sexta-feira, 12 de maio de 2023

Portugal | ANA GOMES: "ESTE GOVERNO TAMBÉM ESTÁ A FABRICAR POPULISMOS"

Militante de base, como gosta de sublinhar ser, Ana Gomes é uma das vozes independentes do PS e não vê com bons olhos um braço de ferro com Marcelo. Não cala críticas à forma como António Costa tem respondido à crise e lembra que o Presidente da República já tinha avisado para a importância de 2023.

Rosália Amorim (DN) e Pedro Cruz (TSF) | Diário de Notícias

Era uma estrela do Partido Socialista (PS), embora não militante, no tempo de António Guterres, muito por causa do papel que teve enquanto diplomata, quando muito poucos acreditavam que Timor-Leste poderia ser independente. A embaixadora acabou por tornar-se política. E mais tarde, depois de deixar o Parlamento Europeu, ficou ainda mais livre para expor o seu pensamento. Nesta altura, é uma das figuras mais temidas pelo aparelho do PS.

ENTREVISTA

Vou começar por citá-la: "António Costa está amarrado a João Galamba". Porque acha que isso aconteceu? António Costa não amarrou Pedro Nuno Santos, não amarrou outros ministros que teve de deixar cair... Porque se amarrou a Galamba?

Amarrou. É uma escolha dele, claro, e ele melhor do que ninguém saberá, mas penso que tem consciência das vulnerabilidades, como todo o PS tem, mas, no fundo, conta com o efeito para-raios, porque ainda muita coisa vai sair, digamos, do saco, designadamente, do saco das infraestruturas da TAP, com a comissão de inquérito a decorrer. Portanto, isso também lhe serviu, foi instrumental, para o braço de ferro com o Presidente, que ele entendeu desencadear. É evidente que o Presidente o tinha provocado, com as sucessivas referências às ameaças possíveis de dissolução, que não eram, obviamente, muito credíveis, porque a dissolução tinha-se concretizado em 2020/2021, aliás, a pedido e por desejo de António Costa. Mas exatamente isso tornava bastante improvável que agora o Presidente pudesse contemplar nova dissolução. E o primeiro-ministro deve ter chegado à conclusão que valia a pena comprar essa guerra. Se calhar, algum guru dos que ele lá tem lhe deu esse horizonte, que acho que é de muito curto prazo, porque, realmente, se olharmos a médio prazo, não compensa, entrar na guerra com o Presidente, que foi, realmente, um decisivo apoiante dos governos de António Costa.

Acha que António Costa vai pagar um preço por ficar com a sua imagem colada a João Galamba? Ou seja, nessa lógica do que está a dizer, o que tinha já dito o Presidente anteriormente é que o primeiro-ministro é responsável pela escolha dos ministros, e os ministros são responsáveis pela escolha de quem trabalha com eles. Quando António Costa, de alguma forma, salva um ministro e diz, publicamente, "a responsabilidade é minha", quando vier a fatura, a fatura também é dele?

É evidente que a responsabilidade é do primeiro-ministro, isso foi sublinhado pelo próprio, e o Presidente não se eximirá a confrontá-lo com essa responsabilidade. Agora, tudo dependerá do nível de problemas que essa amarração a João Galamba venha a trazer. Provavelmente, o primeiro-ministro conta que eles sejam minimizados, sabendo, também, que o ónus, de todas as decisões na área das infraestruturas, recairá sempre, mais do que nunca, sobre o primeiro-ministro, mas, de qualquer maneira, também já era assim, não era? Já seria assim. Portanto, ele imagina que isso lhe possa ser favorável, penso eu, talvez ele imagine que possa ser positivo. Mas ainda há muita água que vai correr sob as pontes e penso que a Comissão de Inquérito Parlamentar sobre a TAP tem o potencial de trazer a lume muitas questões embaraçosas para o primeiro-ministro. Designadamente, todas as questões que têm a ver com o período da reversão da privatização que foi feita no primeiro governo de António Costa, com o amigo dele, Diogo Lacerda Machado, na administração da TAP, por nomeação do primeiro-ministro, a não poder não saber do "esquema macaco", digamos, da troca dos aviões e com todos os outros. Tudo vai depender de o Parlamento ter ou não capacidade de fazer o seu trabalho. Aquilo que vi ontem [terça-feira] na Comissão de Economia não me sugeriu que houvesse muito interesse em escavar... Mas neste tema, ainda a procissão vai no adro.

Vamos só voltar um pouco atrás para lembrar palavras suas: "o Presidente da República passou de principal apoiante do governo a chefe da oposição", foi o que disse. Marcelo, esteve bem no discurso que fez, dirigido ao governo e ao país - e que foi talvez o mais duro de sempre?

Não sei se foi o discurso mais duro. Acho que o próprio discurso de investidura deste governo já estava prenhe de avisos. E mais, até estabelecia prazos, que depois o próprio Presidente reiterou. E o prazo era de um ano, deste ano de 2023. O que penso que se articula e é muito lógico - também na linha do que o Presidente disse agora no Parlamento Europeu - com o próprio calendário das eleições europeias. Obviamente que uma pessoa com a experiência de governo, política e parlamentar de António Costa está qualificada não só para poder desejar um lugar europeu, mas para ser desejado por outros governos para um lugar europeu. Se isso vai acontecer em 2024 ou em 2027, veremos, mas o Presidente nunca descartou essa possibilidade. E suponho que quando estabeleceu esse horizonte de um ano também era com isso em mente.

O Presidente falou tantas vezes em dissolução, ao longo do tempo, deveria, realmente, ou não, ter optado pela dissolução do Parlamento?

Na minha opinião, o Presidente não devia ter aceitado o impulso do primeiro-ministro de desfazer a geringonça e de partir para a dissolução. O Presidente não contava - aliás, também penso que António Costa não contava - com a maioria absoluta. Nenhum contava nem a queria. Mas a verdade é que isso foi o efeito por outras considerações. E hoje têm de viver com isso, o que torna a vida mais complicada.

E, mais uma vez, nos últimos dias, depois da crise política, não deveria Marcelo ter dissolvido o Parlamento?

Acho que não podia, de maneira nenhuma, sobretudo porque já tinha uma vez dissolvido e ainda porque sabia que não tinha alternativa. A direita não é alternativa neste momento. Está demasiado fragmentada e não é alternativa. Nem com a extrema-direita, nem em aliança com a extrema-direita. E penso que apesar de tudo, o Presidente - e eu critiquei, que deixou passar a aliança com a extrema-direita para viabilizar o governo dos Açores - hoje percebe que isso é inaceitável em termos nacionais e europeus. E, portanto, também não quererá ficar com o nome associado a uma entrada da extrema-direita para a governação do país. E, portanto, não tinha alternativa. E, sim, essas ameaças eram ocas e o primeiro-ministro cansou-se delas e decidiu, digamos, desfazer o bluff. Mas, a prazo, não sei se isso tem grandes vantagens para o próprio primeiro-ministro. E não tem, certamente, vantagens para a governação, porque aqui estamos nós a discutir esta história toda destas crises e a desviar o governo daquilo que é essencial, que é ter à partida maioria absoluta e governar, fazer a diferença, reformar o país. É isso que os portugueses querem. Foi para isso que lhe deram a maioria absoluta. E não veem nada. Pelo contrário, veem, de novo, sermos atolados numa crise que tem, obviamente, razões não apenas nacionais, mas europeias e até globais. Mas o governo não faz aquilo que devia fazer. Toma medidas assistencialistas, distribui cheques avulsos, não há planeamento de políticas, não há investimento público. Somos dos países de mais baixo nível de investimento público na União Europeia. E, portanto, a ambição é zero, é mínima. Quando o governo apresenta números de 1,8 % de crescimento para o período de 2024 a 2027 em Bruxelas, no quadro do PEC, estamos condenados à cepa torta.

Mas essa incapacidade de governar de que estava a falar no início tem que ver com o próprio governo? Ou seja, tirando a guerra, a inflação e tudo o que vem de fora, mas grande parte do último ano, as crises vêm de dentro do próprio governo...

Sim, neste último ano as crises têm vindo dentro do próprio governo e, do meu ponto de vista, por défice de coordenação por parte do primeiro-ministro. É verdade que na geringonça ele tinha quem lhe fizesse esse trabalho, que era Pedro Nuno Santos, mas foi ele que o desviou para outra tarefa.

E que depois não o amarrou, como acabou por fazer com João Galamba. Ele acaba por amarrar João Galamba, como já dissemos, mas não amarrou Pedro Nuno Santos. Ou seja, essa dualidade vai ter também uma fatura a ser paga?

A questão era também ao nível da própria coordenação, que obviamente não teria de ser sempre com Pedro Nuno Santos e não era esse o projeto no governo que resultou das últimas eleições. Numa primeira fase, o primeiro-ministro não tinha ninguém para o ajudar na coordenação, mas depois passou a ter um daqueles casos, o tal Miguel Alves. Portanto, hoje, os problemas que têm emergido não é porque o governo não tenha muitas pessoas boas, qualificadas e competentes. O próprio João Galamba acho que é uma pessoa capaz, competente, mas depois tem outras características que não o recomendariam para aquele lugar e que estão na origem dos problemas com que hoje estamos e com os quais ele próprio está confrontado. Mas realmente, o impulso reformador tinha de vir do próprio primeiro-ministro e o impulso coordenador, as mãos na massa, como costumo dizer, isso tem de ser o próprio primeiro-ministro. Porque senão os governantes não se entendem. Não obstante o primeiro-ministro ter uma adjunta extremamente capaz, Mariana Vieira da Silva, obviamente não dá para tudo. E aqui a autoridade do primeiro-ministro é decisiva. E é o primeiro-ministro que não tem essa vertente reformadora. Ele é muito habilidoso, é um tático, mas aqui nós precisávamos de reformas estratégicas. Nós precisávamos de não continuar a ter este modelo económico que não se encosta ao turismo de baixo valor acrescentado e ao imobiliário especulativo para determinar o nosso crescimento.
Este era o tempo de investirmos nas áreas de maior valor acrescentado, nas tecnologias, de estancarmos a fuga de talentos do país, de talento jovem, estancarmos a desertificação do interior do país. Este era o momento de fazer, de concretizar uma verdadeira descentralização do país, de ter políticas de desenvolvimento planificadas e uma efetiva coordenação do governo, mas dá a sensação de que cada um anda por si. E só por sorte é que não há mais choques. E, portanto, aqui o problema é do primeiro-ministro. Muitas das questões que estão por resolver, que obviamente agora vão ser aproveitadas - aliás já estão a ser aproveitadas - todos os dias pelo Presidente da República... apesar de que gostaria que ele tivesse feito isso em privado, pressionando o governo antes, mas agora vai fazê-lo de forma ostensiva e pública. No entanto, não há falta de problemas para o governo resolver.

Por exemplo.

A questão dos professores é uma questão vital, a questão do Serviço Nacional de Saúde, a questão de carreiras como a dos funcionários judiciais, carreiras de Forças Armadas e das forças de segurança. São questões vitais para o país. As Forças Armadas, no contexto da guerra e das responsabilidades marítimas, e sobre o espaço aéreo na nossa enorme zona marítima - portanto, toda a zona sob nossa responsabilidade, que neste momento é extremamente vulnerável, até do ponto de vista da segurança nacional, europeia e da própria NATO. Os cabos submarinos que ligam a internet entre os vários continentes e que obviamente são um alvo privilegiado, por exemplo, da Rússia. Nós temos de ter essas capacidades, mas isso dependeria de uma intervenção planificada, reformadora de fundo, ambiciosa por parte do primeiro-ministro. O que nós vemos, pelo contrário, é empobrecimento da classe média, não há sequer uma reforma fiscal. Precisávamos de produzir mais, produzir melhor, pagar mais, não podemos continuar resignados aos baixos salários, que isso é uma receita para continuarmos a exportar jovens. E distribuir melhor, distribuir mais e melhor. A reforma fiscal é uma questão absolutamente vital, é uma questão de justiça. Isso é que era ser socialista, realmente. Era avançar para uma reforma fiscal que redistribuísse e que não fizesse, por exemplo, as classes médias e baixas continuarem a empobrecer. Porque o aumento das taxas de juros por parte do BCE, que depois se repercute nos nossos bancos e que faz com que tenham cada vez mais lucros e os portugueses vivam cada vez com mais dificuldades é um problema. Até o próprio governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, veio finalmente reconhecer que esse era um grave problema e que os bancos tinham de ajustar as condições de crédito.

É evidente que esta tinha de ser também uma pressão do governo forte e que passa também pela questão da reforma fiscal. Porque um aumento das taxas de juros, mesmo que determinado por políticas ineptas e contraproducentes por parte do BCE, significa um imposto adicional sobre as classes médias e as classes baixas. Isto é injustiça, isto é fabricar os atacantes da democracia, isto é fabricar extremistas, isto é fabricar populistas. E depois as medidas com que se tem acorrido são medidas avulsas, distribuição de cheques casuísticos em função das pressões do momento. E esse tipo de caridadezinha assistencialista, no fundo, também é populismo.

Depois de ouvir tudo o que disse, pergunto-lhe: fora Ana Gomes Presidente da República - foi candidata, portanto poderia ter sido Presidente - e perante isso tudo que acaba de dizer, teria nesta ocasião dissolvido o Parlamento e convocado eleições?

Nunca aqui teria chegado. Nunca teria, desde logo, feito a dissolução em 2020/2021. E, portanto, nunca aqui teria chegado. Os problemas que tivesse de ter com o governo, as pressões que tivesse de ter com o governo para as várias reformas nos setores que referi, a questão da justiça, por exemplo, o Presidente da República fez discursos sobre a reforma da justiça. Não passaram disso [de discursos]. Era estar ali, era juntar os operadores, era obrigar o governo a vir pô-los à mesa e a encontrar as soluções para resolver os problemas e para impedir, por exemplo, aquilo com que estamos confrontados agora, e que será o descrédito total da justiça. E que, no fundo, estava anunciado, que são as prescrições, por exemplo, dos casos mais escandalosos, como a Operação Marquês ou o Salgado [caso BES], com o dinheirinho a passar e os ativos todos a passarem branqueadinhos para a descendência. É inacreditável que isso se passe. O Presidente da República podia ter intervindo muito antes, devia ter intervindo muito antes, de uma forma mais discreta, banalizando menos a sua intervenção pública, mas sendo mais eficaz na pressão sobre o governo e não levando a situações de enfrentamento como aquela em que hoje estamos. Compreendo que o Presidente da República, perante a guerra desencadeada pelo primeiro-ministro, teve de declarar a guerra - e é a isso que vamos agora assistir.

Começou aqui uma nova relação São Bento-Belém, acredita nisso?

Começou. É evidente que ambos são bem-educados e urbanos e não vão, por exemplo, como ainda agora se viu, deixar isso extravasar. Mas o Presidente da República pode ter sido encostado às boxes com a incapacidade de concretizar a ameaça de dissolução, mas a prazo pode concretizá-la quando quiser - e, entretanto, tem imensos instrumentos para ir desgastando o governo. E ele é, sabemos bem, até pela sua experiência anterior como jornalista político, líder partidário, etc., exímio a manejar todas essas ferramentas em relação ao governo, mas também em relação ao resto do quadro partidário, e em particular ao seu próprio partido. Não me admiraria que o seu próprio partido viesse a sofrer o impacto das intervenções do Presidente da República, que, sem se assumir, vai ser realmente o verdadeiro líder da oposição.

Ainda no caso de João Galamba, o envolvimento do SIS ainda não está totalmente clarificado. Há um risco real, na sua opinião, de instrumentalização das entidades públicas, que são tão importantes?

Há, e eu espero que isso seja cabalmente esclarecido no Parlamento. Ainda há audições que vão ter lugar. Porque, obviamente, a última coisa de que nós precisaríamos era que o SIS funcionasse como uma polícia política, ao serviço de um governo, qualquer que fosse. O precedente seria gravíssimo e insuportável. E, portanto, espero que, se houve erros, se identifiquem esses erros e quem errou, até para aprendermos e nunca mais tal poder acontecer. Em última análise, ainda por cima, a sensibilidade política também é imensa, porque a responsabilidade de tutela dos serviços de informação do Estado é do primeiro-ministro. Quem é que se substituiu ao primeiro-ministro, que não estava cá, para dar instruções, quaisquer que elas fossem, ao SIRP para depois, eventualmente, o SIRP as transmitir ao SIS? Isto é realmente bastante grave. Não penso que haja um padrão, mas até exatamente para que não haja um padrão e para que isto sirva de lição, importa calcular o que é que aconteceu.

E o que é que podemos esperar ainda, na sua opinião, da CPI à TAP? A Comissão de Inquérito virou uma espécie de ajuste de contas entre os políticos?

Todas as CPI têm sempre essa vertente, mas também temos CPI que fizeram a diferença na exposição de muitas questões fundamentais, por exemplo, no caso da banca. Houve outras menos. Eu lembro-me, por exemplo, da dos submarinos e de todas as compras do setor da defesa, que é, aliás, sinalizado como um dos setores de maior vulnerabilidade à corrupção, que fez um trabalho miserável. Mas, neste caso, penso que é importante a comissão parlamentar de inquérito existir e vai depender dos próprios deputados a capacidade de apurarem o que é que se passou. Eu achei sempre mal que isto se centrasse, ou seja, o pretexto foi a história dos 500 mil euros da indemnização a Alexandra Reis, mas estava muito mais em causa. Se calhar, a indemnização que vamos pagar à CEO vai ser umas dez vezes mais. Porque a história da fundamentação é bastante duvidosa, não é? Depois, há outros casos que são absolutamente clamorosos. A história do antigo CEO, Fernando Pinto, ter saído da TAP deixando de ser CEO, passando a ser consultor e a ganhar mais do que como CEO, cerca de 1,6 milhões. Brado aos céus, quem é que permitiu isto? Como é que isto se passou? E tanto quanto percebo, passou-se. Aliás, vimos o Dr. Diogo Lacerda Machado aparentemente respaldar isso e outros aspetos desse período da reprivatização parcial da TAP, sem que o Estado tivesse, de facto, em conformidade o direito de intervenção. Só passou a ter mais tarde, quando Pedro Nuno Santos assumiu o Ministério. Acho que há aí muita coisa a esclarecer.

Quando lhe perguntava por ajuste de contas, perguntava se esse ajuste de contas também poderá ser entre o próprio PS, os pedronunistas, os galambistas, os apoiantes de Medina... Há aqui um ajuste de contas também dentro do próprio partido?

Quem iniciou esse processo foi o próprio primeiro-ministro no congresso, onde sentou os candidatos a delfins ou os putativos candidatos a delfins na mesma mesa e depois os pôs em diferentes pastas no governo. Mas devo dizer que - e estou neste momento como militante de base que sou do PS, sem qualquer cargo - estou preocupada com o PS. Estou muito preocupada com o PS, porque o reflexo deste governo de casos e casinhos, e sem capacidade e sem ambição para fazer reformas de fundo, obviamente será sempre muito negativo para o PS. É evidente que o PS terá sempre alternativas e na altura própria elas certamente serão avaliadas pelos militantes e postas em cima da mesa, mas não há dúvida de que o próprio primeiro-ministro potenciou uma luta surda que penso que não é boa, nem para o governo nem para o PS. E é por isso que penso que também não é defensável que tudo seja posto debaixo do tapete. Não. A solução é escalpelizar, transparência, expor e assumir os erros para os corrigir. Essa é sempre a receita acertada, tanto para o PS como para qualquer outro partido de governo.

Com isto que disse, e o próprio António Costa o validou - numa entrevista à RTP há duas semanas -, afirmou que os potenciais gestores estão no governo, a fazer a ação política e depois cada um tirará as suas conclusões. O próprio validou essa tese. Mas essa sucessão dentro do PS vai acelerar-se agora?

Acho que essa sucessão do PS vai acelerar-se, sobretudo por causa do timing das europeias. Há decisões que estão a ser tomadas até em Bruxelas, que podem ser relevantes também para o posicionamento de líderes nacionais, incluindo António Costa. Por exemplo, a senhora von der Leyen nunca foi a votos, não se sabe qual será o peso político de cada partido. Se o partido dela, que é o PPE, onde se integra o PSD, terá o mesmo peso que teve antes. Há muita gente em Bruxelas que pensa... E não ponho em causa a atuação dela, que foi globalmente positiva, embora tenha também algumas fortes críticas. Ainda há dias acordei e até me envergonhei, como europeia e como portuguesa, com aquela notícia sobre 3,5 milhões de vacinas atiradas ao lixo. É muito culpa da atitude em relação às vacinas, que não é só nacional, mas foi europeia também, de não as considerar um bem público universal, não ter levantado as patentes, e é isso que explica este crime que é atirar as vacinas ao lixo, quando há tanta gente no resto do universo; além do risco de voltarmos a ser contaminados, exatamente porque há tanta gente não vacinada, é tremendo. Mas apesar de tudo, há quem pense que ela, ou a presidente da comissão, tem de ser reforçada na sua legitimidade por uma eleição europeia, que se fará no quadro das eleições europeias. Todos aqueles que possam vir a ter de ser eleitos para cargos europeus, podem ter de passar pela eleição europeia. Isso pode determinar posicionamentos acelerados neste resto do ano, até maio do próximo ano, antes das eleições, saber-se já muito bem quem vai ou não nas listas. E sim, pode acelerar essa competição. Para mim, isso não é realmente o mais importante.

É o quê?

O mais importante é qual vai ser o legado do PS nessa altura E isto não é uma questão de apenas atirar dinheiro para cima dos problemas, podemos invocar os PRR e todos os fundos europeus, e sabemos, vemos que temos aí um problema real: podem ser feitos grandes anúncios, mas se o dinheiro efetivamente não chega ao terreno, e não chega ao terreno a que deve chegar, se vamos continuar a investir em elefantes brancos ou em rotundas e piscinas e outras coisas assim e não em reformas estruturais que propiciem exatamente o salto tecnológico, energético e digital que o país precisa de fazer, é evidente que o balanço não será muito positivo para o PS. E é isso exatamente o que me preocupa.

E sem Pedro Nuno Santos por perto, quem é que pensa que poderá posicionar-se para a sucessão do PS?

Pedro Nuno Santos há de vir à comissão de inquérito e tenho muita expectativa em relação ao que ele lá irá a dizer. Essa ideia de que ele não está por perto não me parece muito realista.

Vamos falar também de outro tema que envolveu o governo, envolveu em polémica, o pacote Mais Habitação que foi apresentado em fevereiro. Cerca de três meses depois, acha que a montanha pariu um rato? Muitos dos autarcas do PS, por exemplo, recusaram-se até a aplicar esse pacote, nomeadamente no arrendamento coercivo.

Sim, penso que essa é uma questão fundamental de desenvolvimento do país, de planificação, de intervenção do Estado, mas quer dizer, é completamente absurdo o Estado apontar para medidas de arrendamento coercivo, embora até elas já estejam na lei, como se fosse a solução mágica, sobretudo quando o Estado tem imensas propriedades que não disponibilizou. E muitas... para não falar das imensas que foram vendidas a preço de uva mijona, para aqueles esquemas que precisavam de ser investigados. Isso não é de agora e não é sequer deste governo, já vem de muito atrás. Portanto, realmente é um absurdo estar a pôr um enfoque, e que foi devidamente aproveitado pela oposição no seu conjunto contra o PS, nas medidas de arrendamento coercivo, que não são, de perto nem de longe, as mais eficazes, as mais operacionais sequer, como disse, com muitas autarquias até socialistas a dizerem da impossibilidade de fazer isso. E, sobretudo, quando o Estado não começou a fazer o essencial, que era cadastrar todos os edifícios que tem e que pode disponibilizar exatamente para os converter, por exemplo, em residências de estudantes, em habitação social, etc. E em avançar para aquelas outras medidas que permitiriam investir na habitação social. Nós sabemos que somos dos países a nível europeu que têm dos mais baixos índices de construção em habitação social. E não é que não haja pessoas perfeitamente capazes de conceber isso, mas têm estado arredadas do poder. Portanto, isso acabou por não ser eficaz. Não penso que tenha rendido muito ao PS.

Poderá ser mais uma reforma que fica por fazer?

Sim, e sobretudo não é uma matéria em que se possa ter resultados a curto prazo ou que sequer aqueles que podiam ter algum impacto, pelo menos a médio prazo, tenham sido adotados.

Quando falamos de grandes projetos, é inevitável também falar do novo aeroporto de Lisboa, que tantas páginas têm enchido, com tantos projetos e tantos anos de discussão. O que é que tem faltado nestes anos? É a falta de vontade política? É quem paga a fatura? Como é que analisa este impasse imenso?

Acho que este impasse tem que ver com o centrão dos interesses que competem e que, justamente, em determinados momentos e com determinados governos, uns e outros estão ali. E é evidente, não podemos aqui ignorar o interesse da Vinci e da ANA. Acho que foi um grande disparate a privatização da ANA, era um dos setores que penso que seriam estratégicos na perspetiva também do interesse estratégico do hub de Lisboa, mas agora há interesses no aeroporto de Montijo. Não sei o que é que vai sair dessa comissão que está agora aí para finalmente chegar num ano a uma decisão que há 50 anos tarda. Eu acabo de vir da Indonésia, vivi lá 20 anos, vi uma diferença brutal, vi o resultado da democracia a funcionar. E vi, não só na limpeza e na organização das grandes cidades, mas vi-o em particular nos aeroportos. Os aeroportos mudaram, cresceram, funcionam. E fiz agora dez viagens de avião com uma equipa de seis pessoas e não houve um voo atrasado e não houve uma mala perdida. E duvido que pudesse dizer isto sobre a Europa e até sobre Portugal neste momento. Portanto, há aqui de facto um problema de fundo que tem que ver com a forma como diversos governos se deixaram manipular por esses interesses que competem. E é evidente que precisávamos mais do que nunca de ter governantes com coragem e sentido de Estado.

Portugal está a "aproveitar" aquilo por que lutou, a independência de Timor-Leste? Ou seja, a relação entre Lisboa e Díli, a CPLP, a relação de Portugal com Timor? Temos capitalizado essa relação, estado presentes, ou como sempre é só discurso?

Podíamos aproveitar mais. Nós somos normalmente muito bons a lutar por chegar à praia e depois morrermos na praia e nestas matérias também, quer em relação a Timor-Leste quer em relação à Indonésia. Porque também ajudámos a construir a boa relação que hoje temos com a Indonésia e que Timor-Leste tem com a Indonésia. E a Indonésia é um país que vai ser a quinta economia do mundo no próximo ano, segundo as previsões do FMI. A classe média quase quadruplicou desde o tempo em que lá estive, são cerca de 80 milhões. Há o interesse político do lado da Indonésia, mas do nosso lado não tem sido correspondido. Lamentavelmente, o senhor Presidente da República, no ano passado, quando foi a Timor, teve também prevista a ideia de ir à Indonésia e depois cancelou. Isto deixa marcas. Não temos nenhum delegado da AICEP lá neste momento e estamos a falar de um país que é a quinta economia do mundo. Podemos encher os discursos de que África, América Latina, blá-blá pirulito, tudo muito bonito, mas não fazemos aquilo que é essencial para aproveitar as oportunidades que nos separam de uma abertura política, onde há interesse político, onde há interesse estratégico, onde podia ser historicamente rentável investir. E isso passa por ter serviços públicos, por exemplo, ao nível da promoção das exportações, de apoio aos setores exportadores, direcionados para determinados mercados. Do meu ponto de vista, a Indonésia deveria ser um desses mercados privilegiados, até por causa do desenho estratégico que se sente e que tem que ver com o potencial de conflito com a China, com os interesses da China por controlo de setores estratégicos na Europa - no nosso país também. Deveríamos compensar isso com outro tipo de investimento no relacionamento económico com países como a Indonésia.

Não resisto a fazer-lhe esta última pergunta. Certamente já viu Herman José a fazer de Ana Gomes?

E já me ri muito com ele, porque nos dizem irmãos e acho que nós parecemos irmãos, de facto.

Já falou com ele sobre isso?

Já falei com ele sobre isso, até já falei com ele num programa dele. E rimo-nos muito e divertimo-nos muito. Há uns sujeitos que pensam que me insultam quando me chamam Herman José no Twitter, é muito frequente, mas não me insultam nada, pelo contrário. Acho muito divertido ser parecida com o Herman José. Gostava era de ter o sentido de humor dele.

Mas ele faz bem de Ana Gomes, captou bem a sua forma de estar?

Faz muito bem, ele é admirável como ator e humorista.

Imagens: Ana Gomes © Gerardo Santos / Global Imagens

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