1 – As duas guerras
A guerra na Ucrânia configura mais uma derrota dos EUA/NATO/UE. Os media pararam de apresentar as ficções de Kiev como estratégia, tudo ou quase o que andaram a dizer ao longo do tempo, esvaziou-se como balão furado. A Ucrânia perdeu 350 mil soldados, centenas de tanques. A contra-ofensiva triunfalmente alardeada na NATO, as ameaças do fantoche Zelensky e do Stoltenberg foram um trágico fracasso cujas perdas em quatro meses atingiam 75 mil soldados, e continuam porque o império não sabe o que sejam negociações. A própria existência do Estado está em causa, se não continuar a ser financiado pelos EUA/UE/NATO. O que neste momento é muito complicado.
Na Palestina, o ataque do Hamas é mais uma “guerra não provocada”. Os neocons no poder nos EUA, através de um incapacitado Biden, conseguiram – por agora – unir atrás de si uma maioria política. Recusando qualquer forma de negociações para pôr em prática as resoluções da ONU, enveredaram mais uma vez pelo caminho do “apoio total” à guerra e a Israel, criando mais encargos financeiros e militares sobre uma economia à beira da recessão e submersa em endividamento do Estado, empresas e famílias.
Os bombardeamentos sobre Gaza continuam. Quarteirões inteiros tornados escombros, 1,5 milhão de pessoas forçadas a fugir de suas casas. Porém, o Hamas continua a lançar mísseis sobre cidades israelenses, inclusivamente Telavive, dispondo de uma rede de subterrâneos, onde armazena munições, armas, abastecimentos. Os soldados israelenses mortos desde o início do conflito eram em 22/10, 307. O ataque do Hamas teria provocado até 1 300 mortos, 3 000 feridos. Do lado palestino, com a intensificação dos bombardeamentos sobre Gaza, em 22/10, o número de mortos atingia 4 651, havendo 14 245 feridos, além de 69 mortos e 1 300 feridos na Cisjordânia. (Geopolíticaao vivo – Telegram, 22/10).
De acordo com as FDI há 212
reféns e prisioneiros
Os palestinos não têm qualquer hipótese de derrotar Israel militarmente, mas Israel dificilmente pode aniquilar a resistência palestina. O objetivo do Hamas não é vencer militarmente, mas envolver os EUA, o Irão, a Turquia, Arábia Saudita, China e Rússia em busca de uma solução política.
Tudo depende dos apoios que o Hamas mobilize e das ações que daí resultarem. Se não for apoiado com abertura de frentes a Norte e anular o bloqueio, com menores ou maiores perdas de Israel, Gaza será ocupada e anexada, procedendo Israel a uma limpeza étnica e expulsão da maior parte dos remanescentes.
O principal problema em Gaza, para além dos bombardeamentos, é o da logística. Não se sabe quantos dias as suas reservas materiais durarão, nem como será abastecido atendendo ao bloqueio, incluindo alimentos, água, energia, mesmo medicamentos. Os bombardeamentos das FDI destruíram armazéns com alimentos e bens essenciais, havendo uma escassez aguda de medicamentos e sérios problemas para entregá-los aos hospitais.
Para destruir o Hamas Israel terá de pagar um elevado preço humano e material, entre as ruínas que criou e os subterrâneos do Hamas. O tempo também não está a favor de Israel. O Irão, o Hezbollah e a generalidade dos países árabes fizeram declarações de apoio e apontaram linhas vermelhas, tais como Israel tentar ocupar Gaza e expulsar a população palestina. Na Cisjordânia e em campos de refugiados o Hamas mobiliza-se. Que solução tem o governo israelense para isto? Ir até ao fim com os seus 2 000 tanques e envolver os EUA?
Caminhões de socorro foram sujeitos a ataques de aviso, foram feridos trabalhadores egípcios por estilhaços. Israel ameaçou bombardear os camiões que transportam nada mais do que ligaduras, bolsas de sangue, antibióticos, o que é um crime de guerra. Médicos do Corpo Médico e do Crescente Vermelho Egípcio foram mortos. (Intel Slava Z – Telegram, 10/10)
O cenário de indignação anti-Hamas, foi desde logo criado com “bebés decapitados”. A partir daqui o extermínio de palestinos estava justificado... incluído bebés palestinos. Repetia-se a mentira da destruição de incubadoras no Kowait pelos iraquianos. Embora, a CNN informasse que Israel não confirmou aos EUA nenhum caso de decapitação de crianças pelo Hamas, os media não se preocuparam em corrigir a informação, pela qual “comentadores” foram para os media alinhar no ódio racista, quando nem sequer pelos mortos de pessoal da ONU pelos bombardeamentos de Israel se indignam.
O que é espantoso é esta alegação ser tomada de imediato como verdade, sem preocupações de confirmação ou memória e, pelo contrário, no bombardeamento do hospital a versão israelense – da responsabilidade ser do Hamas – ser imediatamente validada, quando muito querendo uma investigação independente!
A Norte têm-se intensificado os confrontos entre o Hezbollah e as FDI. O Hezbollah afirma ter destruído blindados, causando baixas, atacado várias localidades, obrigando as FDI a evacuarem 14 localidades do Norte de Israel. (Geopolítica ao vivo – Telegram, 22/10)
O Hezbollah é um adversário muito
complicado, dada a profundidade de campo que dispõe e o seu potencial bélico,
que inclui mísseis com alcance superior a
Israel não conseguirá repelir ou dominar o Hezbollah sozinho. A sua existência só pode ser garantida com o apoio militar dos Estados Unidos. Porém, o “bloqueio total” de Gaza, interrompendo o fornecimento bens essenciais ao enclave já antes sitiado, é pelo Direito Internacional um crime de guerra, justificando a intervenção do Hezbollah.
2 – A “solução final” de Netanyahu
A declarada intenção de Netanyahu é a “solução final” da causa palestina, começando pelo «holocausto» palestino em Gaza tratando depois de incorporar a Cisjordânia com estatuto a definir e prosseguir ações contra a Síria, Líbano e Irão, inimigo número um de Israel e que os EUA querem abater. Os EUA já lá estão com o grupo de combate do porta-aviões Gerald Ford a que se juntou o Dwight Eisenhower e um corpo de marines.
Para Netanyahu, a resposta militar de Israel ao Hamas "mudará o Médio Oriente”, é “uma oportunidade para remodelar a arquitetura regional”. Certamente, mas o que ele arrisca é com toda a probabilidade a reconfiguração política e territorial de Israel. A situação que prevalecia na região nunca funcionou, mas a extrema-direita israelita quer levá-la para além dos limites da criminalidade de guerra. Nisto tem o apoio de Biden: os EUA estarão ao lado de Israel "hoje, amanhã e sempre". Para os neocons é a oportunidade reforçar o seu poder e recuperar os seus objetivos de reconfigurar o Médio Oriente.
O primeiro contexto a referir é o facto de Israel reivindicar o espaço palestino como pertencente ao povo judaico por direito histórico. Os judeus foram expulsos pelos romanos nos anos 70. Não é por serem judeus – europeus, americanos ou africanos – que têm direito aquele espaço. Invocar esse direito é assumir uma guerra religiosa e quanto a direitos históricos é um disparate total. Se se analisasse o ADN das populações israelenses e palestinas iria verificar-se que os descendentes dos antigos semitas são os que permanecem no território, isto é, os palestinos, como (salvo erro) a judia Anna Seghers recordou.
O ataque palestino é tomado como uma revolta de escravos, a eles não se aplicam nem a Convenção de Genebra nem qualquer princípio moral. As provocações de Israel em Jerusalém, mais uma vez contra deliberações da ONU, foram vistas com indiferença, quando muito temia-se a reação dos palestinos, que seria sempre criticada, pois não lhes é dado direito de resistência.
A situação atual mostra a inutilidade de dezenas de anos de ataques e repressão sobre a população palestina e crimes de guerra. O martirológio do povo da Palestina dava um longo livro, recorde-se apenas os massacres de Sabra e Chatila. Dizer que o Hamas é “terrorista” nada adianta. O termo terrorista é utilizado ao sabor de interesses, também os resistentes antinazis eram considerados “terroristas” pela Gestapo e os SS.
O Presidente de Israel, Isaac Herzog, diz que não há civis inocentes em Gaza, todos os cidadãos de Gaza são responsáveis pelo ataque perpetrado pelo Hamas – algo que os nazis só diziam em privado! – os EUA apoiam e desprezam os pedidos de cessar fogo e negociações. Na ONU votaram contra o apoio humanitário, recusaram criticar as ações militares israelenses e denunciaram os pedidos de desescalada "repugnantes". (Intel Slava Z – Telegram, 14/10).
Para Israel, os palestinos “são animais humanos e vão ser tratados como tal”. A frase do ministro da Defesa de Israel é simplesmente desprezível. A sua arrogância racista não lhe dá para ver que todos os humanos são animais, os israelenses também, mesmo que se considerem “o povo eleito”. Se tratassem os cães como têm tratado os palestinos, há muito a “comunidade internacional” os tinha ostracizado.
Entre 2008 e 2020, Israel matou 5 590 palestinos, os palestinos mataram 251 israelenses. Em 2017 os palestinos fizeram 174 vítimas (mortes e feridos) e 2018, 130. Os israelenses fizeram em 2017, 8 526 vítimas e em 2018, 31 558 vítimas. Este nível de retaliação só tem paralelo com as dos nazis sobre a população civil, por ações dos resistentes. Nos ataques de Israel ao longo do tempo, milhares de palestinos foram mortos, incluindo muitas crianças, e dezenas de milhares de habitações e escolas foram destruídas, cuja reconstrução foi impossível devido ao cerco de Israel. Em 2008, o ataque envolveu o uso de armamento proibido, como o fósforo. Em 2014, Israel matou mais de 2 100 palestinos, incluindo 1 462 civis e perto de 500 crianças. Durante o ataque, chamado de Operação Margem Protetora, cerca de 11 mil palestinos ficaram feridos, 20 mil casas foram destruídas e meio milhão de pessoas foram deslocadas.
Ataques indiscriminados e
desproporcionais sobre populações civis e desarmadas, constituem crimes de
guerra, mesmo em resposta a acto “terrorista”. O hospital Al-Ahly Al-Arabi, em
Gaza foi atacado, provocando uma das maiores catástrofes humanas
A exigência de Israel de evacuar hospitais do norte da Faixa de Gaza equivale a uma sentença de morte para doentes e feridos, diz OMS. Para a Unicef a deslocação de populações em Gaza provocará crise humanitária. Neste momento os países árabes avisaram Israel – e os EUA – que tal não seria permitido. A Operação israelense de Gaza pode resultar em genocídio, disseram a Liga dos Estados Árabes e a União Africana em um comunicado conjunto, exigindo um cessar-fogo imediato em Gaza e um esforço internacional para fornecer assistência humanitária aos palestinos.
O exército israelense depois de décadas a realizar ações punitivas, por vezes contra adolescentes a atirarem pedras (intifada) agora tem pela frente o Hamas em confrontos com muitos riscos e que lhe custarão também muitas vidas. Israel já demonstrou importantes fragilidades: a incapacidade do seu sistema de defesa aéreo de deter a barragem de mísseis do Hamas; encontra-se com falta de munições, pelos fornecimentos à Ucrânia, tendo pedido aos EUA o seu reabastecimento. É certo que Israel dispõe de elevada produção militar própria, mas um constante apoio financeiro e de armas é mais um desafio para os EUA num conflito muito mais perigoso que o da Ucrânia.
Além das 170 mil forças regulares, Israel convocou 360 mil reservistas. A ausência desta da força de trabalho, coloca a economia em sérias dificuldades. Internamente, o apoio à guerra não é inquestionável, de acordo com uma sondagem do Dialog Center, 86% dos entrevistados, atribuem o ataque surpresa do Hamas à liderança israelense, 56% dos inquiridos indicaram que Natanyahu deve abandonar o cargo no final da guerra.
Israel além dos EUA, UE/NATO, Austrália e pouco mais, não tem apoios. Mesmo nestes países, incluindo EUA, ocorrem protestos em apoio à Palestina. Em alguns países, as manifestações foram atacadas pelas forças policiais e pretende-se criminalizar estes apoios. O descrédito destes países é quase total no Sul Global.
Israel pretende aniquilar o Hamas, expulsar a maior parte dos 2,3 milhões de palestinos e ocupar o território. Aqui teve já um primeiro revés, com a oposição dos países árabes, que se recusam a aceitar refugiados, considerando esta questão uma linha vermelha. Teve outro revés, quando os países árabes apoiados pela ONU, com a presença do SG (alguma vez havia de ser…) em Rafah, exigiram a abertura imediata da passagem para bens humanitários. Não menor revés é o apoio nos EUA esfumar-se: segundo uma sondagem da CBS nos EUA, 50% acha que deve cessar o apoio a Israel; quase 60% acha que deve ser enviada ajuda humanitária a Gaza; 411 funcionários do Congresso divulgaram uma carta para que os seus chefes peçam um cessar-fogo. Protesto idêntico verifica-se no Departamento de Estado.
Israel atirou-se para uma situação difícil. Não iniciar uma operação terrestre significa mostrar fraqueza. As ameaças extremas transparecem como histeria e desorientação. Lançar uma operação terrestre corre o risco de atrair o Irão e o Hezbollah para a situação e transformar o conflito numa guerra regional. Neste sentido, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, visita os países da região.
A “solução final” da extrema-direita israelense, na realidade arrasta-se para uma guerra prolongada, que Israel não conseguirá vencer sozinho. A sua existência só pode ser garantida com o apoio direto dos EUA, não apenas com armas e munições, mas também com tropas. O risco é portanto os EUA envolverem-se numa guerra com o Irão para defender Israel, o que muito dificilmente deixaria a Rússia indiferente, e mesmo a China atendendo aos laços comerciais, estratégicos e até militares do Irão com estes países.
O aviso vem do líder supremo do Irão, Ali Khamenei: “Se os crimes do regime sionista continuarem, ninguém poderá deter os muçulmanos e as forças de resistência”. Neste contexto, o Hezbollah, afirma intervir se uma operação terrestre começar em Gaza, tendo Israel uma guerra em duas frentes e um aumento do número de ataques às suas cidades.
Há que reconhecer que a vida dos palestinos é uma história trágica de miséria e violência. Além de Gaza, a Cisjordânia é ocupada por forças israelenses, que controlam a vida dos palestinos, privados de liberdades fundamentais e onde desde o início deste conflito cerca de 1000 pessoas foram presas.
As ações de Israel dificilmente
deixarão de ter graves consequências para si e para os que os apoiam. Quer os
EUA queiram quer não, estão em cima da mesa cerca de 140 resoluções da ONU que
Israel não cumpriu, prevendo a criação de um Estado palestino independente
dentro das fronteiras de 1967 com sua capital
O histórico do conflito Israel-Palestina pode ser visto aqui.
22/Outubro/2023
Ver também:
Dilema estratégico de Netanyahoo
Este artigo encontra-se em resistir.info
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