quarta-feira, 14 de maio de 2025

Bolívia: PODERÁ ANDRÓNICO SALVAR A ESQUERDA?

A cem dias das eleições presidenciais, um jovem líder cocaleiro sobressai como alternativa a Evo e Luís Arce. Evitou sucumbir à disputa interna no MAS. Preside o Senado e divide a direita. Quais suas chances de vencer e transformar?

Pablo Stefanoni, no Nuso | Outras Palavras | Tradução: Antonio Martins | # Publicado em português do Brasil

Com seu “aceito” no sábado, 3 de maio, Andrónico Rodríguez decidiu intervir de forma mais decisiva na guerra interna entre partidários de Evo Morales (“evistas”) e de Luís Arce (“arcistas”) que ameaça destruir o Movimento ao Socialismo (MAS) e alterar o tabuleiro eleitoral na Bolívia. Usando capacete de mineiro, o jovem presidente do Senado (de 36 anos) disse “sim” às organizações sociais que o ovacionavam em Oruro, em seu ato de proclamação formal. Ele concorrerá à presidência do país em 17 de agosto próximo.

Com o presidente Luis Arce Catacora no chão, nas pesquisas, e Evo Morales inelegível, Andrónico, como todos o chamam, busca se posicionar como a face renovadora de um espaço político enfraquecido pela luta interna, que eclodiu assim que o MAS retornou ao poder em outubro de 2020, cerca de um ano após a derrubada de Evo Morales por um golpe cívico-policial em 2019.

A decisão inicial de Arce de excluir de seu gabinete as figuras mais relevantes do evismo desencadeou uma guerra sem trégua. O governo perseguiu Evo Morales, que acabou «exilado» na região cocalera do Chapare, seu bastião político e territorial, protegido por milícias sindicais camponesas para evitar ser detido. Ao mesmo tempo, Evo buscou enfraquecer ao máximo o presidente por ele indicado, a quem hoje considera a “direita endógena”.

O governo de Arce retomou uma denúncia por abuso e tráfico de pessoas contra Morales, acusado de relacionamento com uma menor de idade, em um processo no qual o Ministério Público agiu de ofício. Trata-se, na verdade, de uma denúncia impulsionada pelo governo [golpista] de Jeanine Áñez, à qual o arcismo recorreu para neutralizar o ex-presidente. Este, por sua vez, organizou uma série de bloqueios de estradas para tentar evitar sua inelegibilidade, mas não obteve sucesso e acabou se enclausurando em sua «zona segura», embora o ataque a tiros contra seu veículo, em outubro de 2024, mostre que não há segurança em meio a tal enfrentamento político.

A mediação de diversas figuras da esquerda sul-americana, incluindo presidentes e ex-presidentes, para tentar aproximar as partes, não obteve nenhum resultado. O MAS seguiu rumo a um processo de verdadeira autodestruição. Também não funcionaram os esforços para preservar a relação Evo-Andrónico. No fim, não foi a direita, enfraquecida após o governo de Jeanine Áñez e a derrota eleitoral de 2020, mas as confrontações internas — somadas à crise econômica — que transformaram o poderoso partido camponês, capaz de articular um bloco político indígena-popular tanto nas urnas quanto nas ruas, em uma sombra de si mesmo, marcado por um clima de decomposição política.

Nessa guerra interna, Arce conseguiu primeiro que a Justiça ‘interpretasse’ de forma caprichosa a Constituição, no sentido de que não é possível a reeleição não consecutiva após dois mandatos presidenciais — o que tirou Morales do jogo. Depois, arrancou do líder cocalero a sigla do MAS, por meio de um congresso paralelo organizado pelo aparato estatal e posteriormente reconhecido pelos juízes.

Mas o atual presidente pode tirar pouco proveito dessa sigla outrora imbatível: sua gestão, considerada abaixo do medíocre por analistas de todos os espectros ideológicos, somada a uma forte crise econômica, afundou-o nas pesquisas, deixando-o com cerca de 5% de apoio. A imagem de Arce como artífice do milagre econômico boliviano se esvaeceu, e ele passou a ser visto como um governante incapaz de gerir o Estado.

A queda das reservas de gás acelerou a erosão do modelo adotado desde 2006, que por anos trouxe bons resultados em crescimento econômico e acumulação de divisas, mas hoje se mostra esgotado.

Morales está bem melhor posicionado nas pesquisas (com mais de 20% das preferências), mas a rejeição que sua figura gera em parte da população torna quase impossível uma vitória no segundo turno. Recluso no Chapare, ele se aferrou um discurso bolivariano intransigente e chegou a acusar de traidores figuras como Álvaro García Linera, que o acompanhou no poder por quase 14 anos.

A Álvaro, ex-vice-presidente ocorreu dizer publicamente que talvez fosse melhor que Morales e Arce renunciassem às suas aspirações presidenciais para viabilizar uma nova figura renovadora. Essa figura de unidade, imaginava ele, poderia ser Andrónico Rodríguez.

Impulsionado por Evo Morales como seu sucessor nos sindicatos cocaleros, Andrónico foi eleito em 2018 vice-presidente das Seis Federações Cocaleras do Trópico de Cochabamba. Faz parte das novas gerações de líderes camponeses, com uma relação muito mais fluida com as cidades — o que a antropóloga Alison Spedding chamou de ‘semicamponeses’, por seu vínculo urbano-rural.

Nascido em Sacaba, capital da província do Chapare, estudou Ciências Políticas na Universidad Mayor de San Simón e depois retornou ao campo. Segundo seu próprio relato, desde criança acompanhava o pai nas reuniões dos sindicatos camponeses e foi percebendo a necessidade da educação formal. «Ao meu pai faltava um pouco de conhecimento, e pensei que [eu] deveria superar isso”, diz Andrónico. E prossegue: “Preciso ler, estudar e ver como colaborar com minha comunidade com maior sabedoria acadêmica e técnica». Em 2020, chegou ao Senado e foi eleito para presidi-lo.

Visto como o “delfim” de Evo Morales, começou a demonstrar capacidade de liderança no Senado e a se distanciar da facção evista — sem, no entanto, alinhar-se à arcista —, enquanto o conflito devastava o MAS. Calculando cada passo para evitar que pequenos erros virassem equívocos catastróficos, e sem alarde, Andrónico foi conquistando autonomia frente a Morales. Tornou-se assunto recorrente na política e na imprensa locais o fato de que, ultimamente, sempre que era convocado para reuniões evistas no Chapare, o senador aparecia surpreendentemente em alguma viagem ao exterior. Um timing impressionante para não ficar associado a um Evo recolhido em si mesmo e com discursos radicais — veiculados em seu programa na rádio Kawsachun Coca —, que o distanciaram de grande parte de seus antigos eleitores.

“Andrónico passou a ser vigiado permanentemente por seu mentor, em busca de possíveis atos de «traição». Primeiro, havia o temor de que migrasse para as trincheiras arcistas; mas, quando isso não ocorreu, a mera autonomia do que começava a ser visto como uma terceira via «androniquista» já surgia como ameaça para um Evo Morales que insiste em concorrer a um novo mandato. Para isso, o ex-presidente lançou o movimento EVO Pueblo (Estamos Volviendo Obedeciendo al Pueblo). A reação do ex-presidente à candidatura de Andrónico Rodríguez manteve o mesmo tom: «Quem se afasta é funcional ao império», declarou.

Andrónico Rodríguez parece consciente de que o contexto político da Bolívia e da região é muito diferente do entusiasmo antineoliberal de 2005, quando Evo venceu com 54% dos votos e inaugurou o chamado «processo de mudança», com um discurso nacionalista popular e indigenista, ao mesmo tempo radical e pragmático. Já candidato — embora ainda sem definir sua sigla —, Andrónico criticou a construção de fábricas estatais ineficientes para atender demandas corporativas de regiões e organizações sociais. Em fórum organizado pelo jornal El Deber, de Santa Cruz de la Sierra, o senador enfatizou que o Estado deve focar em setores-chave como hidrocarbonetos e energia, sem se dispersar em empreendimentos menores. «O Estado não precisa monopolizar, mas sim atuar onde realmente importa», ressaltou. Chegou a acusar Arce de transformar o modelo econômico do MAS em um «Estado paternalista que relega a economia privada, comunitária e cooperativa».

A candidatura de Andrónico, que registra mais de 20% das preferências — colocando-o no topo das pesquisas ao lado do empresário Samuel Doria Medina —, poderia ter bom desempenho em um eventual segundo turno, segundo os mesmos levantamentos. O espectro do centro à direita está dividido e sem novas lideranças: o próprio Doria Medina, assim como Jorge ‘Tuto’ Quiroga — alinhado com a direita de Miami — e o prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, são figuras desgastadas, que emetem à era pré-2005.”

Quiroga assumiu a presidência em 2001 após a morte de Hugo Banzer, e Reyes Villa foi um dos principais candidatos em 2002. A campanha de Doria Medina, como economista e empresário liberal-desenvolvimentista, conecta-se melhor ao contexto de crise, mas ainda integra essa «velha política», agravada por sua lendária falta de carisma.

* * *

Embora as tentativas de formar um bloco unificado do centro à direita tenham fracassado, todos os candidatos desse espectro sonham em derrotar facilmente o MAS no segundo turno — em um espécie de «efeito Equador». A candidatura de Andrónico poderá alterar esse cenário?

O histriônico milionário Marcelo Claure, que aspira a ser uma espécie de Elon Musk no próximo governo — sem definir claramente preferência entre os candidatos opositores após o fracasso da união da direita —, celebrou a decisão de Andrónico e tentou semear discórdia com sua verborragia trumpista. «Andrónico é mil vezes melhor que um pedófilo [referindo-se a Evo Morales] ou um incompetente [Arce], e tenho muita fé que trabalharemos juntos para tirar a Bolívia deste buraco».

Embora não concorra pela sigla do MAS, a aposta de Andrónico Rodríguez é representar o mesmo bloco «indígena plebeu» — espelho da complexa sociologia popular boliviana, marcada também por formas vigorosas de empreendedorismo — e, na prática, reconstruir o MAS. O novo candidato é autocrítico dos últimos anos de gestão do MAS e passou a tratar Evo Morales mais como figura histórica do que como líder inconteste do presente. Seu perfil voltado ao diálogo — que o manteve à frente do Senado em meio a turbulências políticas — é um trunfo, num contexto em que a esquerda precisa reconquistar aliados afastados e, eventualmente, governar em meio a crises.

Entre suas fraquezas, estão sua limitada experiência política e a rejeição social à atual gestão do MAS sob Arce. Ficar à margem do arcismo (que controla recursos estatais) e do evismo (que ainda tem base social) é uma faca de dois gumes: fortalece seu discurso renovador, mas enfraquece sua capacidade de mobilização.

Ainda assim, muitos setores sociais, cansados da briga interna, passaram a enxergar em Andrónico uma candidatura a priori competitiva — quando, até pouco tempo atrás, só se vislumbrava a derrota do “bloco popular” diante de uma direita que, embora antiga, pode capitalizar o descontentamento geral.

* Jornalista ehistoriador. Chefe de redação da revista "Nueva Sociedad".

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