quinta-feira, 20 de julho de 2023

O Milionário Suicida -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O Mano Arnesto (Ernesto Lara Filho) tinha uma secção própria para as suas crónicas O Seripipi Angolano. Bobela Mota Letras a Desconto. Joca Luandense Mukandas. Eu não quis ficar atrás e lancei Crónicas de Viagens.  Tomei-lhe o gosto e mais tarde criei O Submarino Vermelho, Estórias do Meu Amigo Charli Bar e no Jornal de Angola Crónicas à Média Luz.

As Crónicas de Viagens metiam sempre um milionário em férias milionárias que morria de morte macaca. No início correu tudo bem. Um censor disse a Bobela Mota que aquilo não tinha piada nenhuma, não merecia publicação. Mas o chefe, que era surdo, fingia que não ouvia mesmo nada e publicava as crónicas. Até que à terceira um censor mais vivaço deu uma de “jornalista de investigação” e descobriu que as duas crónicas anteriores eram subversivas. Cortou a peça intitulada O Milionário Suicida.

Até era una crónica desopilante, tinha o seu quê de humor e uma pitada de snobismo sexual. O milionário foi num cruzeiro à Terra Santa. Preparou a viagem ao pormenor. Desembarcou em Alexandria, para ver a biblioteca e dar uma saltada às Pirâmides de Gizé e sua acrópole. Depois avançava para o objectivo santificado.

No bar do hotel, enquanto bebia uísque da minha idade, só com gelo, um pianista esforçava-se por tocar um bolero romântico. Eis que entra uma mulher das arábias, rainha na Inglaterra, santa no céu, imperatriz na Rússia, amante idolatrada no meu quartito do Bairro Operário. Ela varreu o salão com um olhar altivo, esboçou um sorriso celestial, meneou os seios opulentos e num passo coleante dirigiu-se à mesa do milionário em demanda do Santo Sepulcro. Sentou-se a seu lado e estendeu-lhe a mão para o beijo da praxe.

Aquela mulher valia mil récuas de camelos, todo o seu dinheiro, a totalidade do ouro das minas do Rand, toneladas de diamantes do Império do Muata Iânvua. E a sua voz? Maviosa. Sarita Montiel cantando beija-me, beija-me muito como se fosse esta noite a última vez. Ela fez um gesto harmonioso, sacudiu a cabeleira, apontou em direcção ao pianista, o milionário seguiu os seus gestos delicados, fascinado, hipnotizado, em estado catatónico. A beldade depositou à socapa um pozinho no copo de uísque.

O pianista continuava a assassinar o bolero. O par milionário continuou a divertir-se. Eis senão quando o adorador da Terra Santa e demandador do Santo Sepulcro começou a remexer-se na cadeira. Depois contorções. Mais tarde convulsões. E da extremidade anal saiu um cérebro completo. Depois a matéria córnea e finalmente formou-se uma cabeça perfeita. 

Enquanto o pianista bolerava e a beldade esbanjava promessas de sexo ao vivo, a segunda cabeça do milionário falava, criticava, chateava. O que vais fazer à Terra Santa? Vamos ficar com esta santinha! E a outra cabeça replicava: O meu destino é o Santo Sepulcro. A discussão azedou. Vieram as ameaças. Os insultos. Entrou na sala o chefe da segurança do hotel e pediu calma ao milionário e suas duas cabeças. E ele, fora de si, pediu-lhe a pistola Beretta mas o segurador recusou. Tirou da carteira um maço de notas de dólar e a pistola caiu miraculosamente nas suas mãos. Aí arreou as calças e disparou contra a cabeça de baixo. 

Os miolos saltaram, o sangue espirrou para cima da beldade que, enfadada, saiu altaneira do local do crime. Instantes depois o milionário morreu. Tinha-se esquecido da teoria dos vasos comunicantes. Matando a cabeça nova, também a cabeça velha ia à vida porque a morte comunicava de uma para a outra, mesmo a subir. 

Assim acabou mais uma crónica de viagens. A última. Porque desde então os censores nunca mais deixaram passar nenhuma e eu desisti. Mudei para as Crónicas do Submarino Vermelho que também tiveram pouco tempo de vida. Naquele tempo a palavra vermelho era proibidíssima. Só se podia dizer encarnado. Mesmo o equipamento do Eusébio!

Maldita censura. Resolvi ser mais comedido na escrita e avancei com as Estórias do Meu Amigo Charli Bar. Censuradas. Desisti. Mas fiquei a odiar a censura e os censores. Um ódio visceral que me envenenava a vida e a escrita. Apetecia-me matar os censores. Pensei ir ao psiquiatra. Fui salvo pelo 25 de Abril de 1974 quando o meu querido e saudoso amigo Otelo Saraiva de Carvalho e seus companheiros de luta derrubaram o colonialismo e o fascismo. 

Voltei a escrever as crónicas do submarino no jornal A Página e O Pasquim. Ressuscitei as Estórias do Meu Amigo Charli Bar no Jornal de Coimbra. E no Jornal de Angola as Crónicas à Média Luz. Assim exorcizei o ódio à censura. Estava curado e refastelado na escrita livre quando a União Europeia, o estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA), Reino Unido e a OTAN (ou NATO) censuraram os Media russos. Ouvi a notícia e pensei que estava com alucinações visuais ou auditivas. Era mesmo verdade.

Mal refeito deste crime hediondo contra a Liberdade de Imprensa, a BBC anunciou empolgada que o jornalista Julian Assange ia ser extraditado para os EUA onde o espera uma prisão perpétua ou condenação à morte, por ousar ser jornalista. As ONG especializadas em liberdade ficaram em silêncio. Sindicatos e outras instituições de jornalistas, silêncio. Partidos políticos que se dizem defensores da democracia, nem uma palavra de protesto. O ocidente alargado acabava de pregar o último prego no caixão do Jornalismo. Na Liberdade de Imprensa. Na Democracia Representativa. 

Margarita Simonovna Simonyan  é uma jornalista russa. Dirige o canal de televisão Russia Today. Antes que seja tarde, digo que aprecio tanto a RT como a BBC, a CNN, a Voz da América, a DW (Deutsche Welle), a RTP, a nossa TPA e outras instituições que são a voz dos donos. Mas censura nunca, jamais em tempo algum! Quem decide da sua existência, do seu sucesso, são os consumidores. Mais ninguém. 

A jornalista Margarita Simonovna Simonyan  foi vítima de um atentado terrorista. Só não morreu porque as forças de segurança salvaram-na in extremis. Em 2022 e 2023, ela foi sancionada pela União Europeia, Reino Unido   e o governo ucraniano “por promover desinformação sobre a guerra na Ucrânia”. O atentado à sua vida foi promovido por estas entidades. Hoje as autoridades russas capturaram dois indivíduos que tentaram matar a jornalista. E os detidos conduziram a polícia a uma organização neonazi. Na sede do grupo foram encontradas armas, explosivos e muita propaganda nazi. 

Bruxelas, Londres e Kiev não ficam isentos de culpa. São seguramente os mandantes. As “sanções” impostas à jornalista são actos terroristas. Hoje dei-me ao trabalho de consultar todos os Media do ocidente alargado. Nem um deu a notícia do atentado contra uma jornalista que dirige um canal de televisão censurado. A Liberdade de Imprensa está morta com certidão de óbito passada. João Lourenço meteu Angola neste cemitério de mortos a soldo de um poder em decomposição. Um dia também vai no necromobil dos políticos falhados. 

Um dirigente político português que faz parte das elites corruptas e ignorantes manifestou-se contra a visita do Presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel,  a Portugal. Porque, disse o kaxiko, naquele país não há eleições livres e justas. 

Na Suécia há eleições livres e justas. Elegeram a extrema-direita. Na Polónia há eleições à medida do banditismo político ocidental. Elegeram nazis. Nos Países Baixos (Holanda) há eleições segundo as regras dos senhores do mundo. Elegeram a extrema-direita. Na Grécia há eleições homologadas por Washington. Nazis no poder. Espanha vai a eleições no próximo domingo. As sondagens dão a vitória à extrema-direita manhosa e aos neonazis do Vox. 

Em Portugal os Media, sobretudo a RTP, fazem de cada intervenção do líder nazi André Ventura um acto de propaganda eleitoral. O tempo no audiovisual mede-se ao segundo ou o tempo real. O líder nazi nunca fala menos de oito minutos! Polícias, agentes do Ministério Público e magistrados judiciais estão empenhados em “eleições livres e justas” a favor da extrema-direita salazarista (é pior do que nazi…). Hitler ganhou as eleições na Alemanha e legitimado pelo voto popular avançou para o Holocausto. Já cheira a extermínios.

A UNITA (nazis de Angola) diz que “decorrido quase um ano desde a realização das últimas eleições gerais e tomada do poder pelo Presidente da República, o País vive uma grave crise”. O partido que lidera a oposição não pode afirmar que o Chefe de Estado “tomou o poder”. Porque está a negar as eleições. A rejeitar os resultados eleitorais. A espezinhar o regime democrático. É com profunda mágoa que vejo João Lourenço aproximar-se perigosamente da ideologia da UNITA. Já tem um prisioneiro na sua Jamba: Carlos São Vicente. 

Uma das suas agentes, a senhora que trata da recuperação de activos, em Janeiro disse que o Estado já recuperou “5 mil milhões de dólares de activos retirados ilicitamente do país, enquanto aguarda decisões judiciais relativas a bens no valor de 21 mil milhões”. Agora revelou que já recuperou 19 mil milhões. Não diz como nem quando nem onde. Não diz em que processos judiciais. Não diz quem eram os “donos do dinheiro”. Sobretudo não informa sobre o destino desses fundos recuperados. Tudo opaco. Tudo aldrabice. Como diz José Luís Mendonça, até as verdades deles cheiram a mentira.

*Jornalista

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