Em cartaz, dois instigantes filmes portugueses. Um narra com surrealismo as aventuras de um príncipe-bombeiro diante da crise climática – e que prefere arte e sexo ao trono. O outro usa diálogos entre vivos e mortos para satirizar a família
José Geraldo Couto, no Blog do Cinema |
O filme Fogo fátuo tem sessões no cinema do IMS Paulista entre os dias 20 e 29/7 - (Ver Trailer)
Por uma rara coincidência, dois ótimos filmes portugueses chegam quase ao mesmo tempo aos cinemas brasileiros: nesta quinta-feira (20) Fogo-fátuo, de João Pedro Rodrigues, e na próxima semana Alma viva, de Cristèle Alves Meira. Bem diferentes entre si nos temas e na forma, juntos são uma pequena amostra do vigor, da inventividade e da diversidade do atual cinema lusitano.
Em Fogo-fátuo, João Pedro Rodrigues, diretor do desconcertante O ornitólogo, entrega ao espectador uma obra ainda mais subversiva: uma despudorada fantasia musical ambientada parcialmente em 2069. Seu protagonista é o príncipe Alfredo (Joel Branco quando velho, Mauro da Costa quando jovem) que, na cama em que agoniza, relembra nostalgicamente sua mocidade. O filme se desenrola então como um longo flashback, antes de retornar ao ocaso do príncipe.
Ainda na adolescência, ao ver pela televisão os estragos causados pelos incêndios florestais em Portugal, Alfredo decide se tornar bombeiro, para perplexidade dos pais, que atribuem todos os males do país aos nefastos republicanos e esperam que, a seu tempo, o filho assuma o trono luso. Segue-se uma alegoria escrachada, em que o príncipe se alista como voluntário no corpo de bombeiros, onde é desvirginado em todas as frentes: social, política, racial e, claro, sexual.
Natureza, arte e sexo
Rodrigues filma com uma liberdade impressionante, sem se ater a nenhuma regra de gênero ou noção de “bom gosto”. As invenções absurdas se sucedem. Numa sequência, bombeiros nus reproduzem com suas poses quadros famosos de Caravaggio, Rubens, Velásquez, Francis Bacon. Em outra passagem, imagens de pênis em close, projetadas em slides, são associadas a paisagens de Portugal: serra de Sintra, parque Eduardo VII, etc. A natureza e a arte são perpassadas – melhor seria dizer penetradas – pelo erotismo.
A insinuação embutida na data de início do relato – 2069 – se faz carne de modo impudico numa cena de felação mútua (o popular 69) entre Alfredo e o negro Afonso (André Cabral), seu companheiro de corporação. O detalhe é que nessa cena de sexo explícito, em que não falta nem mesmo a dupla ejaculação, os membros viris são ostensivamente artificiais.
Por trás, ou por dentro, da sucessão dos delírios e fantasias desenha-se uma leitura satírica feroz da história portuguesa, em que se articulam o passadismo aristocrático-monárquico, a revolução nos costumes, o renitente moralismo católico, a pandemia de covid e a emergência climática.
Talvez se possa dizer que João Pedro Rodrigues pertence a uma vertente anárquico-surrealista do cinema português, representada em décadas passadas por João César Monteiro (de A comédia de Deus e tantos outros) e hoje por Miguel Gomes (de Tabu e As mil e uma noites). Um cinema insolente, que não cessa de provocar e divertir.
Como Fogo fátuo dura pouco mais de uma hora, em algumas salas (incluindo o IMS Paulista) a sessão tem como complemento luxuoso o curta-metragem brasileiro Fantasma neon, de Leonardo Martinelli. É também uma fantasia musical, em torno do cotidiano de jovens entregadores de comida, esse novo proletariado brasileiro, nas ruas do Rio de Janeiro. A crítica social é incisiva e as coreografias são espetaculares.
Alma viva - (Ver Trailer)
O surpreendente longa-metragem de estreia da franco-lusitana Cristèle Alves Meira, por sua vez, foi definido em Portugal como uma “farsa mórbida” e representou o país na busca de um lugar no Oscar. Ambientado numa aldeia nos confins de Trás-os-Montes (terra da mãe e da avó da cineasta nascida na França), o filme tem como protagonista uma menina sensitiva (a impressionante Lua Michel) que passa a apresentar um comportamento misterioso e assustador depois da morte da avó (Ester Catalão), com quem tinha uma ligação profunda.
Tudo se passa nos poucos dias entre a morte da velha e seu enterro, enquanto se espera a volta de um de seus filhos, que está nos Açores. Nesse período vêm à tona os conflitos e ressentimentos que fermentavam no seio da família e do pacato vilarejo. As acusações vão de roubo e adultério a loucura, bruxaria e possessão demoníaca, fazendo com que o filme oscile entre a sátira social, o drama familiar e o terror, num crescendo de absurdo que chega ao ápice na impagável sequência do cortejo fúnebre, verdadeira visão do apocalipse.
Os vivos e os mortos
A despeito de suas múltiplas dimensões, a narrativa não perde seu foco, que é a relação da pequena protagonista com a morte, evidenciada desde a primeira cena, em que ela observa, através de um vidro cinzelado, o velório de um rapaz morto num acidente de motocicleta. Em câmera subjetiva, vemos junto com ela as imagens fragmentadas e distorcidas do evento, enquanto ouvimos outro jovem chorar e conversar em desespero com o morto.
Esse diálogo entre vivos e mortos é o eixo que sustenta a exposição dos eventos e ilumina o tema mais amplo da sobrevivência de crenças e valores arcaicos no cerne do Portugal contemporâneo. Mandingas, novenas, velas em altares domésticos, controle da vida alheia, rancores e medos ancestrais – tudo isso convive com iPhones, carros modernos, telenovelas avançadinhas e um funk infame chamado “Esfrega-esfrega”.
Curiosamente, a despeito de suas diferenças fundamentais, Fogo fátuo e Alma viva têm um pano de fundo comum, na condição de trauma e marco temporal: os grandes incêndios florestais que assolaram Portugal e a Europa nos anos recentes. Como se nos dissessem que, enquanto nos agitamos em nossas futilidades cotidianas, avança a destruição do planeta.
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