quinta-feira, 9 de março de 2023

Angola | MÉDICOS MENORES E PROMOÇÃO DA DITADURA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Ismael Mateus, avençado de profissão, escreveu isto no Jornal de Angola: “Quando os Conselhos Superiores da Magistratura Judicial e do Ministério Público nada dizem perante acusações tão graves; quando perante elas a Procuradoria-Geral da República também nada diz, a opinião pública vira-se, obviamente, para o Presidente da República que, sim, é o Titular do Poder Executivo, mas também é o Chefe de Estado. O Presidente da República (…) tem de usar os poderes formais e informais que a Constituição reconhece, explícita ou implicitamente, a quem tem a autoridade moral de nomear e conferir posse”. 

O escriba a soldo ditou esta sentença: “Se alguma crítica deve ser feita ao Presidente da República é o facto de não estar a ter, para o Tribunal Supremo, a mesma atitude que teve para com o caso do Tribunal de Contas”. Este artista come do Orçamento Geral de Estado desde pequenino. Ainda mal abria os olhos já recebia os dinheiros reservados à criadagem. Está a cair de podre e continua a facturar. É um campeão da luta contra a corrupção. Para defender que o chefe pode e deve violar o princípio da Separação de Poderes, deve ter recebido mais um rebanho de cabritos. Com corruptos se combate a corrupção.

Cuidado com as e os magistrados judiciais. Muito cuidado com a Procuradoria-Geral da República. Todas e todos debaixo de olho. E se vierem com a vaidade da independência dos juízes e da autonomia dos agentes do Ministério Público, demissão. Demissão! Demissão!

O Presidente João Lourenço entregou, por ajuste directo, um negócio de 38,5 milhões de dólares. O consórcio contemplado foi criado em 2018 e já mamou na exploração de diamantes, petróleo (a menina Miala diz petrôlho ou ôlho em vez de óleo) e gás, hotelaria e Educação. O ajuste directo tem uma justificação: “A necessidade urgente e imprescindível da efectivação da contratação”. Corrupção polivalente merece a distinção do chefe.

Esta adjudicação directa é para fornecer “scanners” à Autoridade Tributária “tendo em conta a vulnerabilidade e exposição ao risco de ilícitos penais que a sua inoperabilidade, por falta de manutenção, causaria à acção de controlo de mercadorias”. Está feito e não vale ensinar. Nunca ninguém tinha combatido a corrupção distribuindo tanto dinheiro pelas clientelas. Bom chefe! Até o Ismael Mateus, perito em não fazer nada, anda de barriga cheia. 

Antes que as minhas amigas e os meus amigos comecem a torcer o nariz resmungando que eu sou a favor dos corruptos, vou dar o esclarecimento que se impõe. A democracia representativa e seu amante capitalismo, também alcunhado de economia de mercado, são alimentados pela exploração de quem trabalha, pela corrupção e o roubo em conluio com o Estado. Digam-me que sentido faz combater a corrupção e não acabar com a exploração de quem trabalha.

Eu só acredito no santo que combate a corrupção se ele antes combater a exploração dos trabalhadores. O qual não. Os professores são explorados miseravelmente. O principal empregador é o Estado. O pessoal da Saúde (médicos, enfermeiros e outros técnicos) queixa-se de exploração. O primeiro empregador é o Estado. Os funcionários públicos queixam-se de exploração. O único empregador é o Estado. Magistrados judiciais agentes do Ministério Público, oficiais de Justiça e outros funcionários judiciais queixam-se de exploração. O único patrão é o Estado. Os militares queixam-se de exploração e atrasos nos salários. O único empregador é o Estado.

Todos os profissionais de todas as profissões ao serviço do sector privado são violentamente explorados. O Executivo fecha os olhos e ajuda à festa. Quando os negócios correm mal o poder político socorre imediatamente o patronato roubando dinheiro ao Povo para lhe oferecer. Cria condições legais e financeiras aos patrões para roubarem os angolanos. Com ou sem dor, com ou sem violência. 

Para levar a sério a palhaçada do combate à corrupção, exijo que acabem antes com a exploração de quem trabalha e os roubos ao Povo Angolano com a conivência do Estado. Uma vez liquidada a exploração de quem trabalha e o roubo, vamos pegar no bicho da corrupção pelos cornos. Mas atenção. No fim da operação só ficam as angolanas e os angolanos que não estão sentados à mesa do Orçamento Geral do Estado. 

O rigor é um dos critérios que suportam os conteúdos da mensagem informativa. É a marca distintiva do Jornalismo. Assim vou dar um exemplo de corrupção desse princípio fundamental. A TPA durante um mês publicitou a lista das unidades hospitalares que estavam a fazer cirurgias em várias áreas. Os doentes só tinham que se apresentar. Ontem soube que estavam previstas 2.000 cirurgias e foram efectuadas 4.000. Um êxito estrondoso. Primeiro a parte boa. Agora a parte horrível.

O Hospital David Bernardino foi apresentado como “Bernadino”. O Hospital Américo Boavida passou a “Boa Vida”. O Hospital Dr. Azancot de Menezes leva “doutor”. O hospital Dr. Walter Strangway leva “doutor”. David Bernardino não. Mas era grande médico. Fez o curso de medicina em Portugal. O internato geral. A especialidade. E depois partiu para a Holanda onde fez uma especialidade em saúde pública. Só depois regressou a Angola. Foi trabalhar para o Dundo. 

Na Lunda o povo chamava-lhe “Doutor Diamante” tal era a sua qualidade. Ganhou algum dinheiro na Diamang (antecessora da Endiama) e partiu para a sua cidade natal (Huambo) onde criou centros de saúde verdadeiramente cmunitários. Ninguém pagava a assistência médica e os medicamentos. 

Naquele tempo a Empresa de Lacticínios de Angola (ELA), da Cela, deitava fora o leite do qual era retirada a gordura para queijo e manteiga. David Bernardino arranjou um sistema de aproveitamento integral do leite desnatado. As mamãs faziam pirão para as crianças com esse leite que tinha todas as propriedades nutritivas, menos a gordura. Um médico do outro mundo! Agostinho Neto, antes da Independência Nacional, visitou a sua rede de centros de saúde nos subúrbios da cidade do Huambo. Jonas Savimbi assassinou-o quando saía de uma dessas unidades, na Bomba.

Américo Boavida médico angolano não leva “Dr” na lista de hospitais da TPA. Ele era especialista em Medicina Tropical, Saúde Pública, Ginecologia e Obstetrícia. Licenciou-se no Porto e especializou-se em Lisboa, Barcelona e Paris. Integrou o comité director do MPLA em Conacri com Lúcio Lara, Mário Pinto de Andrade e Viriato da Cruz. Na guerrilha da Frente Leste organizou os serviços médicos. Tombou em combate no ano de 1968. É um Herói Nacional com Hoji ya Henda, Iko Carreira, Xyetu, Toca, Maio (Rui de Matos), Luzia Inglês (Inga) e tantos outros e outras que escreveram com letras de ouro a História da Luta Armada de Libertação Nacional na Frente Leste. 

Os médicos David “Bernadino” e Américo “Boa Vida” não têm direito a “Dr.” Provavelmente porque os hospitais aos quais deram o nome foram inaugurados antes de João Lourenço ser eleito. Antes desse momento extraordinário, Angola nem sequer existia.

Uma curiosidade. Em pleno colonialismo, Angola teve alguns médicos negros entre os quais Agostinho Neto. Esses jovens foram mobilizados pelo exemplo do Professor Carlos Tavares, um benguelense prodigioso. Foi estudar medicina para Portugal no último quartel do Século XIX. Concluiu o curso com elevadíssima classificação. Fez uma carreira académica notável, chegando a Professor Catedrático. Era tão competente que foi escolhido para médico da corte do rei de Portugal. O único negro que desempenhou esse papel nas cortes europeias.

O príncipe herdeiro Luís Filipe visitou em 1907 Angola, Moçambique e África do Sul. Na sua comitiva vinha o Professor Carlos Tavares na qualidade de seu médico pessoal. Quando o governador britânico da África do Sul soube que na comitiva do herdeiro ao trono português vinha um médico negro, entrou em contacto com Luanda e avisou: “o príncipe que não traga o médico preto porque não pode ficar nas instalações que lhe atribuímos. Deixem o preto em Luanda.”

E assim fizeram. O Professor Carlos Tavares ficou em Luanda, visitou a família em Benguela e no seu lugar foi um médico branco que era director do Hospital Maria Pia.   

O Presidente João Lourenço deu o nome do Dr. Walter Strangway (missionário canadiano) a um hospital na cidade do Cuito. Os rapazes do meu tempo que viviam no Norte de Angola, quando precisavam de uma cirurgia iam ao Lépi onde eram operados pelo Dr. Roy Parsons (norte-americano) que montou um hospital de referência na Missão Adventista do Bongo. Tinha umas mãos descomunais e era a simpatria em pessoa. A esposa e os filhos também eram médicos! Crianças de toda a Angola iam ao hospital procurar remédio para os seus males. Ninguém pagava nada. Agora mais pessoas conhecem a sua existência. 

Hoje é Dia Internacional da Mulher. Em Angola temos o Março Mulher, todo o mês de homenagem às mulheres. Como estou a falar de médicos, chamo à memória a Dra. Julieta Gandra (foto acima). Ela e o Dr. Américo Boavida eram os únicos ginecologistas de Luanda. Depois ele foi para Barcelona e Paris aprender ainda mais. Ela ficou única especialista. 

Antifascista e anticolonialista, a médica Julieta Gandra, portuguesa, apoiou o MPLA na sua luta pela Independência Nacional. Foi presa. A PIDE tirava-a da cadeia e levava-a ao hospital para assistir às pacientes. Os colonialistas expulsaram-na de Angola. Em 1964, foi considerada pela Amnistia Internacional a presa política do ano. Obrigado Julieta por tudo o que nos deste. Um dia vamos ter um posto de saúde com o teu nome.

*Jornalista

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