sexta-feira, 10 de março de 2023

Angola | FILME DE TERROR NUM HOTEL SAQUEADO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A IU Hotel é uma rede com 61 hotéis em Angola planeada pela empresa AAA Activos Lda. Até à prisão ilegal do proprietário, Carlos São Vicente, já tinham sido abertos e operavam normalmente as unidades de Talatona, Cacuaco, Viana, Caxito, Uíge, Mbanza Congo, Dundo, Saurimo, Luena, Sumbe, Benguela, Ndalatando, Huambo, Cuito, Lubango e Namibe (Moçâmedes). Os outros estavam em construção.

O Tribunal da Comarca de Cacuaco funciona num edifício degradado e o presidente, juiz João Goma, pediu que fossem disponibilizadas instalações onde os operadores da justiça tivessem melhores condições de trabalho. Uma equipa técnica foi enviada à sede do município e confirmou o quadro exposto. Foi então decidido que o Tribunal da Comarca de Cacuaco ia ser transferido para o edifício do Hotel IU (Torre C), confiscado pelo Serviço Nacional de Recuperação de Activos ao Dr. São Vicente e à sua esposa, a médica Irene Alexandra Silva Neto. 

Uma unidade hoteleira com 60 quartos e em pleno funcionamento foi simplesmente encerrada. O pessoal ficou sem trabalho, sem salário, sem qualquer protecção. Mas o Tribunal da Comarca de Cacuaco não está a funcionar no edifício novo, de vários andares, pintado em tons de rosa, como todos os da rede IU Hotel. O juiz João Goma conta o filme de terror que lhe passou pela frente numa exposição feita ao venerando conselheiro presidente do Tribunal Supremo de Justiça. 

O Juiz de Direito João Goma tinha a expectativa de ocupar o edifício do IU Hotel até final do ano de 2022. Mas a transferência foi impossível e com abundantes pormenores, explica ao Presidente do Tribunal Supremo os quês e os porquês do falhanço. 

Na exposição de Outubro do ano passado, o meritíssimo revela que o IU Hotel de Cacuaco foi saqueado em Março de 2022, precisamente quando terminaram as alegações finais do julgamento em primeira instância do Dr. São Vicente. O arguido foi julgado por supostos crimes cometidos na empresa AAA Seguros SA da qual era accionista maioritário. Sonangol e banco BAI eram accionistas minoritários. Este pormenor é importante para o resto do filme de terror.

O juiz Isidro Coutinho João convocou João Goma para um encontro no Hotel IU, onde se encontrava com uma delegação constituída por outros magistrados judiciais. Logo à cabeça foi-lhe exigida a entrega das chaves do edifício. Obedeceu. Mas viu uma camioneta carregada com mobílias da unidade hoteleira. O que é isto? “Diante desta surpresa, perguntei sobre o destino que seria dado aos artigos que estavam na carrinha. Fui informado que os bens seriam levados para o Conselho Superior da Magistratura Judicial (Comissão Instaladora do Cofre Geral dos Tribunais)”.

O presidente do Tribunal da Comarca de Cacuaco foi informado pelos guardas que aquele era o terceiro carregamento de mobiliário e electrodomésticos, feito pelo juiz Isidro Coutinho João. Este magistrado contratou uma equipa para limpeza no interior e exterior do edifício. Mas quando João Goma, uma semana depois, se deslocou ao IU Hotel (edifício C) “encontrámos tudo vandalizado. A unidade hoteleira estava saqueada”. Tudo foi levado, geradores, camas, roupas, louças, talheres, equipamentos de cozinha, aparelhos de ar condicionado, televisores, poltronas, mesas, cadeiras. Tudo.

O IU Hotel de Cacuaco tem três torres. A “C” foi destinada ao Tribunal da Comarca de Cacuaco. A “B” ao Ministério do Interior. A torre “A” ficou sem destino. No ofício número 762/CE/CGJ, datado de 22 de Setembro de 2021, e assinado pelo presidente do Cofre Geral de Justiça, Marcelino Correia, foi decidido que a Torre C seria entregue à PGR e ao Tribunal Supremo. O ofício determinava também que a Torre B passava à tutela do Ministério do Interior (Serviços Prisionais e Polícia Fiscal). O presidente do Cofre Geral de Justiça justificava que esta distribuição dos imóveis servia para “prevenir a sua degradação e vandalização dos edifícios do grupo AAA”.

Embora não parecendo, o filme de terror continua no tema do saque. Um documento oficial refere “edifícios do grupo AAA”. Mas não existe qualquer entidade denominada Grupo AAA. O “erro” é propositado. Porque as redes de hotéis são propriedade da empresa AAA Activos Lda. sociedade de Carlos São Vicente e sua família. Onde nunca entrou a Sonangol, accionista minoritária da AAA Seguros SA quando a sociedade anónima foi liquidada. Carlos São Vicente foi julgado por supostos crimes cometidos na seguradora. A confusão é muito conveniente. Faz bem ao filme de terror no aspecto mais tenebroso. 

O cidadão Carlos São Vicente ficou sem os seus bens tam como a família num confisco que só pode ser executado quando existir uma sentença transitada em julgado. Não existe. Mas já está tudo ocupado ou destruído, vandalizado e saqueado. Em nome do combate à corrupção. Mobutismo no seu pior. Para estes “justiceiros” a propriedade privada é um furto (eu também acho mas não entro nestes filmes). Salvo as propriedades do chefe que esse pode ser dono de tudo, até do Poder Judicial. Um dia a Justiça ocupa o lugar da barbárie.

Um problema sério está a abalar todos os serviços do Estado. Por razões orçamentais os salários do funcionalismo público estão atrasadíssimos. Quem vive do seu salário parou de comer. Não pode pagar despesas básicas. Ouve os filhos clamarem por comida. 

Mas o que é isto? Alguém anda a brincar com coisas muito sérias. Sei que a preparação combativa nas unidades militares está a ser “muito afectada”. Mas temos bem pior. Neste momento há militares abandonando as suas unidades para irem socorrer as famílias. Existe o registo de uma taxa elevada de deserções, que nem no tempo da guerra se verificou. A isto chama-se brincar com o fogo e apagar as chamas com gasolina oferecida pela Chevron ou a ELF/Total. O Biden e o Macron já estão a mostrar serviço. O nosso campeão da paz pôs os trabalhadores angolanos em pé de guerra.

*Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana