Artur Queiroz*, Luanda
Os rapazes do meu tempo no Negage
lembram-se do Barros Chapeleta Rei do Congo porque foi ele que ensinou Pelé a
jogar futebol. Os do Uíge têm no canto mais agradável da memória os manos
Vitória Pereira, o Sardinha e o Miau. Todos doutorados
Depois Luanda. Descobri que a
água do mar era margosa e fazia compressão na barriga, quando bebida
O reitor do Liceu Salvador Correia era o Dr. Saraiva de Carvalho, um fanático da disciplina e professor excepcional. Ganhou a alcunha de Carapau. Um dia levou-nos a casa do Mestre Óscar Ribas, no Bairro do Cruzeiro. Para tomarmos contacto com a Cultura Angolana! Era tio dos nossos colegas Gilberto e João Saraiva de Carvalho, que por isso mesmo foram baptizados de Manos Carapau. Com o Gilberto fiz amizade à primeira vista e enquanto ele foi vivo essa amizade tornou-se cada vez mais forte. Com ele conspirei contra o colonialismo nas fileiras do MPLA. Foi ele que me politizou e educou para ser “um bom militante”. Falhou redondamente, Como militante nunca passei de péssimo mas esforcei-me muito.
Essa foi a minha fase de poeta. Ficava noites inteiras compondo poemas de combate e como mote o amor. O Gigi dizia que ninguém mistura luta revolucionária com amor derretido. Eu declamei uma lição de Che Guevara: “É preciso lutar todos os dias para que o amor à Humanidade se transforme em factos concretos”. O Mano Carapau condescendeu com os meus devaneios poéticos. Ele era o guardião das composições. Quando militantes que estudavam na Universidade foram presos ele disse-me que podia ser o próximo e ia queimar todos os meus papéis para não chegarem a mim. Queimou. Não chegaram.
Gigi foi desterrado para o campo de concentração do Tarrafal com os seus camaradas. Quando abriu o campo de concentração de São Nicolau (Bentiaba) foi transferido para lá. Na nova prisão conheceu José Van-Dúnem. Fez com ele o mesmo que comigo: Educou-o politicamente. Quando foi libertado, apresentou-mo como “o meu miúdo”. Esse Mano Carapau era um homem solidário até ao extremo de dar a vida se necessário fosse. Quando José Van-Dúnem foi transferido para o Luena levou com ele o seu mentor. Gigi não soube dizer não.
Na sequência do 27 de Maio de 1977 foi assassinado na capital do Moxico com outros militantes do MPLA oriundos de Luanda. Racismo e tribalismo. Vingança. Baixeza humana até às profundezas da porcaria. Perdi o meu melhor amigo. Do outro lado perdi Eurico (China), amigo desde a infância. O meu livro de contos “Mukandano” é dedicado ao Gigi (Mano Carapau) e ao Eurico (China). Tentei voltar a escrever poemas de luta sob o signo do amor mas essa parte de mim está morta.
Hoje morreu João Arnaldo Saraiva de Carvalho, o outro Mano Carapau. Comandante Tetembwa. Guerrilheiro na Frente Leste.Com ele foi respeito à primeira vista. Era um jovem sério, austero e muito responsável. Gastava imensas críticas comigo. Liamba não. Kaporroto não. Vida depravada nem pensar. Negava-me tudo o que eu apreciava. O Gigi dizia que ele tinha razão mas eu também tinha. Segue em frente meu irmão! E eu segui, às curvas, aos trambolhões, aos solavancos mas aqui estou, Os Manos Carapau já partiram. Ainda temos a Dina e o Joãozinho por parte do Gigi. Filhos e netos do João e da Lena. Mais a Mana Fernanda.
O Comandante Tetembwa foi fazer o curso de oficiais do Exército Português. Mobilizado para a guerra colonial juntou-se à guerrilha do MPLA. Nesse tempo a direcção do movimento tomou uma decisão extraordinária. Se há Caminho-de-Ferro de Benguela entre o Luau e o Lobito, vamos levar a luta armada ao Planalto Central e ao Mar, à boleia do comboio. A operação avançou de imediato. As forças libertadoras já estavam no Bié quando Savimbi, ao serviço da PIDE e da tropa portuguesa, ajudou a travar o avanço.
A mesma lógica serviu para levar a guerrilha ao Planalto de Malange e à boleia do comboio chegar à capital. Está aí o Comandante Ndalu que pode falar desse projecto revolucionário. Era ele que comandava a força guerrilheira que ia avançar rumo à testa de ferro do comboio. Para isso deu ao Comandante Tetembwa a missão de fazer manobras de diversão na zona da Lunda. Assim a coluna de Ndalu passava incólume. O projecto falhou porque um agente duplo atraiu o meu amigo Mano Carapau a uma cilada e foi preso pela PIDE. O traidor recebia ordens directas de infiltrados na direcção do movimento.
João Saraiva de Carvalho teve um papel fundamentalíssimo na II Guerra de Libertação Nacional. Ele e o Comandante Ingo organizaram a resistência aos independentistas brancos, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Mano Carapau estava em regime de prisão domiciliária na Funda e o Comandante Ingo na mesma situação, no Lobito. Foram os primeiros a organizar a luta contra os esquadrões da morte.
Na vigência do Governo de Transição Mano Carapau (João Saraiva de Carvalho) foi nomeado comissário político da Polícia Nacional então chamada Corpo de Polícia Popular de Angola. Um dia foi a Benguela em missão de serviço e cruzou-se na rua com o agente duplo que o atraiu à cilada! Era um comerciante próspero na cidade da Praia Morena. O homem contou a história toda e referiu o nome de um comandante da guerrilha, implicado na traição.
Ao nível da direcção, já toda a gente sabia quem era o infiltrado: Daniel Chipenda. Tudo esclarecido, fudo descoberto. Mano Carapau meteu o homem num avião para Lisboa. A vingança é uma cobardia. E o comandante da guerrilha já tinha morrido. Tudo para esquecer.
Quando cobri a II Guerra de
Libertação Nacional em Cabinda ficava em sua casa porque ele estava lá como
comandante da Polícia Nacional. Sempre que precisei, as portas de sua casa
abriram-se de par
Hoje perdi o meu amigo Mano Carapau (João Arnaldo Saraiva de Carvalho). General Tetembwa. Mas Angola perdeu um dos seus melhores filhos. Uma perda irreparável.
Os nazis de Telavive afinal negociaram com os “terroristas” que juravam a pés juntos exterminar. Despidos das bazófias e fanfarronices só ficam mesmo com a pele de assassinos de crianças, mulheres, técnicos de saúde, trabalhadores humanitários e jornalistas.
O longo braço da Lei vai chegar quando menos esperarem. O Savimbi também pensava que era intocável e impune até ao dia em que pagou com a vida por todos os seus crimes. Foi ele que escolheu esse desfecho. O seu matador às ordens, Abílio Camalata Numa, virou as costas ao chefe e foi ouvir um relato de futebol no seu rádio de pilhas. Sempre longe do perigo! Assim chegou a alto beneficiário das políticas de unidade e reconciliação nacional.
* Jornalista
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