Artur Queiroz*, Luanda
Franz Kafka é ele e a cumplicidade com Dostoiévski ou Nietzsche. Conheci-o nas páginas do livro A Metamorfose e tornámo-nos íntimos nas páginas de O Processo. Durante alguns anos li o livro todas as madrugadas, que são as melhores horas para mergulhar na leitura sem interferências viciosas. Nunca vi o absurdo nas suas páginas. Nunca li concessões a uma humanidade que havia de revelar a sua absoluta indiferença, ante as bombas atómicas de Hiroxima e Nagasaki. Ele escreveu porque viveu o nascimento das armas químicas na I Guerra Mundial. Eu dei os primeiros passos ameaçado pelo fogo das fornalhas de duas guerras de extermínio. E assim cresci no crime do colonialismo e da guerra colonial.
Ravachol, o líder dos ilegalistas, dizia que não há inocentes. Tenho de desmenti-lo porque estou inocente desse crime hediondo que foi despejar bombas de destruição maciça sobre duas cidades japonesas, Hiroxima e Nagasaki, quando o Japão já estava derrotado e de joelhos ante os vencedores. Nessa altura só sabia dizer Papá e Mamã. Pouco mais. Mas foi o fogo que saía das fornalhas das duas guerras que moldou o meu amor à Justiça. Acima da Liberdade, da Independência, da Dignidade, da Cidadania está a Justiça. Vivo com essa paixão desde os anos da juventude.
Carlos São Vicente, filho do meu mestre e amigo Acácio Barradas, é um homem admirável. Deram-lhe uma oportunidade e ele construiu um mundo. Deram-lhe o exclusivo dos seguros do petróleo angolano e ele fez fortuna. Investiu os lucros em Angola, sobretudo na Hotelaria. Criou riqueza e postos de trabalho. O empresário foi preso no dia 22 de Setembro de 2020 à ordem da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Um mês e meio antes, em 8 de
Agosto de
A sentença condenatória da primeira instância (Tribunal da Comarca de Luanda) tem na base ilegalidades gritantes e inconstitucionalidades. O empresário Carlos São Vicente recorreu para o Supremo Tribunal porque ainda não existia o Tribunal da Relação. O processo kafkiano piorou. A sentença foi confirmada espezinhando as Leis e a Constituição da República. Entrou recurso no Tribunal Constitucional. Muitos meses depois saiu um Acórdão que deu cobertura às ilegalidades e inconstitucionalidades.
Estão em causa nulidades relevantes. Foram ignoradas formalidades processuais, actos formais inerentes à própria tramitação do processo, actos que a lei proíbe, actos formais cuja observância a lei exige mas foram ignorados. A lei chama-lhes nulidades. Uma fonte do Tribunal Constitucional ajudou-me a perceber o processo kafkiano. Eu tiro as minhas conclusões e assumo as opiniões que aqui expresso.
Ponham-se no lugar de Carlos São Vicente. Duas semanas depois de ser enclausurado na prisão de Viana foi visitado por magistrados do Ministério Público, sem a presença do seu advogado. Ameaçaram-no de ficar a apodrecer na cadeia se não entregasse todos os seus bens ao Estado. Não cedeu às ameaças e à chantagem. Mas percebeu que a partir dali, quando fosse responder ante o Tribunal, estava apenas a participar num espectáculo de mau gosto. A sentença estava lavrada. Mas ainda assim acreditou que em algum ponto do percurso kafkiano, alguém havia de lutar pela realização da Justiça.
O primeiro sinal kafkiano chegou quando no Tribunal de primeira instância lhe negaram o direito a escolher o seu advogado. Gravíssimo. Mas o Tribunal Supremo entendeu que Carlos São Vicente teve direito de defesa porque na procuração junta aos autos constam os nomes de vários advogados! Mas o seu, o que ele escolheu, figura em primeiro lugar na lista. Trabalha com ele há longos anos. Conhece bem a sua vida pessoal e empresarial. Todos os outros estão lá porque trabalham no mesmo escritório.
Com base na procuração, o Tribunal Supremo afirma que Carlos São Vicente não teve os seus direitos de defesa beliscados porque foi sempre assistido por mandatários que constam do papel e, portanto, “foram por si escolhidos”. Não foram. E os venerandos conselheiros nem se inquietaram (pelo menos isso!) com o abuso inqualificável que foi impedir a intervenção em audiência, do advogado escolhido por Carlos São Vicente. O seu advogado de sempre. Justiça â maneira dos torcionários de Kinkuzu.
O Tribunal Supremo tinha o dever de apreciar se é ou não legal impedir que um advogado escolhido pelo arguido seja afastado por capricho ou para infringir um castigo a quem recusou entregar a bandidos, o produto do trabalho de uma vida. É ilegal. O Tribunal Constitucional tem agora a última oportunidade de mostrar se está com a Justiça ou com Kinkuzu. Pode agora dizer se é ou não legal. Eu ajudo. É gritantemente ilegal. A decisão tem de ser anulada porque é contrária à Lei. Mas em Kinkuzu o problema nem sequer se colocava. Ali era matar, matar e matar. Miala estudou nessa escola. Que mais ninguém o acompanhe na barbárie.
O Tribunal Constitucional não pode substituir-se ao Tribunal Supremo e suprir a omissão verificada. Mas ao não agir, incorre em omissão de pronúncia. Uma nulidade. A Justiça é cega mesmo. Não pode apenas ter olhos e ouvidos para as ordens sopradas do Palácio da Cidade Alta. O Poder Judicial, no regime presidencialista, é a última esperança para travar os candidatos a ditadores. Grande responsabilidade! Se não forem capazes de assumir, demitam-se e o Miala que ponha lá os seus torcionários da escola de Kinkuzu.
O Tribunal Constitucional aceitou como bom o argumento de que havendo uma procuração nos autos com os nomes de vários advogados, está tudo bem! Não está. O advogado do arguido foi impedido de defendê-lo. E a Lei não permite, em caso algum, que o advogado escolhido seja substituído por vontade do Tribunal. Se todos os Tribunais agirem assim, qualquer dia os arguidos são defendidos apenas por advogados da confiança de João Lourenço e Fernando Garcia Miala. É isto que querem as e os venerandos conselheiros do Tribunal Constitucional? Então adeus Estado de Direito.
O advogado ilegalmente afastado pelo Tribunal de primeira instância consta em primeiro lugar na lista da procuração. É evidente que esse sim é o advogado em que o arguido confia. E que queria. Nas próximas eleições o cabeça de lista do partido que ganhar as eleições pode ser trocado por outro qualquer eleito. Estão todos na lista de candidatos a deputados…
O pedido de abertura da instrução contraditória foi respeitado. Aqui também entrou a prática de Kinkuzu, para pior. Durante praticamente todo o período de tempo que a lei confere, o arguido e seu advogado foram impedidos de consultar o processo! Só foi possível a consulta durante duas horas (centenas de páginas), no penúltimo dia do prazo! Justiça à maneira de Kinkuzu promovida por juristas da escola Miala.
Não desçam tão baixo, mesmo que estejam ameaçados de perder as mordomias, as casas, os carros e tudo o resto. O MPLA, durante longos anos de luta, devolveu a dignidade e a honra a todas as angolanas e angolanos. Não atirem a honra e a dignidade ao caixote do lixo do Miala. Mais uma violação de um direito fundamental que o Supremo Tribunal aplaudiu e o Tribunal Constitucional confirmou.
A sentença foi lavada por
magistrados do Ministério Público (ou serventes do Miala?) que fizeram uma
“visita surpresa” a Carlos São Vicente na cadeia de Viana. Ou entregas tudo ou
morres! Estão a matá-lo lentamente, mas à cautela já lhe roubaram tudo em nome
do combate à corrupção. Nem esperam que a sentença transite
Excelências tomem nota. A omissão dos fundamentos da defesa constituiu nulidade nos termos de artº 417º. Nº2, alínea d) e número 3 do Código do Processo Penal. Lamento informar todas e todos os conselheiros do Supremo e do Tribunal Constitucional que no Estado de Direito existe a presunção de inocência. E quando há dúvidas, a decisão deve ser a favor do arguido.
Nem Kafka se lembrava deste abuso no seu livro O Processo. Duas testemunhas essenciais à descoberta da verdade, indicadas por Carlos São Vicente, foram ignoradas. José Eduardo dos Santos e Manuel Vicente não foram ouvidos pelo Tribunal de primeira instância. O Acórdão do Tribunal Supremo ignorou este gravíssimo atentado aos direitos do arguido.
O Acórdão do Tribunal Constitucional ignora o atropelo e a inconstitucionalidade. Seguiu as técnicas mobutistas de Kinkuzu. É uma epidemia! Querem mesmo seguir esse caminho? O Tribunal Constitucional até assume o erro do Supremo Tribunal. Testemunhas chave não foram ouvidas, porque isso deitava por terra a sentença já redigida e não permitia roubar os bens de Carlos São Vicente, alguns já ocupados por serviços públicos e ministérios antes mesmo da sentença! Salazar, Mobtu, Bokassa e Idi Amin, os quatro juntos, não eram capazes de ir ia tão longe.
Tribunal Supremo e Tribunal Constitucional foram mais além na farsa. Afirmaram (escreveram!) que não havia necessidade de ouvir as testemunhas porque nos autos existiam abundantes provas! EU sou um repórter formado na velha escola da notícia, Mas sei que a prova se faz na sala do Tribunal, duramente a audiência. Aprendi isso quando fazia os Casos de Polícia. A defesa do arguido faz-se cara a cara, olhos nos olhos. O processo é apenas um guião. Isto até a empregada da limpeza do Tribunal sabe. Se bastassem os autos, o julgamento não servia para nada.
A sentença do Tribunal de primeira instância dá como provados factos que não constavam na Acusação nem sequer nos quesitos! O Supremo Tribunal e o Tribunal Constitucional leram as alegações do recurso e lá estavam destacados essas enormidades. Não viram. Não quiseram ver. Carlos São Vicente foi condenado no gabinete de Fernando Miala e a sentença foi confirmada no Palácio da Cidade Alta, tudo o resto foi espectáculo. A condenação extra judicial estava lavrada. Os juízes não atrapalharam.
O Tribunal Supremo enveredou pela omissão de pronúncia. O Tribunal Constitucionalidade optou por negar a existência de factos novos na acusação. Coisas primárias, ao estilo dos torcionários de Kinkuzu e do Estado de Direito do ditador Mobutu. Tanto sangue derramado, tanto sofrimento para em 2023 Angola estar pior do que durante as agressões estrangeiras em 1974 e 1975.
O Tribunal inspirado na Justiça de Kinkuzu aceitou um escrito apócrifo como meio de prova. Um papelito sem assinatura, provavelmente fornecido pela empregada doméstica do agente do Ministério Público que “visitou” Carlos São Vicente na cadeia. O Código do Processo Penal proíbe a sua utilização (artº 184 número 3).
Um escrito apócrifo nem sequer pode ser apreciado como meio de prova. Mas a sentença condenatória usa a falsidade abundantemente. Reproduz factos do papelito como se fossem verdadeiros e a utilização legal. O Tribunal de primeira instância inclui o papelito na listagem de documentos que suporta a condenação. Proibido. Ilegal. Fantochada. Indigno de magistrados judiciais. Nem os matadores de Kinkuzu eram tão descarados na farsa.
Gravíssimo. Intolerável. O Supremo Tribunal e o Tribunal Constitucional incorreram na mesma inconstitucionalidade ao admitirem um meio de prova legalmente inadmissível. Tudo ao nível de Kinkuzu e dos carrascos de Mobutu. Merecem uma condecoração igual à do Rafael Marques, a percentagem da praxe, uma boa casa e muitas felicidades. Mesmo sabendo que a farsa acaba em 2027 e depois pode acontecer-lhes o mesmo. Ou pior. Depende do nível dos novos senhores.
Carlos São Vicente não teve direito a um julgamento justo. Não há em todo o processo matéria de facto para condená-lo pelos crimes de peculato, branqueamento de capitais e fraude fiscal. A senhora que trata de recuperar milhões dos outros para dar aos donos, já lhe roubou tudo. Libertem-no imediatamente porque está inocente. Os amigos e familiares vão partilhar com ele o pão nosso de cada dia. Mas não o matem na cadeia. Às ordens do ditador. Ordens de quem? João Gonçalves Lourenço. Faliu o Estado de Direito. Confiscaram-nos a honra, a dignidade e a liberdade. Pior é impossível.
Sabem quando conheci Carlos São Vicente? Na Brigada Jovem da Literatura. Era um jovem quadro do MPLA que despontava. Fiquei orgulhoso com a trajectória do filho do meu mestre e amigo Acácio Barradas. Agora está a apodrecer na cadeia às ordens do líder do MPLA e seus carrascos disfarçados de magistrados judiciais e polícias de giro.
*Jornalista
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