terça-feira, 10 de janeiro de 2023

POEMA DE SÁBADO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

As calemas comeram a Ilha do Cabo e para a contra costa não ficar ligada à baía colocaram pedregulhos entre a primeira praia de mar, onde é hoje o Jango Veleiro, e o restaurante São Jorge, perto do farol. Eu acredito em milagres tanto mais que entrevistei o filho de Nossa Senhora de Fátima. 

Um dia fui fazer a reportagem do amargo arroz cultivado pelos falidos agricultores do Mondego na zona de Montemor, o mais velho. Estava a jantar num tasco enguias à moda da casa quando entrou um senhor muito bem-posto, botões dourados no casaco e lenço de ceda ao pescoço. Puxei conversa com ele, apresentei-me como repórter.

Ele respondeu imponente: Eu sou o filho da Nossa Senhora de Fátima. Era mesmo. Fiz logo ali uma entrevista entre uma garfada e vários copos de tinto. Quando pensava que ia receber um prémio de jornalismo com aquela peça, perdi o emprego. Mas, acreditem ou não, entrevistei mesmo o filho de Nossa Senhora de Fátima.

Na Ilha do Cabo vi claramente visto um grande milagre. Dois ou três anos depois das obras de protecção da costa, os pedregulhos ficaram cheios de búzios. Toneladas deles, agarrados às pedras. Aos sábados, manhãzinha, íamos apanhar os mariscos que depois a Guinhas cozinhava. À tarde comíamos o petisco enquanto jogávamos sueca.

Eu e o Ernesto Lara Filho perdíamos em silêncio. O Álvaro Novais e o Joca Luandense perdiam sofridamente. O Álvarito nunca sabia qual era o naipe do trunfo. O Pedro Jara e o Lopo de Morais quando perdiam, ficavam furiosos e viravam a mesa. Acabava a jogatana entrava a cerveja e o relato dos jogos do Sporingué, Benfica e FC Porto pelas vozes do Artur Agostinho, Nuno Brás e Amadeu José de Freitas. Tínhamos uma vida simplória por isso nunca percebi por que razão os colonialistas nos acossavam furiosamente.

Um dia prenderam o Ernesto Lara Filho. Foi mandado para o “campo de trabalho” do Péu-Péu, também conhecido por Forte Roçadas. Como ele era regente agrícola encartado pela escola de Coimbra, puseram-no a dirigir os trabalhos nas lavras. De prémio, foi-lhe consentido beber vinho e cerveja. Era o único prisioneiro com esse privilégio.

Um dia chegou do Cunene o camionista Catarino. Tinha passado pelo Péu-Péu onde visitou o poeta. E trazia com ele um poema manuscrito intitulado Poema de Sábado. Dactilografei-o na minha sofrida Hermes Baby e o Joca Luandense vendeu-o à Tribuna dos Musseques por 20 escudos que na época davam para comer três dias. O original foi entregue à destinatária, por este vosso criado e o cronista Joca Luandense. Leiam:

(Para a Cesaltina ler num dia em que estiver mais triste)

Vem na terça-feira

Visitar-me

Vem

É um dia que não vem ninguém.

Vem

E traz as tuas filhas de homens diferentes 

A Judite, a Cutêto, pequenina sorridente

Vem visitar-me

Mas num dia em que não venha ninguém.

As crianças brincarão sob as goiabeiras e figueiras

Enquanto nós conversamos

Recordamos.

Traz-me os teus carinhos

As tuas kikufutilas

O gindungo da tristeza em teu olhar

Mas não quero que venhas

Num dia em que vier alguém.

(Bem vês

Os meus amigos brancos

Podem encontrar-te e perguntar-me:

- Quem era aquela mulata de ar fanné com quem conversavas?

Poderia responder-lhes:

É a minha irmã mulata.

Mas a Ema está longe, em Benguela, não me pode visitar

E eu não quero responder a ninguém).

Quero só a tua presença

Às terças-feiras

As tuas kitabas, teus doces de ginguba

Tuas filhas a brincar com as borboletas

Que correm os canteiros

Que beijam livres a flores.

Estão tão lindas as tuas filhas!

A Judite tem uns olhos que parecem dois bagos maduros de dendém.

Trarás a promessa prometida

Dei-te um angolar

Pr’á Senhora da Muxima

Ou para a Senhora do Cabo?

Não sei a quem…

Vem

E conta-me a tua vida

O que nunca contaste a ninguém.

Vem com o teu olhar profundo

E embaciado

Quando falas de outros tempos

Com paisagens refulgindo em fundo

O teu olhar já morto 

Para certo nundo.

Traz-me a tua alegria

O que ainda tiveres vivo desse teu olhar tão triste

Tão triste como os musseques ao entardecer

Traz-me a tua presença amiga

Mulata tão linda de outros tempos

Cesaltina do Bairro Operário.

Minha amiga

Minha irmã

Minha mãe.

Vem na terça-feira

É um dia em que não vem ninguém…

Eu li o poema ao estilo do Villlaret. No fim beijei a Cesaltina e chorei. A Cutêto encostou a cabeça ao colo da Mamã e sorriu. A Judite ficou sem saber onde pôr os olhos.  O Joca Luandense saiu sem se despedir. Tinha a mania que um homem não chora. A Cesaltina disse-me com a voz embargada: Kitó vem sempre aqui mesmo sem as palavras do Mano Arnesto. 

Depois fui comer os restos dos búzios e beber cerveja quente porque no Palácio da Cuca não tínhamos geleira. Eu gostava muito dos sábados com búzios da contra costa, sueca, relatos de futebol, e poemas desconjuntados.

Hoje ficam com o poema de sábado do Ernesto Lara Filho escrito quando estava preso no Forte Roçadas, Xangongo na Angola Libertada.

*Jornalista

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