se afoga no Natal.

(Aceita, ó bem-amada, a voz incandescente de Belita Palma

que rasga a noite do esquecimento numa labareda de tristeza)

Para apaziguar vinganças eternas

pagar makongos e desonras do último lembamento

amainar ameaças de ódios fundos

plantados no santo espírito da família

estou preparado para ser fuzilado

no voluptuoso quarto de Vénus 

com janela virada para a Estrela da Alba.

(Já pressinto a luz e os passos incertos do Menino Jesus)

*Jornalista

1 comentário:

JOEL PALMA disse...

A vida é feita de emoções. Quem as têm, tesouros têm. Manecas as levou, e deixou muitas para você.

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