quinta-feira, 30 de março de 2023

Angola | CALELA CALELA ME LEVA!

José Duarte

 Artur Queiroz*, Luanda

No tempo da chuva de Março o vento arrasava o capim e as águas abundantes amassavam as terras argilosas dos Pambos. A picada até ao Lucala ficava intransitável. A camioneta tinha una caixa extra para guardar comida, de fome não morríamos. Enquanto o sol não tornava o barro consistente, ninguém passava naqueles lamaçais. O Velho Tuma na sua juventude tinha percorrido todos os destinos, do Pingano até às terras altas do Golungo. Pernoitou no Kilombo. Chegou até Nambuangongo. Um sábio da geografia humana muito nossa.

Naquela viagem a camioneta ficou enterrada cinco dias. A caixa da comida estava quase vazia, E eu fazia figas para que o sol não secasse o lamaçal dos Pambos. O Velho Tuma contava-me histórias fabulosas que ali aconteceram. Uma delas ficou gravada para sempre na minha memória. Um jovem acabado de ser pai foi atacado pela terrível cobra suji que lhe cuspiu nos olhos. Ficou cego. Sua sogra declarou-o inútil e combinou com a esposa acabar com ele.

As duas mulheres disseram ao jovem atacado pela cobra cuspideira:

- Tu ficaste sem olhos. Não vais à tonga, não armadilhas a caça, não fazes nada. Pelo menos tens que rachar lenha.

E ele aceitou. Meteram-lhe o machado nas mãos e puseram um toro à sua frente. 

- Corta agora! E ele desfechou o primeiro golpe. O segundo e muitos outros. Quando estava entusiasmado, a sogra colocou o bebé no caminho da lâmina do machado e o cego matou o filho. Foi expulso da aldeia e colocado na beira da picada. Que partisse para muito longe, onde o filho morto não sentisse o cheiro do pai. 

E o cego ali passou dias e dias. Quando sentia o roncar de um motor gritava: 

- Calela, calela me leva! Mas a camioneta da carreira que fazia o percurso entre Camabatela e Dala Tando passava sempre cheia e não parava. 

Tata Tuma em que sentido o cego queria ir, Lucala ou Ambaca? 

O Velho Tuma respondeu: - Isso não interessa, o importante é partir. E tu tens de aprender com esta história que ninguém pode decidir sem ver.

- Mas Tata Tuma me disse que devemos percorrer todos os caminhos, mesmo os desconhecidos nem que seja para nos perdermos…

- Sim, meu filho. Todos os caminhos são nossos e devemos percorrê-los mesmo sem destino, partida ou chegada. Mas cada caminho tem as suas pedras, os seus encantos, os seus buracos, os seus lamaçais, a sua gente. Precisamos de ver tudo. Quem não vê não pode decidir porque não conhece.

E o cego à beira da picada, sem saber se ia ser levado para Ambaca ou o Lucala, passava os dias implorando:

- Calela, Calela me leva! 

Ninguém o levou até definhar e morrer na beira da estrada enlameada no tempo da chuva, empoeirada no cacimbo. E Samba Caju ali tão perto!

Escrevi esta história em forma de conto. Um blue para Bessie Smith cantar suas revoltas sonoras. Ficou arquivado muitos anos até ao dia em que José Duarte fundou a revista O Papel do Jazz. Corria o ano de 1987. Convidou-me a colaborar no primeiro número e eu enviei-lhe a peça escrita para a minha cantora favorita. O texto foi publicado.

A revista era billingue (português/inglês) e tornei-me um escritor traduzido! Vaidoso, mandei imprimir um cartão-de-visita com o meu nome e em baixo: “Contista traduzido para o inglês”. Tinha dado um grande salto na minha carreira de escritor fracassado.

Uns anos antes, Mário António publicou uma crítica ao meu livro “Mukandano” na revista Colóquio Letras. Foi a primeira vez (e única…) que alguém criticou o meu trabalho literário. E logo o maior intelectual angolano de sempre! Fui agradecer-lhe a crítica no seu gabinete da Fundação Gulbenkian. Um marco na minha vida.

Hoje morreu José Duarte, o meu amigo Charli Bar. Além de ter feito de mim um contista traduzido para inglês, abriu-me as portas de sua casa quando cheguei a Portugal sem dinheiro para comprar um pão. E lá fiquei asilado até ter condições para alugar um cubico. Conhecemo-nos em Luanda, antes do 25 de Abril de 1974. Veio fazer formação ao pessoal da escala da TAP. Um dos formandos era o Zé Andrade (ZAN) e convivemos muitas noites na casa do jazzista (ainda na Avenida Brasil). 

Nessa época o Zé Andrade escrevia uma crónica de jazz e eu as “crónicas de viagens” em cujo enredo morria sempre um ricaço de morte estranha quando passeava o seu dinheiro pelo mundo. Mais tarde fizemos o programa de rádio “Contacto Popular” que bateu recordes de audiências. O edifício sonoro era construído exclusivamente com a Grande Música Negra. E os nossos artistas favoritos: Artur Nunes, David Zé e Sofia Rosa. O ZAN também morreu. Morre-me todos os dias.

Calela, calela me leva! O sentido do percurso tanto faz. Mas prefiro regressar ao Bindo, repousar os olhos nas colinas de Katunda. Ver os caranguejos dançando em cima das águas do caudaloso Dange (no fim da viagem vira rio Dande). Beber água fresca na kapopa da lagoa das cobras. E amar. Amar a vida perdidamente.

Calela, calela me leva!

* Jornalista

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