Artur Queiroz*, Luanda
As calemas comeram a Ilha do Cabo e para a contra costa não ficar ligada à baía colocaram pedregulhos entre a primeira praia de mar, onde é hoje o Jango Veleiro, e o restaurante São Jorge, perto do farol. Eu acredito em milagres tanto mais que entrevistei o filho de Nossa Senhora de Fátima.
Um dia fui fazer a reportagem do amargo arroz cultivado pelos falidos agricultores do Mondego na zona de Montemor, o mais velho. Estava a jantar num tasco enguias à moda da casa quando entrou um senhor muito bem-posto, botões dourados no casaco e lenço de ceda ao pescoço. Puxei conversa com ele, apresentei-me como repórter.
Ele respondeu imponente: Eu sou o filho da Nossa Senhora de Fátima. Era mesmo. Fiz logo ali uma entrevista entre uma garfada e vários copos de tinto. Quando pensava que ia receber um prémio de jornalismo com aquela peça, perdi o emprego. Mas, acreditem ou não, entrevistei mesmo o filho de Nossa Senhora de Fátima.
Na Ilha do Cabo vi claramente visto um grande milagre. Dois ou três anos depois das obras de protecção da costa, os pedregulhos ficaram cheios de búzios. Toneladas deles, agarrados às pedras. Aos sábados, manhãzinha, íamos apanhar os mariscos que depois a Guinhas cozinhava. À tarde comíamos o petisco enquanto jogávamos sueca.
Eu e o Ernesto Lara Filho
perdíamos
Um dia prenderam o Ernesto Lara Filho. Foi mandado para o “campo de trabalho” do Péu-Péu, também conhecido por Forte Roçadas. Como ele era regente agrícola encartado pela escola de Coimbra, puseram-no a dirigir os trabalhos nas lavras. De prémio, foi-lhe consentido beber vinho e cerveja. Era o único prisioneiro com esse privilégio.
Um dia chegou do Cunene o camionista Catarino. Tinha passado pelo Péu-Péu onde visitou o poeta. E trazia com ele um poema manuscrito intitulado Poema de Sábado. Dactilografei-o na minha sofrida Hermes Baby e o Joca Luandense vendeu-o à Tribuna dos Musseques por 20 escudos que na época davam para comer três dias. O original foi entregue à destinatária, por este vosso criado e o cronista Joca Luandense. Leiam:
(Para a Cesaltina ler num dia em que estiver mais triste)
Vem na terça-feira
Visitar-me
Vem
É um dia que não vem ninguém.
Vem
E traz as tuas filhas de homens diferentes
A Judite, a Cutêto, pequenina sorridente
Vem visitar-me
Mas num dia em que não venha ninguém.
As crianças brincarão sob as goiabeiras e figueiras
Enquanto nós conversamos
Recordamos.
Traz-me os teus carinhos
As tuas kikufutilas
O gindungo da tristeza em teu olhar
Mas não quero que venhas
Num dia em que vier alguém.
(Bem vês
Os meus amigos brancos
Podem encontrar-te e perguntar-me:
- Quem era aquela mulata de ar fanné com quem conversavas?
Poderia responder-lhes:
É a minha irmã mulata.
Mas a Ema está longe, em Benguela, não me pode visitar
E eu não quero responder a ninguém).
Quero só a tua presença
Às terças-feiras
As tuas kitabas, teus doces de ginguba
Tuas filhas a brincar com as borboletas
Que correm os canteiros
Que beijam livres a flores.
Estão tão lindas as tuas filhas!
A Judite tem uns olhos que parecem dois bagos maduros de dendém.
Trarás a promessa prometida
Dei-te um angolar
Pr’á Senhora da Muxima
Ou para a Senhora do Cabo?
Não sei a quem…
Vem
E conta-me a tua vida
O que nunca contaste a ninguém.
Vem com o teu olhar profundo
E embaciado
Quando falas de outros tempos
Com paisagens refulgindo em fundo
O teu olhar já morto
Para certo nundo.
Traz-me a tua alegria
O que ainda tiveres vivo desse teu olhar tão triste
Tão triste como os musseques ao entardecer
Traz-me a tua presença amiga
Mulata tão linda de outros tempos
Cesaltina do Bairro Operário.
Minha amiga
Minha irmã
Minha mãe.
Vem na terça-feira
É um dia em que não vem ninguém…
Eu li o poema ao estilo do Villlaret. No fim beijei a Cesaltina e chorei. A Cutêto encostou a cabeça ao colo da Mamã e sorriu. A Judite ficou sem saber onde pôr os olhos. O Joca Luandense saiu sem se despedir. Tinha a mania que um homem não chora. A Cesaltina disse-me com a voz embargada: Kitó vem sempre aqui mesmo sem as palavras do Mano Arnesto.
Depois fui comer os restos dos búzios e beber cerveja quente porque no Palácio da Cuca não tínhamos geleira. Eu gostava muito dos sábados com búzios da contra costa, sueca, relatos de futebol, e poemas desconjuntados.
Hoje ficam com o poema de sábado do Ernesto Lara Filho escrito quando estava preso no Forte Roçadas, Xangongo na Angola Libertada.
*Jornalista
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