domingo, 28 de maio de 2023

Portugal | O REGRESSO DOS VAMPIROS


 

A extrema-direita avança porque o pantanoso ambiente em que medra é incentivado e as cumplicidades são muitas. Manifesta-se em múltiplos sintomas. Um deles é o regresso em força da bufaria e do espírito persecutório a quem pense diferente. Varre tudo, desde os órgãos de comunicação social às instituições. Um dos pretextos mais correntes é o fanatismo anti-russo. O autor deste texto foi denunciado por ter participado em comemorações do Dia da Vitória. O dia em que o nazi-fascismo capitulou perante o Exército Vermelho. Um crime, para a bufaria fascista a quem todas as portas são abertas.

“No céu cinzento sob o astro mudo, batendo as asas pela noite calada, vêm em bandos com pés de veludo, chupar o sangue fresco da manada”. O aviso é de 1963, mas a metáfora é, afinal, permanecente. Depois de um tempo de recolhimento prudente, os vampiros que José Afonso retratou surgem agora menos façanhudos, mas a fome mantém-se. No início desta semana, um colega meu, que se identificou e anunciou como “judeu de raízes ucranianas”, enviou aos professores do Conservatório onde trabalho uma mensagem de correio eletrónico na qual denunciava a minha presença nas comemorações do Dia da Vitória (sobre o nazi-fascismo), em Lisboa. É como se o “bufo” - subespécie de vampiro que nem asas chega a ter – renascesse dos tempos da indignidade e voltasse a poder riscar cruzes celtas e de David nas portas da cidade.

Não saberá o tal “judeu de raízes ucranianas” que houve, nesta cidade, freitas-seabras e louzã-henriques que pagaram com a própria liberdade o privilégio de sermos livres; ignorará os arnaldos-januários que deram a própria vida, em tarrafais distantes, pelo sonho (o objectivo) de viver com dignidade; desconhecerá o gesto dos avelãs-nunes que, no tempo vergonhoso, desafiaram reitores fascistas para estarem ao lado de estudantes insurrectos. Pior: o anacrónico “bufo” desonra, afinal, um Aristides que arriscou tudo na salvação da dignidade e da vida de judeus, e é desmerecedor dos ucranianos que morreram, faz agora 78 anos, na salvação de uma Europa que os desmerece também.

Recebida a tal mensagem, colegas meus procuraram-me, indignados, denunciando o abuso. Entre aqueles com quem não falei, haverá, porventura, quem tenha ficado indiferente à agressão. No ambiente geral de violência que se instalou entre nós, os indiferentes são os colaboradores maiores do “pensamento único”, despudorado e exibicionista, que, nestes dias, se vê vencer a fronteira da desvergonha. E haverá também os que desistem de procurar respostas, conformados na aceitação das notícias, da obediência à sentença de um Borrell-dono-da-europa que vê na censura descarada de toda a informação desalinhada “a defesa da liberdade de expressão” – Goebbels não diria melhor.

Não passa, o meu colega, de peixe menor, daqueles que carregaram os livros para a fogueira da Praça da Ópera, na Berlim de 1933. É aos maiores que temos de pedir maiores responsabilidades. Aos que, nesta cidade que já foi um lugar de luta pela liberdade, cortaram relações de geminação com Yaroslavl apenas por ser russa, e tal ser delito bastante para a recusa de qualquer contacto; aos que cancelam, nos lugares do Conhecimento, um cidadão russo pela culpa primeira de o ser, em atendimento a denúncias (sem verificação) de dois bufos rasteiros, secundados por um bufo-mor do comentário televisivo, cujas únicas credenciais são as do activismo russófobo.

Estive sim, em Lisboa, na comemoração do Dia da Vitória. Festejei um dia essencial da nossa História recente junto a portugueses, russos, ucranianos, bielorrussos, arménios e demais herdeiros de um tempo de luta contra o Holocausto. Na rua, mantidos à distância pela polícia de um Estado (ainda) democrático, neofascistas exibiam a bandeira do Pravy Sektor, validados pela passividade cúmplice de uma opinião pública crédula e desprotegida. À vista da tragédia, a que se junta nestes dias o chão da velha Academia, ouçamos os profetas: “se alguém se engana com seu ar sisudo, e lhes franqueia as portas à chegada, eles comem tudo e não deixam nada”.

*Publicado em O Diário.info

Fonte: https://www.facebook.com/1286915789/posts/pfbid05kuVRZTgC7VQSxA8pon787kLvJRn76F9Ym4uA1A4nvyhPYhEGwtUddYzYPKdpk1Sl/?app=fbl

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