sexta-feira, 27 de maio de 2011

Portugal - Yes we camp: as tendas continuam de pé no Rossio para dar voz a todos




ROMANA BORJA-SANTOS, reportagem - PÚBLICO

D. Pedro IV abdicou do seu protagonismo no Rossio e cedeu grande parte da sua estátua aos cartazes de dezenas de jovens (e não só) que desde a semana passada estão aqui acampados, bem no centro de Lisboa. É um protesto semelhante ao que está a acontecer em Madrid. “Não temos milhares de euros, mas temos muita coisa para dar”, lê-se num dos cartazes. “Yes we camp”, diz outro. Pedro Murteira é um dos participantes e acredita que a mudança se faz com a população. “O importante é que cada pessoa encontre dentro de si um espaço de intervenção”, assegura ao PÚBLICO.

O dia está cinzento e a chuva em nada convida a grandes ajuntamentos ao ar livre. As pessoas passam apressadas no Rossio. Escondem-se debaixo de ombreiras. Tapam o cabelo com um saco improvisado. Compram um chapéu-de-chuva barato, de última hora. Tentam não enfiar as sandálias abertas em grandes poças. Mas, mesmo assim, não resistem a uma paragem junto à estátua de D. Pedro IV. Os que vêm equipados com uma máquina, sobretudo os turistas, tentam uma fotografia. E mais outra. É impossível não reparar nas tendas, mesas, sofás e centenas de cartazes ali colocados. Há quem critique. Os mais curiosos aproveitam para falar com os 30 ou 40 jovens que estão aqui a passar o dia e a explicar a quem quiser o que os motiva e o que os faz resistir, até ao mau tempo.

Pedro Murteira, 26 anos, é um deles. O protesto começou na passada quinta-feira e Pedro tem estado sempre aqui, tirando uma ida ou outra a casa para tomar um banho. Esclarece desde o início que fala em nome individual. Aliás, como todos que aqui estão. “Não estamos aqui por ideologias ou para convencer alguém. Para falar em nome dos outros já temos os partidos. Viemos para uma praça no centro de Lisboa precisamente para que as pessoas tragam a sua voz e para que percebam que a rua é nossa e que não serve só para irmos a caminho do trabalho”, justifica.

A assembleia popular das 19h00

Durante o dia as conversas são mais informais e limpa-se o local com vinagre, cujo odor penetra o mais fundo que pode nas vias respiratórias de quem ali está. Há tempo para uma aula de yoga ao ar livre e para uma bancada com comida para todos os que quiserem repor energias. Partilha-se sopa, arroz, fruta, leite... o que houver. Umas coisas são trazidas pelos que aqui estão concentrados. “Mas também há pessoas solidárias que nos têm oferecido coisas”, conta. O momento alto do dia acontece às 19h00 quando se juntam umas 300 pessoas. É a esta hora que se cria uma reminiscência da polis grega e é então feita uma assembleia pública onde todos são convidados a intervir, a dar ideias, a denunciar problemas actuais. Ou simplesmente a contarem a sua história, em jeito de catarse colectiva.

Pedro, estudante de Educação Social, acredita que é possível mudar o sistema político e a actual sociedade. “Não esperes pela mudança. Fá-la”, diz um cartaz. Mas Pedro condena quem critica o actual estado do país e na hora de dar o seu contributo fica em casa. Por isso, nas legislativas no próximo dia 5 de Junho vai às urnas. “Não votar é desistir. Independentemente destas acções é importante traduzirmos a nossa vontade pessoal.” Mas porque a ideia é este protesto ser um espaço livre, também foram colocados cartazes daqueles que já não acreditam no escrutínio eleitoral. “Se votar mudasse algo seria proibido”, lê-se numa das faixas. Em contraponto, outra lembra que “uma utopia é uma possibilidade que pode efectivar-se no momento em que forem removidas as circunstâncias provisórias que obstam à sua realização”.

Junto à zona da comida está Ana, 29 anos e irmã de Pedro. Apesar da licenciatura, nunca conseguiu trabalhar na sua área: Literatura. Há anos que não conhece outra coisa que um call-center. Mas até isso lhe fugiu e agora está desempregada. “Estou aqui porque acho importante discutirmos e redefinirmos a palavra democracia. O Estado deixou de ser das pessoas. Agora é uma mera entidade externa que gere a vida das pessoas mesmo contra a sua vontade”, defende, sublinhando que fala em nome próprio.

Sobre o balanço de uma semana de acampamento, acredita que está a surtir o seu efeito e garante que recebem milhares de emails todos os dias, muitos com propostas de temas a serem discutidos na assembleia das 19h00 ou nos grupos de trabalho que entretanto criaram para conseguirem uma melhor organização. O protesto tem mesmo um blogue, à semelhança do que acontece com os outros acampamentos que se têm realizado em cidades de todo o mundo.Questionados sobre até quando vão acampar ali, Pedro e Ana garantem que é um protesto sem data e sem fim. “Ficamos enquanto as coisas não mudarem, mas também gostaríamos de descentralizar e que as pessoas fossem agindo nas zonas onde moram.” Até porque há um pequeno conflito de interesses: as festas de Lisboa vão arrancar e a comissão também quer fazer algumas instalações na zona da estátua. E Pedro dispensa barracas de cerveja que “desvirtuem a concentração e dêem a ideia que isto é só uma festa”.

Vozes de protesto e a “avó de serviço”

E a verdade é as vozes que se juntam ao protesto não são apenas nacionais. Há belgas, iraquianos... Uma espanhola aceita falar com o PÚBLICO. Tem 23 anos e está cá a fazer Erasmus e um estágio na área da Psicologia. Por isso prefere não arriscar dar o nome mas diz espera que “deste movimento saia uma coisa linda”. Menos esperança tem Luís, na casa dos quarenta anos. Soube do protesto pelo Facebook e decidiu juntar-se. Tem emprego? “Em teoria sou desempregado. Mas já sou há tanto tempo que na verdade já sou um inactivo. Já não faço parte do mercado de trabalho.” Luís tem receio do futuro. Tem quase um curso superior. “Mas é quase... porque me vão dar emprego a mim quando há jovens com mais qualificações? Sobrevivo com o ordenado da minha mulher que nem 600 euros recebe e temos dois filhos. Não chega...”

Mas também há vozes críticas. Um senhor que passa atira que “esta gente não interessa a ninguém”. Maria Isabel Duarte, de 68 anos, também diz não compreender este protesto: “Já viu a lixeira e o mau aspecto que dão aqui ao Rossio? Dá muito má imagem. Nem sabem como vivemos antigamente. Deviam era trabalhar”. Do lado dos comerciantes a simpatia pelos novos residentes também não é a maior. “Fazem muito barulho e dão mau aspecto a isto. Noto que as pessoas se desviam e comentam que não gostam muito deste ambiente”, assume Sara, 20 anos, enquanto ajuda alguns clientes a escolher sapatos na loja onde trabalha.

Contudo, também existem pessoas que mostram que o protesto é intemporal. Maria do Carmo tem 84 anos e tornou-se na “avó de serviço desta juventude”, destaca Pedro. Maria do Carmo esclarece que “a vida não está nada fácil” e que decidiu vir para aqui “todos os dias para tomar conta das coisas e ajudar”. Está viúva e vive sozinha, mas por motivos de saúde só dormiu uma vez ao relento e agora à noite vai sempre para casa. “Aqui sempre tenho companhia e atenção. São umas jóias de rapazes. Estão sempre a dar-me comida e a ver se preciso de algo. Nós os pobres vamos ter sempre de lutar”.

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