domingo, 15 de julho de 2012

UMA ESTRADA PARA O PARAÍSO




José Ribeiro – Jonal de Angola, opinião, em A Palavra do Diretor

A província do Kuando-Kubango é maior que muitos países, mas sofreu o mal da desertificação humana. No tempo colonial, aquele imenso território tinha o nome de “terras do fim do mundo”.

Lá no fundo, na fronteira, temos o Mucusso e o Dirico. E no bico mais a sudoeste, o antigo posto administrativo da Luiana. As expedições de Serpa Pinto foram feitas com milhares de carregadores, tipóias e bois-cavalos, os únicos que aguentavam o sol abrasador do dia ou o frio cortante da noite. Desde essa altura, nunca as autoridades coloniais abriram uma estrada digna desse nome.

As vias no Kuando-Kubango foram abertas com o passar dos carregadores e das viaturas, nos areais. Os trilhos dos carregadores que levavam às costas as cargas dos comerciantes foram durante muitos anos as estradas da província. Na estação das Chuvas, ninguém passava. No Cacimbo, podia levar um dia a percorrer 50 quilómetros. Este cenário de interioridade severa foi alterado quando o comboio chegou a Menongue, subindo a Serra da Chela até penetrar nas terras planas do sudoeste, chão de Nyaneka-Humbes e Ganguelas.

Sem uma rede viária digna desse nome, as condições de vida tornaram-se impossíveis e a desertificação humana foi imparável. Só ficou quem não teve coragem de deixar o lar e partir para zonas com melhores condições de vida. Ou os que teimosamente acreditaram no futuro da província.

A primeira oportunidade de desenvolvimento, com a chegada do comboio, gorou-se quando as forças estrangeiras fizeram do Kuando-Kubango teatro de uma guerra mortífera, tão destruidora como as mais destruidoras que alguma vez aconteceram no mundo. As feridas são tantas que ainda hoje o país inteiro tem que se mobilizar para ajudar a curar o que ainda dói de maneira insuportável.

Os países só são grandes quando os povos sabem ser solidários e repudiam o egoísmo. Uma Nação forja-se nos laços de solidariedade nacional. Quem mais tem, abdica de uma parte para dar aos que nada têm. O Kuando-Kubango, terminada a guerra, ficou na situação de precisar da solidariedade nacional. E apesar dos problemas serem muitos e por toda a parte, a província teve todo o país ao seu lado, na hora da reconstrução.

A primeira vez que fui ao Kuando-Kubango a guerra estava no auge. À desolação do deserto humano, só arrefecida pelas bonitas aldeias ganguelas, juntava-se a guerra nua e crua. Dormi numa casa arruinada, sem tecto. Choveu toda a noite. De madrugada alguém gritou que estava uma cobra naquela ruína. Saímos todos para a rua. Feita uma inspecção detalhada, nada encontrámos. O cansaço era tanto que continuámos a dormir, empapados pela chuva.

Agora regressei. Da cidade do Huambo a Menongue, fui de carro. Percorri a melhor e mais segura estrada de Angola. Rectas a perder de vista, piso de asfalto impecável. Sinalização horizontal, com reflectores a marcarem as bermas. Sinalização vertical onde consta o sinal de curvas ou contracurvas perigosas. É a estrada mais segura do mundo. As bermas estão limpas e as valetas desobstruídas. Há trabalhadores a garantir a manutenção. Este é o caminho para o paraíso, desde a cidade do Huambo, pela estrada que liga ao Cuito, também impecável. E depois do Chinguar, o desvio para a via que tirou o Kuando-Kubango do isolamento e atenuou os custos sociais, humanos e económicos da interioridade e da assimetria.

As matas do Kuando-Kubango têm nesta altura tapetes coloridos de fungos e gramíneas, arbustos púrpura, outrora tão valiosos na indústria da tinturaria. Chegavam a estas terras caravanas com milhares de carregadores à procura das “cores naturais” da sua riquíssima flora. O trânsito ainda é pouco intenso, porque a província está a montar todas as infra-estruturas necessárias para arrancar de vez para o desenvolvimento e o bem-estar das populações. As aldeias e comunas têm escolas e postos de saúde. Chafarizes com água potável. Onde antes apenas existiam matas e chanas há agora aldeias pacíficas e acolhedoras. Ali já não é o fim do mundo. É uma Angola nova que está a nascer. Na primeira vez que fui ao Kuando-Kubango passei fome e partilhei com os meus colegas umas latas de conservas. Desta vez comi o melhor bife da minha vida, no restaurante acolhedor do Lodge Kambumbe.

Quando estive em Menongue, nos anos 80, apenas ouvia o troar dos canhões ou dos bombardeamentos aéreos. Agora ouvi as vozes cristalinas de milhares de crianças das escolas, nas suas brincadeiras descuidadas e felizes. No alto da avenida principal de Menongue, um edifício imponente chama à atenção dos viajantes. É a nova estação do caminho-de-ferro. Quem a projectou sabe que a nova estrada e o comboio são os elementos mais importantes para garantir aos habitantes da província um futuro de paz e abundância. O comboio vem do mar até Menongue, com cargas preciosas que animam o comércio local. Dentro de alguns dias as viagens passam a ser regulares. Tudo está a ser feito com calma e segurança, para que nada falhe.

A estrada é boa e por ela circulam os camiões de mercadorias, os táxis apinhados de passageiros, alguns carros particulares. O comboio levou anos a chegar. Agora é preciso que nunca mais volte a parar.

A beleza destas terras do novo mundo faz cortar a respiração. O turismo é a indústria que vai mudar a face da região num projecto transfronteiriço extraordinário. As terras férteis estão à espera das manadas de gado bovino e plantações. O Kuando-Kubango pode ser o celeiro de Angola e de toda a África. Tem tudo para ser o paraíso de Angola. E já não está no fim do mundo. Fica ali, a quatro horas de viagem do Huambo, pela melhor e mais segura estrada que já percorri.

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