Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Imensos cidadãos que trabalham são catalogados de "profissionais invisíveis" apesar de serem seres humanos tão concretos quanto os profissionais mais visíveis.
Em tempos de grandes apertos, a sociedade toda consegue vê-los. No auge da pandemia de covid-19, o medo da doença e da morte gerou discursos de valorização de profissões essenciais na engrenagem da organização da nossa vida socioeconómica e sociocultural.
Valorizaram-se muito as profissões médicas e de enfermagem, assistentes operacionais, os professores. Foi enaltecida a sua capacidade para criar e executar respostas qualitativas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola. Não faltou quem dissesse que mereciam muito melhores remunerações. Elogiou-se, com inteira razão, a capacidade criativa e a dedicação dos profissionais da cultura e das artes. Hoje, todos esses profissionais estão em luta contra a amnésia dos governantes. Eles, injustiçados mas não invisíveis, não se submetem ao esquecimento e, com as suas lutas, talvez tirem do estado de letargia parte da sociedade que "só se lembra de Deus quando troveja".
Foram valorizados muitos outros profissionais pela sua importância social e por estarem expostos a penosidades e riscos: os(as) trabalhadores(as) que nos abastecem de produtos alimentares e outros de primeira necessidade; muitos dos que garantem os serviços da limpeza; os estafetas; as cuidadoras e cuidadores; os trabalhadores agrícolas e de várias outras atividades. Todos estes têm em comum executar trabalhos considerados não qualificadas, pouco valorizados em termos simbólicos, contratuais e salariais. São, em grande parte, os designados "profissionais invisíveis". A constatação da sua importância não passou do discurso. Continuam submetidos a duras precariedades e desgaste físico e muitos à margem de um vínculo de emprego.
A falta de visibilidade no trabalho gera graves carências materiais e invisibilidade social. Há quem considere que a aceleração na utilização de vários instrumentos da intermediação digital - desde logo com os serviços públicos - permite que quase ninguém fique impedido de exercer os seus direitos. Isso não é verdade, por muito que a digitalização facilite contactos.
As clássicas filas que infelizmente estávamos habituados a ver junto aos serviços de emprego e outros estão agora substituídas por filas virtuais junto de balcões virtuais, para atendimentos igualmente virtuais, logo sem a presença física de alguém que gere proximidade e confiança. As pessoas não obtêm respostas, mas a sociedade não se apercebe. A sua desproteção perpetua-se.
Vai-se formando um pantanal do qual só por milagre se consegue sair. É uma espécie de "habitus de classe", em Portugal fortemente municiado por: uma pobreza estrutural; políticas de baixos salários que têm na imigração um dos seus instrumentos; desigualdades de género e outras; pela manipulação provinciana de conceitos escorregadios que facilitam a exploração. Quantas vezes o conceito "cliente" anula o "cidadão", o "utente", o "beneficiário". O trabalhador é promovido a "colaborador". A procura de "talento" reduz-se, muitas vezes, a contratação por baixa retribuição.
Há que combater estas normalizações de linguagem cheia de enviesamentos e a desumanização do trabalho. É necessário contribuir para a organização dos cidadãos cumulativamente fragilizados, tornados "invisíveis". E fortalecer as instituições de intermediação. Rechacemos a amnésia coletiva.
*Investigador e professor universitário
Sem comentários:
Enviar um comentário