terça-feira, 15 de agosto de 2023

Angola | Os Assaltos de Estado – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Angolanas e angolanos que nasceram antes da Independência Nacional são cada vez menos porque pela lei da morte se vão libertando desta vida descontente. O passado colonial é pouco recomendável mas é fundamental manter viva essa memória para que as jovens gerações não aceitem desmandos criminosos de novos donos. Provavelmente, vou espantar muitos dos que me leem mas até ao final dos anos 50 a esmagadora maioria dos colonos portugueses era analfabeta total. Havia quem cobrasse para lhes escrever cartas à família la longe, no Puto. Eu escrevia de borla, era bom menino e tinha uma letra bonita.

A ignorância foi muito bem aproveitada pelas autoridades coloniais e assim se construiu uma tese terrível: Os pretos são preguiçosos e ladrões. Ficou escrito na pedra do colonialismo. Um misto de racismo e estupidez natural. É dever dos vivos, tenham nascido nessa época ou não, darem a vida para que racismo e a discriminação nunca mais façam caminho na Angola livre e independente. Mas a partir de 2017 a tesse regressou em força. Para os ocupantes do poder (saídos das fileiras do MPLA) as e os angolanos rios são todos uns ladrões. Milionários? Roubaram! Angolano pode ser tudo menos rico. E sendo rico tem asas de marimbondo ou bocas de caranguejo.

Sejamos justos. Em todas as potências coloniais, em todo o ocidente alargado, a tese “ preto é ladrão” está cada vez mais presente. Em Portugal nem se fala. Um pasquim angolano reproduziu esta notícia elucidativa: “Um doutorando em Direito, na Universidade Católica do Porto, à frente de um grupo de angolanos vai solicitar brevemente um encontro com o Ministro da Administração Interna para lhe pôr a par da sua intenção de molestar governantes angolanos que frequentam Portugal para exibir o espólio do que é suposto roubarem de Angola”. Eis a tese no seu melhor. São pretos são ladrões.

 A “notícia” fez caminho e entrou na minha caixa de correio por várias vias. Leio e custa-me acreditar: “Em Portugal, governantes angolanos hospedam-se nos mais luxuosos hotéis, frequentam as mais sofisticadas lojas e butiques de modas ou habitam em luxuosos e selectivos condomínios”. É preto não pode entrar em hotéis luxuosos. É preto não pode viver em condomínios. É preto não pode fazer compras em butiques das grandes marcas de moda. 

Outro argumento acéfalo costuma ser exibido a torto e a direito. Em Angola há muita gente na pobreza, passando fome, por isso a riqueza é um insulto! Quando éramos todos pobres e o pouco que existia chegava a todos e particularmente a quem mais precisava (resolver os problemas do povo em primeiro lugar), tínhamos as armas de todo o ocidente alargado apontadas ao coração de Angola, ao Povo Angolano e ao MPLA. Abaixo o socialismo!

Exércitos estrangeiros invadiram Angola e só tivemos paz depois de 2002. Em 1992 aderimos à democracia representativa e ao capitalismo. Aqui estamos. Cada milionário na lista dos mais ricos exige a criação de milhares de pobres. É essa a lógica do sistema que todos aceitaram e aplaudiram. Nas primeiras eleições multipartidárias nem um partido se apresentou a defender o socialismo e a democracia popular. E assim continuamos.

Nos EUA, mais de 140 milhões de pessoas vivem na pobreza, dos quais 18,5 milhões na pobreza extrema e mais 5,3 milhões na pobreza absoluta. Ninguém diz que os norte-americanos são todos ladrões. Ninguém reclama por frequentarem hotéis de luxo ou condomínios. Ninguém repara que fazem compras nas lojas das grandes marcas da moda.

O número de norte-americanos a viver abaixo do limiar da pobreza aumenta há quatro anos seguidos. A taxa de pobreza no país é a mais elevada desde 1993. O número de pobres absolutos é o mais elevado desde que há registos. A famosa cidade de Los Angeles é a capital dos sem-abrigo. Sãos aos milhares.

Na rica Califórnia, jovens adultos estudantes, entre 10 a 15 do total dos alunos do ensino superior, estão na condição de sem-abrigo. Esta situação é idêntica em muitos estados. No ano passado em Nova Iorque, 815 mendigos sem-abrigo foram assassinados nas ruas por grupos de extermínio! Os negros estão entre o maior número de vítimas. 

Portugal melhorou muito (políticas sociais correctas) mas tem mais de 20 por cento de pobres entre os quais muitas crianças. Na União Europeia esse número aumentou no ano passado para 27 por cento. Nunca ouvi ninguém dizer que os portugueses e os europeus são ladrões e causam muita pobreza. Enquanto houver pobres não podem frequentar hotéis de luxo ou condomínios privados. Não podem comprar nas lojas das grandes marcas. 

O tema em Angola é muito mais preocupante. Se Angola é Luanda e o resto paisagem, também os milionários só existem em Luanda, Os outros não contam. O empresário Monteiro Kapunga faleceu. Uma grande perda. Conheci-o quando fui a Malange dar formação. Um homem afável, cordial, e muito, muito solidário com quem precisava. Era multimilionário. Ninguém lhe chamou marimbondo nem lhe confiscou os bens. Ainda bem. 

As milionárias e milionários de Luanda pagam por todos os outros. Todos ladrões, todos preguiçosos, nem todos pretos. Mas com os mestiços foi bem pior! O triunfo dos racistas de 27 de Maio de 1977! Ironia das ironias, os bancos BFA e Standard estão a responder aos problemas financeiros internos. Os seus fundadores são perseguidos, espoliados e vilipendiados. Para o Presidente João Lourenço e seus ajudantes no Poder Judicial, todos os mestiços são ladrões se não estiverem às ordens!

Permitam-me uma reflexão. A empresa AAA Seguros nasceu com a Sonangol como principal accionista. Mas tinha outro accionista, o empresário Carlos São Vicente, especialista no negócio, E grande especialista, como os anos provaram e comprovaram. A meio do percurso a Sonangol, por decisão própria, foi perdendo peso accionista e por fim retirou-se do Fundo de Pensões. Quando tal aconteceu, foi lançado um alerta: Pode estar em causa todo o sistrema financeiro. Carlos São Vicente vestiu o fato-macaco e conseguiu minimizar ou mesmo anular os danos no sistema. Alguns anos depois o Governo retirou à empresa o monopólio do seguro do petróleo. Aí a empresa ficou inviável.

Carlos São Vicente, o accionista maioritário, ficou com o pesado fardo de liquidar a AAA Seguros. Os outros accionistas, BAI e Sonangol, assobiaram para o lado. Liquidada a sociedade anónima, o principal accionista partiu para outra. E qual foi? Apostou na hotelaria e turismo. Construiu de raiz redes de hotéis em todo o país. Uns dizem que investiu mais de mil milhões. Outros menos. Não interessa. O importante é que pela primeira vez em Angola um empresário angolano investiu milhões numa rede hoteleira (dezenas de hotéis!) que tanta falta faz à propalada diversificação da economia. Poucos países no mundo têm tantas potencialidades para a “indústria da paz”. Venham os hotéis. E onde nada existia, apenas terrenos e capim, nasceram unidades hoteleiras de alto nível. Os jovens locais foram formados e treinados. O homem merece uma estátua! Por isso está preso.

O empresário Carlos São Vicente tinha como parceiros na AAA Seguros o BAI e a Sonangol. Se ele cometeu alguma ilegalidade, as administrações dessas entidades tinham o dever legal, ético e moral de denunciar. Nada disseram ou fizeram, nunca. Quando a empresa AAA Seguros foi liquidada ninguém levantou qualquer onda. Ninguém se pronunciou. Nem os agentes do Miala na comunicação social, como é o caso de Carlos Rosado de Carvalho. Investir milhões de dólares em hotéis é muito dinheiro. Muito visível. Segundo a senhora da extorsão e destruição de activos, foi roubado ao Estado. Mas como?

O empresário pegou numa pistola e foi assaltar o Tesouro? Não. O empresário Carlos São Vicente assaltou os cofes depauperados e vazios da Sonangol? Não. O empresário Caros São Vicente arrombou a casa forte do banco BAI? Não. 

Já depois da eleição do Presidente João Lourenço, a Procuradoria-Geral da República informou a sua congénere de Genebra que o empresário Carlos São Vicente era honesto e depois de uma aturada investigação não foi encontrada qualquer ilegalidade ou irregularidade na sua actividade empresarial. Uns dias depois foi preso. Uma semana depois a procuradora Eduarda Rodrigues foi à prisão de Viana e sem a presença do advogado do detido exigiu-lhe que entregasse todos os seus bens ou então ficava na cadeia até apodrecer. Ordens superiores!

Hoje os hotéis do empresário estão a ser vandalizados, saqueados ou transformados em repartições públicas, o que é um crime económico sem nome. Não existe qualquer sentença transitada em julgado! A senhora da extorsão e destruição de activos anda a “vender” carros e barcos de luxo, à ganância. O advogado do major Lussaty, um dos donos dessas viaturas, já veio denunciar essa ilegalidade e abuso de poder. 

Agora começa a ficar claro. O alarido à volta dos “marimbondos” de Luanda serviu para justificar autênticos assaltos do Estado aos cidadãos que tiveram a desdita de ser milionários. Pretos são uns ladrões, não é Presidente João Lourenço? Tenham uma pontinha de vergonha e não imitem os colonialistas analfabetos e salteadores. É o mínimo que se exige a quem governa Angola.

Um senhor enfermeiro, milionário da Canata, deixou uma tremenda fortuna ao seu filho em mansões, prédios, fazendas e muito kumbu! Se fosse de Luanda era marimbondo e confiscado. Assim o seu afortunado descendente conserva a fortuna descomunal e corta as asas aos marimbondos que fizeram ninho na capital! Isto vai acabar mal.

*Jornalista

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