Artur Queiroz*, Luanda
A escola de São Domingos tinha grandes futebolistas e um bom campo de futebol. Nós, os da Vila Clotilde, íamos lá jogar e a nossa equipa era reforçada com os craques locais. Fiz lá grandes amizades. O Isaías era ao mesmo tempo guarda-redes, defesa lateral à esquerda e à direita, central, médio e ponta de lança. O maior! Um dia o senhor padre marcou uma redacção de tema livre. O meu amigo escolheu o Caminho Marítimo para a Índia. Um texto fabuloso que vou citar der memória.
Há muito, muito tempo havia um senhor chamado Vasco da Gama. Comprou caravelas de nau, pôs tudo na água e correu com corrida, correu com corrida até que um homem muito grande, muito feio, chamado Adamastor mandu fazer alto. Não passa. Não passa! Ficou em cima da água e roncou:
- Xé Sô Vasco vais aonde?
O sô Vasco falou assim: Sô ‘Damastor vou mesmo na Índia.
O gigante chegava com a cabeça aos tectos negros do fim do mundo, levantou-se três vezes da água e roncou de novo:
- Porque nhé nhé nhé. Aqui é a minha casa. Ninguém passa. Nhé nhé nhé. Ali também não dá é a casa dos meus braços. Nhé nhé nhé. Ali também não dá é a casa das minhas pernas. Nhé nhé nhé. Aqui no fim do mundo não passa ninguém.
O sô Vasco falou assim: Sô ‘Damastor se preciso for pago portagem e deixo vinho do Puto muito bom. Dez barris de palhete.
O gigante saltou, bateu com a cabeça no tecto negro do fim do mundo disse pópilas! Pópilas! Nhé nhé nhé. Aqui não passas. Eu não sei o que é isso de portagem e sou do Simão Toco, não bebo. Nhé nhé nhé.
Aí o sô Vasco da Gama falou assim: ‘Damastor não chateia branco. Deixa só o branco chegar na Índia. E arrancou com as caravelas de nau até Calecut.
O Tribunal Constitucional desceu ao nível do sô Vasco e fez dos advogados do empresário Carlos São Vicente, gigantes Adamastores. O acórdão redigido há quase um mês só agora foi tornado público. Diz que não existiu nenhuma inconstitucionalidade na primeira instância e confirma o Acórdão do Tribunal Supremo. Não há inconstitucionalidades. Mas os venerandos magistrados não se limitaram a recusar o recurso extraordinário.
Na decisão recorrida “não houve violações de Direitos Fundamentais evocados pelo recorrente”. Já lá volto. A apreciação do Tribunal Constitucional tem 30 páginas e os magistrados judiciais queixam-se do “estilo prolixo (…) extenso, repetitivo e redundante” que marca o recurso. O Adamastor repetindo, repetindo, nhé nhé nhé. Não passas. Também se queixam de “uma copiosa argumentação”. Não passa, sô Vasco. Aqui não passa nhé nhé nhé. Carlos São Vicente fica na cadeia. Esta noite na TPA uma portuguesa disse esganiçada que o dinheiro roubado tem de regressar a Angola! É do Ministério Público lá do sítio mal frequentado e veio a Luanda dar lições à senhora da recuperação de activos.
Os adamastores no recurso referem impedimentos aos advogados. Pouco tempo para examinar o processo. Falta de inquirição de duas testemunhas chave, o Presidente José Eduardo dos Santos e o engenheiro Manuel Vicente, à época dos factos PCA da Sonangol. Introdução de factos novos não constantes na Acusação. Erros graves na apreciação de prova. Utilização de documentos apócrifos como meio de prova. Omissão de pronúncia referente à liquidação de património e indemnização.
Os nove magistrados do Tribunal Constitucional responderam: ‘Damastor. Não chateia os juízes. Deixa só o teu cliente na cadeia. Deixa só comer todos os seus bens.
E assim se fez. Hoje mesmo a senhora da recuperação de activos embandeirou em arco e anunciou que todos os bens do empresário Carlos São Vicente foram perdidos a favor do Estado. Já tinham sido! Até há edifícios que lhe pertencem, ocupadas por serviços do Estado há mais de um ano! Fez esta declaração mesmo sabendo que os adamastores advogados têm até segunda-feira para arguir nulidades. Quando as coisas aquecem e o povo fica sem comida na mesa, atiram com Carlos São Vicente para a frente. Mas nunca falam de Álvaro Sobrinho. Um dos seus empregados acaba de ser chamado para ministro do Comércio!
Apesar de mais uma vez a Defesa do empresário estar comprometida, até segunda-feira vai entrar novo recurso. Mas pela conversa da senhora que trata da recuperação de activos, é evidente que o recurso prolixo e redundante desta vez também vai para o lixo. A turma do Miala na TPA colocou em grande plano uma foto do empresário Carlos São Vicente e leu o que Miala mandou ler.
O advogado de Carlos São Vicente foi impedido de entrar na sala do Tribunal. O colectivo de juízes recusou ouvir duas testemunhas que podiam esclarecer tudo, o Presidente José Eduardo dos Santos e o engenheiro Manuel Vicente. Os magistrados disseram que não era necessário. O empresário foi condenado com base num papelito que nem estava assinado! E nove juízes acham que a legalidade foi respeitada.
Os nove juízes do Tribunal Constitucional e todos os outros que colaboraram no julgamento fizeram de Carlos São Vicente um preso político. Angola tem, a partir de hoje, oficialmente, um preso político. Chama-se Carlos São Vicente. Os magistrados judiciais que participaram no julgamento da primeira à última instância comportaram-se como membros dos tribunais plenários, às ordens da pide do Miala. Todos ficam com essa marca no currículo, mesmo as e os que pertencem ao comité da especialidade no MPLA.
Juízes estão às ordens de um poder político que já ultrapassou, nos primeiros cinco anos do mandato do Presidente João Lourenço, o pior do mobutismo. Angola vive sob o estilo político e a ideologia do finado Mobutu.
Angola precisa urgentemente de um novo 4 de Fevereiro. A refundação do MPLA é ainda mais urgente. Entre a PIDE do São José Lopes e a PIDE do Miala há uma grande diferença mas para pior. Entre Mobutu e João Lourenço há uma diferença abissal. O ditador da RDC era mais comedido e menos voraz a sacar o dinheiro dos outros.
* Jornalista
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