Flávio Aguiar – Carta Maior
Há um outro tipo de nacionalismo em ascensão na Alemanha. É um nacionalismo baseado no que se pode chamar “as virtudes teologais do capitalismo alemão”. A Alemanha deve servir de exemplo para a Europa e para o mundo, graças à sua contenção, à sua fidelidade aos “planos de austeridade”, ao seu exemplo de ter comprimido salários e aumentado a idade da aposentadoria, ao seu exemplo de uma fidelidade à toda prova ao ideário liberal de von Hayek, que permanece hegemônico nas suas universidades. O artigo é de Flávio Aguiar.
“Nacionalismo” é uma palavra maldita nestas Europas. É associada, sistematicamente, a fanatismo, racismo, xenofobia, extrema-direita, populismo. Uma grande parcela da intelectualidade européia (e latino, norte-americana e também brasileira) chegou a decretar que a palavra “nação” deveria ser deletada dos dicionários, em tempos de criação da União Européia, do fim do comunismo, e do fim da história (lembram desse fim?).
Apesar de que as nações continuassem a emitir passaportes, letras do tesouro (como hoje), dinheiro (como hoje), contrair empréstimos (como hoje), etc. E a fazer guerras horrendas, como nos Bálcãs. Aquela grande parcela preferia fixar-se nos seus avatares semânticos a analisar o que acontecia além das lindes dos campi universitários – lá fora – no mundo, por assim dizer. Preocupações identitárias também passaram a ser anátema: coisa de “latino-americanos retardatários”.
Os nacionalismos não desapareceram. Nem as nações. Basta olhar hoje a Europa que treme sob a adrenalina quinzenal que os problemas do euro derramam nas bolsas, nos parlamentos, e nas veias do mundo inteiro. A City londrina recusa-se a se colocar sob a supervisão financeira de Bruxelas e Frankfurt. Nicolas Sarkozy se viu forçado a aceitar a liderança germânica na frente européia – mas resmungando – e isso pode lhe custar a reeleição em abril/maio.
Na frente do parlamento grego, nesta terça-feira, manifestantes queimaram uma bandeira alemã. A zona do euro soçobra devido à disparidade nas diversas políticas econômicas nacionais postas em curso sob o escudo único da nova moeda. Não só isso: depois de um documento confidencial do Ministério das Finanças alemão recomendar a nomeação de um interventor financeiro na Grécia (depois da “troika”, o Banco Central Europeu, o FMI e a Comissão Européia, ter nomeado um interventor no governo), a dupla Merkozy aventou a proposta de criar uma “conta bancária bloqueada” para depositar as ajudas financeiras àquele país, só liberando-se fundos com a anuência dos administradores do bloqueio, ou seja, a “troika”, ou seja, Merkozy, ou seja, Ângela Merkel.
Entretanto, há um país em que esses “nacionalismos” não parecem ter eco: a Alemanha. Claro: existe o velho nacionalismo rançoso de extrema direita, neo-nazi. Mas ele é minoritário, embora perigoso. Claro: existe a xenofobia difusa que vê no estrangeiro, particularmente no imigrante muçulmano, uma ameaça, assim como existe um racismo difuso no Brasil. Mas não é a isso que me refiro. Outro tipo de nacionalismo está em ascensão.
É um nacionalismo baseado no que se pode chamar “as virtudes teologais do capitalismo alemão”. A Alemanha deve servir de exemplo para a Europa e para o mundo, graças à sua contenção, à sua fidelidade aos “planos de austeridade”, ao seu exemplo de ter comprimido salários e aumentado a idade da aposentadoria, ao seu exemplo de uma fidelidade à toda prova ao ideário liberal de von Hayek, que permanece hegemônico nas suas universidades, no pensamento econômico e na vulgata midiática sobre a crise européia, um ideário a que mesmo o social-democrata SPD e o anti-atômico Partido Verde parecem ter sucumbido.
Essa “fidelidade virtuosa” tudo justifica – inclusive a intervenção alemã nos assuntos internos de outros países.
Na terça-feira o jornal conservador “Die Welt” publicou um editorial justificando a intervenção de Ângela Merkel na próxima eleição francesa. Seus termos são exemplares:
“É digno de elogios que o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Guido Westerwelle, tenha observado, quanto à campanha de Merkel a favor de Sarkozy, que o governo alemão não é candidato na eleição francesa. No entanto, nesta nova e mudada Europa, ele o é, na verdade. Sobretudo por causa do futuro que Merkel vê para o Continente. Uma visão que os socialistas franceses não compartilham. Nunca antes a Alemanha interferiu tão fundo na política interna francesa. Quebrou-se um tabu, mas o momento foi oportuno. O candidato socialista, François Hollande, com seu retorno ao calendário esquerdista dos anos 70, confunde os eleitores de todos os modos possíveis, com suas promessas de campanha, que contrariam toda a razão econômica. O Programa dos 60 Pontos, de Hollande, é uma seleta do populismo de esquerda. No futuro, os franceses poderão de novo se aposentar aos 60 anos, os impostos deverão ser fartamente aumentados, o setor público incrementado, os mercados financeiros regulamentados e os bancos fragmentados. Dado esse socialismo retrô, não surpreende que ele queira denegar o pacto fiscal e introduzir as letras do euro (“euro bonds”) e, é claro, usar o Banco Central Europeu como uma impressora de dinheiro. A vitória de Hollande significaria o fim da liderança franco-alemã na Europa. Embora apenas os 45 milhões de eleitores franceses possam depositar seus votos nas urnas, a votação é importante para todos na Europa”.
O editorial, convenhamos, é brilhantemente claro na sua pregação desabusada e arrogante, e não deixa dúvidas, pelas afirmativas que faz sobre a possível futura França, devendo-se se assumir as negativas na Alemanha da hegemonia conservadora. Ou seja, a Alemanha deve ser o país exemplar onde os impostos retroagem, onde o mundo financeiro não tem regulamentação, o setor público encolhe, as aposentadorias são restringidas, e os bancos imperam, unidos e protegidos. E este é o universo ideal, “prächtig” (vistoso, magnífico, faustoso, suntuoso, excelente) para a Europa e o mundo.
Em nome dele, que se intervenha na França e que se esmigalhe a Grécia.
Essa euforia conservadora dá frutos à chanceler alemã. Numa pesquisa divulgada na quarta-feira, seu partido, a CDU/CSU, aparece com 38% das intenções de voto, tendo crescido 2 pontos percentuais. Em compensação, seu parceiro de coligação, o FDP, aparece com 3%. Ou melhor, “desaparece”, pois com esse percentual não atingiria a cláusula de barreira e ficaria de fora do futuro Bundestag.
O SPD social-democrata tem 27%, e os Verdes caem alguns pontos para 13%.
A Linke fica estável em 8% e, o surpreendente Partido Pirata aparece com 7%. Depois de conquistar cadeiras no Parlamento de Berlim, os Piratas teriam, pela primeira vez, uma representação num parlamento nacional de país europeu – e logo no Bundestag.
Com esse resultado (a eleição é em 2013) o mais provável é que voltasse a se formar uma “Grande Coalizão”, ou seja, um governo CDU/CSU + SPD.
Esse seria o ideal para esse novo nacionalismo difuso alemão, proclamado virtuosamente pelo Die Welt (“O Mundo”, lembrando que Welt, em alemão, é palavra feminina). Inclusive porque neutralizaria o novo perigo que se avizinha. Mesmo com resistências ao “radicalismo” francês, o SPD se posicionou a favor de Hollande.
Imaginem se o “mau exemplo esquerdista” deste pega do lado de cá do Reno! Aquela sacrossanta “razão econômica” iria para o beleléu.
Apesar de que as nações continuassem a emitir passaportes, letras do tesouro (como hoje), dinheiro (como hoje), contrair empréstimos (como hoje), etc. E a fazer guerras horrendas, como nos Bálcãs. Aquela grande parcela preferia fixar-se nos seus avatares semânticos a analisar o que acontecia além das lindes dos campi universitários – lá fora – no mundo, por assim dizer. Preocupações identitárias também passaram a ser anátema: coisa de “latino-americanos retardatários”.
Os nacionalismos não desapareceram. Nem as nações. Basta olhar hoje a Europa que treme sob a adrenalina quinzenal que os problemas do euro derramam nas bolsas, nos parlamentos, e nas veias do mundo inteiro. A City londrina recusa-se a se colocar sob a supervisão financeira de Bruxelas e Frankfurt. Nicolas Sarkozy se viu forçado a aceitar a liderança germânica na frente européia – mas resmungando – e isso pode lhe custar a reeleição em abril/maio.
Na frente do parlamento grego, nesta terça-feira, manifestantes queimaram uma bandeira alemã. A zona do euro soçobra devido à disparidade nas diversas políticas econômicas nacionais postas em curso sob o escudo único da nova moeda. Não só isso: depois de um documento confidencial do Ministério das Finanças alemão recomendar a nomeação de um interventor financeiro na Grécia (depois da “troika”, o Banco Central Europeu, o FMI e a Comissão Européia, ter nomeado um interventor no governo), a dupla Merkozy aventou a proposta de criar uma “conta bancária bloqueada” para depositar as ajudas financeiras àquele país, só liberando-se fundos com a anuência dos administradores do bloqueio, ou seja, a “troika”, ou seja, Merkozy, ou seja, Ângela Merkel.
Entretanto, há um país em que esses “nacionalismos” não parecem ter eco: a Alemanha. Claro: existe o velho nacionalismo rançoso de extrema direita, neo-nazi. Mas ele é minoritário, embora perigoso. Claro: existe a xenofobia difusa que vê no estrangeiro, particularmente no imigrante muçulmano, uma ameaça, assim como existe um racismo difuso no Brasil. Mas não é a isso que me refiro. Outro tipo de nacionalismo está em ascensão.
É um nacionalismo baseado no que se pode chamar “as virtudes teologais do capitalismo alemão”. A Alemanha deve servir de exemplo para a Europa e para o mundo, graças à sua contenção, à sua fidelidade aos “planos de austeridade”, ao seu exemplo de ter comprimido salários e aumentado a idade da aposentadoria, ao seu exemplo de uma fidelidade à toda prova ao ideário liberal de von Hayek, que permanece hegemônico nas suas universidades, no pensamento econômico e na vulgata midiática sobre a crise européia, um ideário a que mesmo o social-democrata SPD e o anti-atômico Partido Verde parecem ter sucumbido.
Essa “fidelidade virtuosa” tudo justifica – inclusive a intervenção alemã nos assuntos internos de outros países.
Na terça-feira o jornal conservador “Die Welt” publicou um editorial justificando a intervenção de Ângela Merkel na próxima eleição francesa. Seus termos são exemplares:
“É digno de elogios que o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Guido Westerwelle, tenha observado, quanto à campanha de Merkel a favor de Sarkozy, que o governo alemão não é candidato na eleição francesa. No entanto, nesta nova e mudada Europa, ele o é, na verdade. Sobretudo por causa do futuro que Merkel vê para o Continente. Uma visão que os socialistas franceses não compartilham. Nunca antes a Alemanha interferiu tão fundo na política interna francesa. Quebrou-se um tabu, mas o momento foi oportuno. O candidato socialista, François Hollande, com seu retorno ao calendário esquerdista dos anos 70, confunde os eleitores de todos os modos possíveis, com suas promessas de campanha, que contrariam toda a razão econômica. O Programa dos 60 Pontos, de Hollande, é uma seleta do populismo de esquerda. No futuro, os franceses poderão de novo se aposentar aos 60 anos, os impostos deverão ser fartamente aumentados, o setor público incrementado, os mercados financeiros regulamentados e os bancos fragmentados. Dado esse socialismo retrô, não surpreende que ele queira denegar o pacto fiscal e introduzir as letras do euro (“euro bonds”) e, é claro, usar o Banco Central Europeu como uma impressora de dinheiro. A vitória de Hollande significaria o fim da liderança franco-alemã na Europa. Embora apenas os 45 milhões de eleitores franceses possam depositar seus votos nas urnas, a votação é importante para todos na Europa”.
O editorial, convenhamos, é brilhantemente claro na sua pregação desabusada e arrogante, e não deixa dúvidas, pelas afirmativas que faz sobre a possível futura França, devendo-se se assumir as negativas na Alemanha da hegemonia conservadora. Ou seja, a Alemanha deve ser o país exemplar onde os impostos retroagem, onde o mundo financeiro não tem regulamentação, o setor público encolhe, as aposentadorias são restringidas, e os bancos imperam, unidos e protegidos. E este é o universo ideal, “prächtig” (vistoso, magnífico, faustoso, suntuoso, excelente) para a Europa e o mundo.
Em nome dele, que se intervenha na França e que se esmigalhe a Grécia.
Essa euforia conservadora dá frutos à chanceler alemã. Numa pesquisa divulgada na quarta-feira, seu partido, a CDU/CSU, aparece com 38% das intenções de voto, tendo crescido 2 pontos percentuais. Em compensação, seu parceiro de coligação, o FDP, aparece com 3%. Ou melhor, “desaparece”, pois com esse percentual não atingiria a cláusula de barreira e ficaria de fora do futuro Bundestag.
O SPD social-democrata tem 27%, e os Verdes caem alguns pontos para 13%.
A Linke fica estável em 8% e, o surpreendente Partido Pirata aparece com 7%. Depois de conquistar cadeiras no Parlamento de Berlim, os Piratas teriam, pela primeira vez, uma representação num parlamento nacional de país europeu – e logo no Bundestag.
Com esse resultado (a eleição é em 2013) o mais provável é que voltasse a se formar uma “Grande Coalizão”, ou seja, um governo CDU/CSU + SPD.
Esse seria o ideal para esse novo nacionalismo difuso alemão, proclamado virtuosamente pelo Die Welt (“O Mundo”, lembrando que Welt, em alemão, é palavra feminina). Inclusive porque neutralizaria o novo perigo que se avizinha. Mesmo com resistências ao “radicalismo” francês, o SPD se posicionou a favor de Hollande.
Imaginem se o “mau exemplo esquerdista” deste pega do lado de cá do Reno! Aquela sacrossanta “razão econômica” iria para o beleléu.
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