sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Portugal | SAÚDE DA MAIORIA

Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião

Um país que pede reformas estruturais encontra numa maioria absoluta uma oportunidade singular. Apesar dos eventuais e por vezes desejáveis pactos de regime, a desnecessidade de convocar consensos alargados para virar o jogo do avesso e mudar paradigmas é uma prerrogativa quase nuclear que um Governo maioritário não pode deixar de usar, respondendo antecipadamente ao jugo de quem o acusará de não ser capaz de aproveitar uma maioria para identificar e enfrentar os erros sistémicos, mudar e dar de novo. Uma maioria absoluta não pode ser uma absoluta oportunidade perdida.

No entanto, o pecado da gula alia-se facilmente à vontade de comer. É no exercício democrático participativo que uma decisão, seja ela qual for, deve encontrar âncora, senão fundação. Quando a Oposição acusa o Governo de secretismo à volta da reforma do SNS, atira ao processo. Quando a Oposição cala ou desconfia do mérito das propostas sem construir, ela mesmo, um modelo alternativo, vem confirmar a ideia de que um pacto de regime só raramente será possível num sistema de poder ainda bipartidário como o nosso

O novo desejo reformista que o Governo tem trilhado no SNS (à semelhança de algumas das medidas relativas à tentativa de regulação do mercado da habitação) promete ser âncora de mudanças e da prometida racionalização de recursos antecipada pela criação da Direcção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (unidades de saúde local) há cerca de nove meses. O período de gestação aproveita os bons indicadores das ULS existentes, nomeadamente a excelente referência de Matosinhos (a primeira a entrar em funcionamento, em 1999). A reorganização dos hospitais, ARS e centros de saúde da mesma região em ULS (passarão de oito para 31), protagonizada por Manuel Pizarro e Fernando Araújo, permitirá planear e desenvolver respostas locais e regionais articuladas, sopesando o financiamento em função do número de doentes e das suas patologias, ultrapassando a aferição cega da quantidade de actos médicos como instrumento de análise.

Será também uma prova de vitalidade e saúde para a maioria. Há um conjunto de poderes e de negócios adquiridos que poderão ser postos em causa quando se restrutura um sector tão vital e orgânico como o SNS. Reformar, responder, racionalizar. Não faltarão vozes descontentes e gravemente afectadas pela ânsia reformista de quem toma decisões que, em última análise, contrariam a visão daqueles que, queixando-se da mudança, preferiam ver o SNS morto e enterrado.

*Músico e jurista

*O autor escreve segundo a antiga ortografia

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