Bela Malaquias*, Luanda MEMÓRIAS 5
Eu poderia esperar tudo de si, menos esta provocação: A carta que me enviou e que recebi em 20 de Fevereiro, por volta das 20.30, onde me convida a prestar tributo à memória de Savimbi!
Apesar de tudo, tenho tentado conter a minha indignação! Mas pergunto-me se será possível ter esquecido o que Savimbi representa para mim e toda a minha família próxima e mais distante! Eu não quero acreditar que tal seja possível!
Se é um problema de amnésia, eu
terei muito gosto em lhe refrescar a memória: Savimbi perseguiu-me durante 20
longos anos, através do exílio, a prisão e assédio sexual, e todas as formas de
tortura psicológica!
Savimbi encarcerou o meu pai, já
bastante idoso, numa cela subterrânea, ao longo de meses, pelo único crime de
ter transmitido aos nossos companheiros a notícia do atentado contra a vida de
Reagan, então presidente dos Estados Unidos. Lembra-se?
Savimbi espancou até à morte os meus familiares, Eduardo Jonatão Chingunji e a sua esposa Violeta Jamba. Nem os seus filhos e restante família conseguiram escapar à fúria de Savimbi.
Apesar da dor que eu sinto cada vez que penso neles, não resisto a colocar aqui os seus nomes, para avivar a sua memória: Tito Chingunji, sua esposa Raquel e os seus três lindos filhos (os dois mais pequeninos eram gémeos). Eu tenho a certeza de que você ainda se lembra. Lena Chingunji, a irmã gémea do Tito, e o seu marido, Wilson dos Santos.
Koly, o filho mais velho da Lena, que tinha então 12 aninhos; Rady, que tinha
oito anos, e o Paizinho, o terceiro, além dos dois encantadores gémeos, ainda
bebés?
Dino Chingunji e sua esposa Aida
Henda, sua irmã Vande e seu filho mais novo que se chamava, creio eu, Eduardo
como o seu avô. E o último dos Chingunjis, Alice, carinhosamente conhecida como
Lulu. Apenas uma filha dela, que vive em Luanda e cujo pai é o senhor Isaías
Chitombi, um membro da liderança do seu partido, sobreviveu como que por
milagre.
A lista é longa, mas a minha intenção é ajudá-lo a lembrar as pessoas cuja memória deve ser honrada pela simples razão de que a UNITA deve a sua existência a alguns deles (no período colonial o casal Chingunji foi um pilar da UNITA no Moxico, resultando no envio do marido para o Tarrafal e da esposa para São Nicolau), embora uma UNITA muito diferente da de ultimamente?
E o que se pode dizer sobre o grande número de pessoas, mulheres e crianças,
que foram queimadas vivas? Lembro-me como se fosse ontem, mas foi há 20 anos.
Aconteceu precisamente no dia 7 de Setembro de 1983. Eu tremo e não consigo
conter as lágrimas quando me vem à memória a trágica cena em que o
protagonista, Jonas Malheiro Savimbi, numa pose tresloucada, com a sua boina
vermelha e um lenço vermelho à volta do pescoço, e com a sua pistola tipo
gangster, supervisionou ele próprio a terrível operação da queima de pessoas
vivas! O seu objectivo era o de assegurar a submissão das mulheres mais cultas
ou instruídas, de modo a que nenhuma delas se atrevesse a recusar os seus
caprichos bestiais. Será que você já esqueceu tudo isso?
Uma das mulheres que foi lançada
à fogueira foi a minha prima Judite Bonga. Não posso imaginar que o seu irmão,
Jerónimo Bonga, ou o marido, Sabino Sandele, que estão aí consigo, queiram hoje
pagar um tributo ao carrasco! Especialmente agora, após o desaparecimento dos
mecanismos de coerção que, a meu ver, foram a razão de certas atitudes e
comportamentos da própria UNITA.
Uma dessas mulheres foi a minha
tia Aurora e o seu filho de sete anos de idade, Michel. Parece que estou a ver
o Louis Michel, desesperadamente agarrado à saia da mãe. Ela, extremamente
corajosa e com um ar tranquilo, olhou fixamente o carrasco, olhos nos olhos,
dizendo: "Savimbi, você nunca irá ganhar e terá um fim trágico!"
Então ela correu decidida para o fogo, com a altivez de uma dama caminhando
para o seu trono. Toda a honra à sua memória.
Também na mesma linha foi a minha
irmã Tita Malaquias, que, com algumas outras pessoas que você conhece muito
bem, que conseguiram salvar-se com extremo esforço, sendo enviadas para uma
cela subterrânea.
Foi como se eu tivesse sido
atingida por um raio, despedaçada. Ly, a minha filha, que tinha então apenas
seis meses de idade, foi privada de leite da mãe. O meu leite secou, motivado
por tão intenso e brutal choque psicológico.
Havia muita gente nessa linha,
incluindo a sogra da sua irmã Catarina, que também era a mãe de Bock, e
muitíssimos casos semelhantes.
A extrema misoginia do seu
“herói” não parou aí. Ele organizou ainda mais sessões durante as quais as
mulheres foram perfiladas, nuas, para serem brutalmente “analisadas” pelos seus
magos, que perfurando-lhe os órgãos genitais com agulhas enferrujadas, as
obrigou a beber a bebida pestilenta, etc. etc. etc.
Também para lhe avivar a memória,
eu sou a pessoa que você sequestrou em 1992, levando-me de Luanda para a Jamba,
forçando-me a deixar meus filhos durante um longo exílio. Lembra-se da reunião
em que foi decidida a minha condenação à morte, pronunciada por Savimbi? Ainda
tenho na minha posse as centenas de assinaturas de pessoas e de organizações
internacionais que exerceram pressão sobre Savimbi, pedindo-lhe para me poupar.
E não se sintam tentados a
confundir crimes cometidos a sangue frio numa aldeia longe da guerra, que era a
Jamba daquela altura, com o resto. Nem pense que é ainda possível, ao estilo
totalitário, controlar as mentes do povo e reconstituir esse eterno rebanho de
carneiros a quem nunca foi tolerado exprimir a sua palavra.
Estamos agora num Estado democrático,
regido pelos princípios do Estado de Direito, e as instituições internacionais
estão a trabalhar para garantir que o conceito do Direito se torne um requisito
cada vez mais palpável. Temos exemplos muito instrutivos nesse sentido. É
importante para sentir o espírito dos tempos e para voltar a definir o relógio,
pois nenhuma empresa pode ser imposta à custa de milhares de vidas destruídas.
Permita-me que lha faça uma
pergunta: O senhor não acha isso um absurdo, ao falar de pedir desculpa por
erros cometidos, enquanto exalta a acção que causou tantos danos que ainda não
foram reparados? São desculpas suficientes para tanta infâmia?
Depois de recordar algumas das
muitas atrocidades de Savimbi, você ainda acha que eu sou uma das pessoas que
deveriam honrar a sua memória?
Prefiro virar esta página sangrenta, para construir uma estátua à memória dos homens, mulheres e crianças que foram vítimas da fúria sanguinolenta de Savimbi. Nenhum deles teve sepulturas ou enterros: não os tiveram Kambanjela, Ana Isabel, Vinona ou Eunice Sapassa, a ex-presidente da LIMA (Organização das Mulheres da UNITA), para mencionar apenas alguns.
Obrigada pelo convite, mas eu recuso-o, e peço-lhe também que, de futuro, se
abstenha de perturbar a minha paz e tranquilidade.
* Florbela Catarina "Bela" Malaquias é uma ativista política, jornalista, escritora, ex-militar e advogada angolana. Sua carreira política iniciou-se como ativista da União Nacional para a Independência Total de Angola, sendo, posteriormente, fundadora e primeira presidente do Partido Humanista de Angola. Wikipédia -- Livros: Heroínas da dignidade
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