Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
O mais preocupante, hoje, é que a perspetiva do "salto federal" que atualmente está a impor-se na Europa como incontornável para resolver a crise do euro possa ser também uma saída... da democracia.
Com o resgate de Espanha, com a ansiedade com os resultados das eleições gregas do próximo domingo, com a apreensão sobre a Itália a aumentar, cresce a pressão para que se dê esse "salto corajoso", como lhe chamou Mario Draghi.
O problema é que essa perspetiva está a impor-se, não na consciência dos povos europeus, mas nos cálculos de elites de cuja capacidade todos agora justificadamente desconfiamos. Ela não é - como devia ser - falada, analisada e discutida na opinião pública e nos parlamentos nacionais, mas tratada às escondidas, congeminada e urdida no âmbito da "governança" europeia, a partir dos gabinetes do "quarteto" encarregado de a fazer avançar: Barroso, Van Rompuy, Juncker e Draghi.
Ora, do que a Europa certamente não precisa, como se de mais uma fuga em frente se tratasse, é de um qualquer salto federal, na linha do carrossel de originalidades (mecanismos e fundos, six-pack, semestre europeu, tratado orçamental, etc.) dos últimos dois anos, mas de uma autêntica, e bem preparada, viragem federal. É disto que tudo depende.
A escolha para a Zona Euro - se não for já tarde demais!... - é entre a explosão e a integração. Uma viragem federal pode e deve ser a solução, mas esse passo só tem futuro se for plenamente assumido como um projeto político, nos seus parâmetros económicos, nas suas implicações orçamentais, nas suas consequências fiscais e sociais, e sem esquecer as condições de legitimidade democrática que lhe garantam uma sólida base nos povos europeus.
É preciso ter isto bem em conta, sobretudo quando tudo parece indicar que Angela Merkel vai ganhar outra vez. E se tal acontecer, foi porque François Hollande desperdiçou, no Conselho Europeu informal de 21 de maio, a grande oportunidade de ser ele a assumir o que tinha de ser dito e feito na União Europeia, para cortar com a letargia e a desorientação dos últimos tempos.
Manifestamente pouco inspirado, Hollande preferiu a velha casuística das eurobonds à visão de uma refundação europeia. E A. Merkel aceitou de um modo tão inteligente como calculista o desafio da mutualização da dívida, colocando-a no quadro de uma inevitável maior união política, conseguindo assim sair do isolamento em que estava e passar à contraofensiva.
E, atenção, fê-lo sem medo da palavra federalismo, que tanto assusta e divide os novos dirigentes franceses - é bom não esquecer, a propósito, que o atual ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Laurent Fabius, foi em 2005 o líder do "não", no referendo ao Tratado Constitucional europeu.
A grande fricção vai agora passar por aqui - pela viragem federal, pela definição dos timings, objetivos e características do federalismo europeu. Porque tudo isto está por decidir. E também o seu perímetro, porque a questão da Europa a várias velocidades é indissociável do debate federal. Um novo tratado vai, obviamente, impor-se. Que terá de ser curto, claro e referendado simultaneamente pelos cidadãos europeus envolvidos numa tal viragem.
Neste contexto não é de excluir que a Alemanha surpreenda ainda com uma outra proposta, que já foi aprovada no último Congresso da CDU: a da eleição por sufrágio universal direto do presidente da Comissão Europeia. Inconcretizável no curto prazo - lembremos que hoje nem sequer existem verdadeiros partidos europeus -, esta ideia pode todavia tornar-se num lance hábil da Alemanha, que lhe aumentaria significativamente a margem de manobra.
Enfim, só talvez agora se começa verdadeiramente a perceber como, com o processo de Maastricht entre 1990 e 92, não foi só a "fuga em frente" do euro que começou. Foi também uma mudança mais profunda, como se a desagregação do bloco soviético e a sua completa implosão ideológica tivessem na verdade provocado uma impercetível alteração na própria natureza da ideia europeia.
Como se a Europa tivesse descolado da sua própria história para se perder numa deriva cada vez mais errante. O "milagre europeu", que foi sempre - apesar de todas as calamidades que conhecemos - o de uma cultura e criatividade singulares, foi nesses "anos de Maastricht" abandonado por uma elite que se deslumbrou com o modelo ultraliberal americano, esquecendo completamente as suas raízes e criando assim as condições propícias ao atual desatino europeu.
Hoje quase toda a gente reconhece que sem unidade política nenhuma união monetária tem condições para sobreviver. Mas de quantos anos precisaremos ainda para reconhecer essa evidência afinal bem maior, que é a de que não há federação sem cultura comum, no sentido mais amplo do termo?
O maior risco que corremos é, afinal, o da compulsiva cegueira "maastrichtiana", que nos últimos vinte anos nos levou a iludir quase sempre o essencial. E o essencial, numa qualquer união/federação democrática - para lá de um inimigo comum, hoje improvável -, é a assumida existência de uma forte ambição estratégia, como potência no mundo. É a comunidade de símbolos e de espaço público de informação e de debate, de divertimento e de conhecimento. É a adoção de uma língua comum ou - é o caso na União Europeia - de um efetivo plurilinguismo, no quadro de uma cultura quotidianamente vivida na sua específica diversidade.
Sem estas condições no horizonte, nada feito. Se o "salto federal" as ignorar, o mais certo é que se saia da democracia, mas não certamente da crise. E desta vez não serão precisos vinte anos para o perceber!
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