sexta-feira, 10 de março de 2023

O DIA MUNDIAL DA MULHER UNIVERSAL – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Março Mulher. Dia Internacional da Mulher neste dia 8, o primeiro do Nataniel e sua Mamã Weza. Dia do aniversário de Maria Eugénia Neto. Hoje a nossa Mamã é a figura universal deste dia mundial. Há alguns anos publiquei um livro com as suas memórias. Perdeu-se na clandestinidade. Hoje transcrevo este excerto em homenagem às mulheres de todo o mundo. Os textos entre parêntesis e a negro são de Maria Eugénia:

Maria Eugénia chegou a Lisboa ainda criança e ficou a viver em casa de umas tias do lado materno. Dois anos depois iniciou os estudos primários na escola do seu bairro. Fez o curso do liceu e ao mesmo tempo estudou francês. Aos 16 anos conheceu Agostinho Neto, que na época ainda estudava Medicina em Coimbra. Só mais tarde pediu a transferência para Lisboa. Humberto Machado, irmão de Ilídio Machado, presidente do MPLA, vivia na Rua Leite de Vasconcelos com a esposa Júlia. No rés-do-chão do mesmo prédio morava Maria Eugénia. Agostinho Neto vinha de Coimbra a Lisboa visitar os amigos e assim se deu o primeiro encontro. Foi amor ao primeiro poema.

Agostinho Neto pediu a transferência para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. A relação entre os dois tornou-se mais íntima, mas ainda não era um noivado, apenas amizade sob o manto incandescente do amor. O namoro começou num baile de fim de curso, na Escola Superior de Belas Artes. A namorada de Pedro Ramos de Almeida, um estudante universitário do grupo de amigos que se juntavam nas festas africanas, Cecília, era aluna e convidou o grupo de amigos. 

“Eu levava um vestido azul, feito por mim. Dizem que estava bonita. Agostinho Neto levou-me aos amigos e apresentou-me como a sua noiva. Foi uma brincadeira, porque ainda só éramos amigos, mas acabou rapidamente numa relação muito séria”. 

(De pé/fitando os oceanos e os lagos/as fontes e os riachos que não vejo/ultrapassando os horizontes/apertando as tuas mãos/que estão ausentes…/

São clarões de fogo que diviso/são planetas que ardem e se apagam/são sonhos que nunca deixaram de ser sonhos/são desejos que lanço agora ao vento./

És tu/presente e ausente ao mesmo tempo/sou eu tremendo por pensar tocar-te/mas contudo desejando ainda/com o meu rosto poder afagar-te!)

As actividades políticas de Neto contra o colonialismo e o fascismo tornaram-se mais intensas na capital. Acabou por ser preso pela Pide e enviado para o Porto, onde ficou totalmente isolado. Maria Eugénia ia visitá-lo à cadeia. Ficava em casa de António Macedo, advogado de Neto e mais tarde deputado na Assembleia da República e Presidente do Partido Socialista. Para poder visitar o preso, o seu nome ficou registado como “noiva”. Cecília, a artista do grupo, fazia rosas com miolo de pão, que depois coloria e mandava para Agostinho Neto.  Assim começou uma relação amorosa que perdurou para além da morte de Agostinho Neto, em 1979.

(Sabe, meu amor/que eu sinto que tu vens/em todas as manhãs./

Ainda ela é um arco-íris/e eis-te vestido de lilás/na gama dos azuis./

O azul era a tua cor predilecta.

Eram de azul diáfano/os véus com que me envolveste/quando escreveste na cadeia do Porto/a tua poesia lírica para mim/e ma ofereceste/escondida no invólucro/de um maço de cigarros/quando te fui visitar à cadeia./

O Pide passeava para cá e para lá.

Num ápice de segundo/estendeste o braço do outro lado da mesa/e puseste-o ao lado/do meu cestinho branco/que me servia de carteira./

O meu coração parou/quando cobri o maço com a mão.

Recordas-te?

Mais tarde já em liberdade/Quando subíamos os pinhais/na Praia das Maçãs/como tu sorrias complacente/do meu jeito infantil/quando bebia a cor//a luz, o brilho/do verde e das margaridas//como estrelas./

- Eu era o electrão saltitante/dos metais/que ao tocar a tua mão/induzia a corrente de perdão./

E o nosso amor maravilhoso/era mais puro e luminoso/que o fogo de todos os sóis-/

Como foi tão curto/o tempo para nós)

Neto esteve preso quase dois anos na cadeia da Pide, no Porto. Maria Eugénia visitava-o sempre que podia. Era ela que lhe levava as cartas da Mãe Maria, que chegavam de Luanda, em mão, recados dos companheiros de luta, roupas, pequenas lembranças. Alguns meses depois da prisão, já eram mesmo noivos e começaram a fazer planos para quando chegasse o dia da liberdade. Uma tia de Maria Eugénia, que vivia em Rio Tinto, também apoiava Agostinho Neto na prisão. O líder da revolução angolana passou a ter uma família em Portugal.

Maria Eugénia escrevia todos os dias ao seu amado. As cartas eram censuradas pelos carcereiros, mas ela não se censurava e dizia sempre o que pensava. Criticava o regime, os magistrados judiciais que colaboravam com a Pide, os abusos, as injustiças. As forças repressivas do regime colonial-fascista não contavam com a coragem de uma jovem franzina.

(O meu sonho transformou-se na mais crua das realidades. Só o que admiro é como há almas tão más, tão más, capazes de tanta vileza! Tão más que sentem o prazer de espalhar a mentira e a falsidade em seu redor! Tão más e tão vis que só lutam com as armas de que dispõem, contra seres que a sua única arma é a sua conduta honesta! Tão más ao ponto de mexerem com a dignidade e a pureza dos outros! Tão más, tão vis e tão canalhas!!! Tão más que não passam de monstros humanos. Enfim, só paciência de santo!)

Jenny escreveu estas palavras ao noivo, que estava preso na cadeia da Pide no Porto. Os carcereiros e os polícias liam as cartas antes do destinatário. A remetente arriscava a prisão. As suas opiniões visavam quem o prendeu e os juízes que não marcavam a data do julgamento. 

De Luanda chegou a falsa notícia, em forma de carta, da morte de Mãe Maria. Agostinho Neto mergulhou numa profunda tristeza. Maria Eugénia animou-o e escreveu na carta seguinte, palavras duras, mas também de esperança.

(Meu querido Agostinho: de certeza que as nossas lutas e desgostos não deixarão de ser recompensados algum dia. Impossível!  Quando os homens se amarem mutuamente, verás que não haverá prisões nem maldade. Quando eles se olharem como irmãos não haverá racismo nem complexos. Nem haverá fome! Apesar de longe ainda virá esse dia feliz para bem de todos.)

Logo a seguir a notícia foi desmentida. Mas a angústia de Neto não era menor. Estava enclausurado, impedido de estudar e conviver com as pessoas que amava, com os amigos e camaradas de luta. Quando a polícia retinha as cartas ou simplesmente não as entregava, Neto escrevia umas linhas à sua amada. Maria Eugénia, cúmplice, provocava os censores.

(Por hoje vou terminar desejando que me escrevas uma carta maiorzinha, senão terei novamente que falar-te de fadas, de paisagens e de pássaros. Contar-te-ei a história de Nimue, queres?)

Jenny nesta carta, de forma aparentemente fútil, fazia uma provocação aos censores mais incisiva que todas as outras. Nimue, na lenda dos Cavaleiros da Távola Redonda, era uma fada conhecida por Senhora do Lago, que deu ao Rei Artur a espada sagrada Excalibur. A bainha da espada era especial, possuía a magia de Avalon que protegia Artur nas batalhas. Se o rei sofresse ferimentos em combate, jamais sangraria até a morte. Artur jurou a Nimue que defenderia para sempre a terra sagrada de Avalon.  Agostinho Neto era o Rei Artur e Angola a Terra Sagrada.

Mãe Maria enviou de Luanda um requerimento ao ditador Salazar, com 200 assinaturas de amigos e familiares de Neto, exigindo a sua libertação e que os carcereiros lhe permitissem fazer exames na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, mesmo estando preso. Jenny refere numa carta esse documento.

(Com esta segue carta da tua mãe e segue também a cópia do requerimento feito por ela e assinado por mais de 200 pessoas amigas e teus parentes que pedem a tua libertação e que, enquanto aí estiveres, te seja permitido fazer exames na Faculdade de Medicina. Eu acho-o muito bom, até pelo estilo em que está feito.  Manda-me dizer se o achas bom.)

Naquele ano de 1957, um requerimento exigindo a libertação de Agostinho Neto assinado por mais de 200 pessoas, era altamente preocupante para o regime. Queria dizer que os angolanos mais influentes assinaram. E entre os subscritores estavam portugueses ou angolanos de origem portuguesa com grande influência nas comunidades. O escol do funcionalismo público, queria Neto em liberdade. Altos quadros portugueses exigiam a libertação de Agostinho Neto. Foi o primeiro aviso. E a repressão não se fez esperar. Nesse mesmo ano de 1957, as forças repressivas prenderam em Luanda dezenas de nacionalistas que reivindicavam a Independência Nacional. Daqui resultou o “Processo dos 50”. Entre os presos estavam cidadãos portugueses muito queridos na sociedade luandense: a médica ginecologista Julieta Gandra, o engenheiro Calazans Duarte, José Meireles ou António Veloso que apoiavam o movimento independentista ao lado dos activistas do MPLA. Os nacionalistas queriam reeditar a independência do Brasil, em oposição aos que defendiam Portugal do Minho a Timor ou uma minoria com alto poder económico, que apontava para um modelo igual ao da África do Sul. 

Jenny demonstrava em cada carta a esperança de ver o seu amado em liberdade na manhã do dia seguinte a cada carta que enviava para a prisão. Mas o advogado António Macedo desenganou Maria Eugénia:

- Ele vai ficar preso muitos anos, não haja ilusões!

Mas Jenny manteve sempre a esperança de que a libertação de Neto seria breve. Quando o julgamento era adiado, ficava furiosa. Numa dessas fúrias enviou um postal para a prisão com o seguinte destinatário: Dr. António Agostinho Neto. Preso político. Cadeia da Pide. Porto. Espantosamente, a carta chegou às mãos do seu amado! 

Hoje é o Dia Mundial desta Mulher Angolana Universal. Maria Eugénia Neto.

*Jornalista

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