quarta-feira, 17 de abril de 2024

Angola | Brancos do Puto e de Segunda – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O senhor Vidigal tocava sanfona e cantava nos bares dos pretos, porque os espaços destinados aos brancos lhe foram vedados. A sanfona era velha e resfolegava. A voz do cantor estava queimada pelos excessos alcoólicos. O reportório era sempre o mesmo: Ai, ai, ai, ai. Ai o cheiro que a rosa dá. Ai, ai, ai, ai, ai. Vem à janela morena vem cá! Nesse tempo chegou uma modinha brasileira ao Negage que era assim: Quem te ensinou a nadar/ foi o peixinho do mar/ foi, foi, foi moreninha/ foi o peixinho do mar. E nós mudámos a letra: Quem te ensinou a beber/ foi o senhor Vidigal/ Foi, foi, foi moreninha/ foi o senhor Vidigal. A moreninha era Joana que quando avariava da cabeça se passeava nua pelas ruas poeirentas da aldeia.

Um dia pedi ao senhor Vidigal para me ensinar a sanfonar e ele, já entornado, com umas litradas de cerveja laurentina no bucho, despachou-me: Não dou confiança a brancos. Mas ele era branco ainda que vivesse na sanzala! Um tanto amachucado, encardido, mas branco do Puto (da Tuga como agora se diz), daqueles que quando atravessavam o Equador, desembarcavam em Luanda ou no Lobito e trepavam logo para o topo da escala social. 

Algum tempo depois fui obrigado a tirar o bilhete de identidade para fazer o exame de admissão ao liceu. Na parte onde dizia raça, estava escrito: Branco de segunda. Naquele tempo, há 70 anos, em Angola era assim. Os filhos dos colonos nascidos na colónia eram impuros, de segunda, não chegavam aos calcanhares dos brancos que vinham do Puto. Por isso é que os colonos endinheirados mandavam as suas esposas dar à luz em Portugal. Ou sempre que podiam, registavam os rebentos também em Portugal, para serem falsos brancos de primeira. Essa maka ficou resolvida no final dos anos 50. A “raça” desapareceu dos bilhetes de identidade. Nem negros, nem “mixtos” nem brancos.

Lá no mato era assim, no resto de Angola não sei. Mas no Negage mesmo os brancos eram graduados conforme a sua província de origem em Portugal. Quem tinha a marca de preso político, como meu Pai, era atirado para a sanzala. Os do Uíge diziam que o Negage era a aldeia dos macacos. E nós fomos atirados para os subúrbios desse lugar desclassificado, vizinhos das sanzalas do Catumbo, Cangundo e Dambi. Não éramos brancos de verdade. 

Hoje está tudo igual. A supremacia branca é exclusiva dos países do G7 (EUA, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá) excluindo os asiáticos do Japão. Esses são ricos mas não são brancos. Ainda que rastejem aos pés dos brancos. O Poder Branco tentou impor-se em Angola, à boleia do Savimbi e da UNITA. Os seus mentores falharam. Savimbi foi depois recuperado pelo regime racista da África do Sul, num tempo em que já não existia segregação racial nos EUA, por força das Leis Jim Crow que vigoraram entre 1876 e 1965, já eu andava de repórter.

Vamos visitar esse tempo. Nos EUA, as Leis Jim Crow proibiam os casamentos inter-raciais, impediam os afro-americanos de votar e estabeleciam espaços públicos separados, para brancos e negros. Escolas só para negros, transportes públicos só para negros, unidades de saúde só para negros, locais de culto só para negros. Violência policial só para negros. Justiça só para negros. Estas leis do Poder Branco entraram em vigor no Sul dos Estados Unidos da América quando acabou a guerra civil e foi abolida a escravatura.

Os defensores do Poder Branco excluem os africanos, latino-americanos, indígenas, judeus, asiáticos, muçulmanos e algumas minorias étnicas. Cometem impunemente crimes de ódio, sobretudo racismo e xenofobia. Em 1948, os EUA exportaram para a África do Sul o racismo como política de Estado. O pastor protestante Daniel Malan, primeiro-ministro, fundou o regime de apartheid. Os governos do Partido Nacional  mantiveram essas políticas racistas até a África do Sul ser derrotada militarmente por Angola no Triângulo do Tumpo, em 1988. Ficou a Irmandade Africâner que controla, com o chefe Miala, o Club K e outros antros de banditismo mediático em Angola. 

O nascimento do regime racista de Pretória ocorreu em pleno III Reich. O nazismo é uma vertente do Poder Branco e está de volta, com algumas correcções. Agora os judeus são brancos de primeira. Para ganharem esse estatuto, os seus dirigentes recuperaram as Leis Jim Crow e o apartheid. O regime racista de Telavive é apoiado incondicionalmente pelos EUA, Reino Unido, França e outras potências europeias que fizeram do racismo uma arma de dominação em África, no advento do colonialismo, estávamos no Século XIV. Os europeus justificaram a escravatura porque “os brancos são superiores aos negros”. 

A confusão é grande. Há palestinos brancos mas são uma espécie de brancos de segunda, como as meninas e os meninos, filhos dos colonos, que nasciam em Angola até meados dos anos 50. Por isso o genocídio na Palestina é apoiado pelas potências ocidentais e seus “proxys”. Muitos turcos são brancos e até têm olhinhos azuis, mas o Poder Branco excluiu-os da tribo por causa de makas antigas, anteriores à moral judaico-cristã. O mesmo acontece com os persas. São brancos mas de terceira. Brancos de verdade são os ucranianos. 

Os russos perderam esse estatuto quando triunfou a Revolução de Outubro. Os comunistas jamais serão brancos mesmo os branquinhos e loiros. Hoje na Federação Russa existe um regime capitalista mas o Poder Branco do ocidente alargado não perdoa aos russos, os velhos tempos do comunismo. O poder do proletariado, nunca, jamais em tempo algum! 

O Irão apreendeu um navio no Estreito de Ormuz que navegava com pavilhão português, embora seja propriedade de um milionário israelita. Na tripulação não existia um só português, povo que é uma mistura de visigodos, gregos, cartagineses, fenícios, romanos, árabes e depois do século XIV de indianos e negros das suas colónias asiáticas e africanas. 

O ministro português dos negócios com o estrangeiro, uma espécie de refugiado de um campo de matraquilhos, falou grosso e exigiu a Teerão que liberte o navio “português”. Hoje estou com espírito de escuteiro e vou ensinar o rapagão, muito macho. O navio navega com bandeira portuguesa. Por isso uma parte significativa da tripulação tinha que ser portuguesa. Nem um. Isso quer dizer que há um problema jurídico bicudo. O matraquilho que tenha juízo. Hoje mesmo todos os tripulantes (nenhum é português!) foram libertados. A maka não é com eles. É com os brancos de primeira. Com o Poder Branco que é preciso erradicar.

O Presidente João Lourenço vai estar em Lisboa nos 50 anos do 25 de Abril. Está solidário com a extrema-direita no poder em Portugal e virou as costas ao Presidente Lula da Silva. Paz à alma da CPLP.

* Jornalista

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