quarta-feira, 21 de novembro de 2012

MERKIAVEL

 

Vicente Jorge Silva – Sol, opinião
 
Quando Sarkozy era Presidente da França dava-se ares de grande informalidade protocolar – beijinhos, abraços afectuosos – com Angela Merkel. Ela, em contrapartida, mostrava o embaraço de quem teria preferido um maior recato institucional.
 
Conheciam-se as divergências de interesses e peso político-económico entre os dois países, mas Sarkozy procurava disfarçar o papel subalterno da França face à Alemanha recorrendo a esse exuberante exibicionismo e esse acasalamento artificial com a poderosa chanceler germânica. Entrou então na moda uma expressão conjugal que hoje se tornou comicamente anacrónica: Merkozy.
 
O filósofo alemão Ulrich Beck inventou outra expressão muito mais pertinente para os tempos que correm: Merkiavel. Angela Merkel não seria apenas a «rainha sem coroa» da Europa. O seu poder é sustentado por uma «habilidade maquiavélica».
 
Num artigo recente no Le Monde, Beck recorda que, segundo Maquiavel, «o príncipe não deve manter a palavra dada ontem se isso não lhe trouxer vantagens». «Transpondo essa máxima para a situação actual (…) é possível fazer hoje o contrário do que se anunciou ontem, se isso aumentar a oportunidade de ganhar as próximas eleições».
 
Merkel evita tomar posição no conflito virulento que divide europeístas e eurocépticos. E, com ironia maquiavélica, «faz depender a disposição da Alemanha em conceder créditos da disposição dos países endividados em aceitar as condições da política alemã de estabilidade. É o primeiro princípio de Maquiavel: quando se trata de ajudar os países endividados com o dinheiro alemão, a posição de Angela Merkel não é nem um sim franco nem um não categórico, mas uma mistura entre os dois».
 
Mas como pôr em prática esta posição paradoxal? – interroga-se Beck. Seguindo estritamente Maquiavel, seria necessário fazer prova de virtude, de energia política e combatividade. Mas Merkel introduz outra variação irónica no modelo maquiavélico: «O poder de Merkiavel baseia-se com efeito no desejo de nada fazer, no seu pendor para o-não-agir-ainda, para agir mais tarde, para hesitar. Esta arte do adiamento selectivo, esta mistura de indiferença, de recusa da Europa e de envolvimento europeu está na origem da posição de força da Alemanha numa Europa fustigada pela crise».
 
A política de adiamento das decisões alimenta a política de domesticação da Europa, refém dos créditos e da doutrina germânica. «Merkel ganha assim em dois tabuleiros: alargando o seu poder na Europa e ganhando o favor dos eleitores alemães».
 
Maquiavel interroga-se no Príncipe se mais vale ser amado ou temido. Ora Merkel «quer ser temida no estrangeiro e amada no seu país – porventura, justamente porque ela ensinou o temor aos outros países». Esse temor que ela ensinou à Grécia ou a Portugal, por exemplo, e de que a sua recente visita a Lisboa foi uma encenação reveladora. Palavras simpáticas para com os hóspedes e valetes de serviço sempre à espera de um sinal encorajador. Mas nenhum compromisso, nenhuma esperança. Pelo contrário: o caminho seguido até aqui tem de ser continuado, custe o que custar, doa a quem doer, até um dia podermos regressar à superfície do buraco onde mergulhámos. Só que não se sabe como nem quando. Sabemos, sim, que as previsões e as receitas vão falhando umas atrás das outras. Mas essa é uma questão que escapa à perspectiva imediata de Merkiavel – e, já agora, ao atento, venerador e obrigado Governo português.
 
Como conclui Beck, «Merkiavel atinge pouco a pouco os seus limites, porque é preciso reconhecer que a política de austeridade alemã não registou até agora nenhum sucesso. Pelo contrário, a crise do endividamento ameaça agora também a Espanha, a Itália e porventura, em breve, a própria França. Os pobres tornam-se ainda mais pobres, as classes médias estão ameaçadas de desclassificação e não se vê ainda o fundo do túnel».
 
Entretanto, os sinais são claros: a crise europeia já ameaça de estagnação a economia alemã. Os custos da austeridade imposta à Europa por Merkiavel trazem de volta à origem virtuosa os temores da recessão. Nem Merkel, nem Maquiavel ou o seu Príncipe são imunes aos efeitos mortíferos do cinismo político.
 

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