Vicente Jorge Silva – Sol, opinião
Quando Sarkozy era
Presidente da França dava-se ares de grande informalidade protocolar –
beijinhos, abraços afectuosos – com Angela Merkel. Ela, em contrapartida,
mostrava o embaraço de quem teria preferido um maior recato institucional.
Conheciam-se as
divergências de interesses e peso político-económico entre os dois países, mas
Sarkozy procurava disfarçar o papel subalterno da França face à Alemanha
recorrendo a esse exuberante exibicionismo e esse acasalamento artificial com a
poderosa chanceler germânica. Entrou então na moda uma expressão conjugal que
hoje se tornou comicamente anacrónica: Merkozy.
O filósofo alemão
Ulrich Beck inventou outra expressão muito mais pertinente para os tempos que
correm: Merkiavel. Angela Merkel não seria apenas a «rainha sem coroa» da
Europa. O seu poder é sustentado por uma «habilidade maquiavélica».
Num artigo recente
no Le Monde, Beck recorda que, segundo Maquiavel, «o príncipe não deve manter a
palavra dada ontem se isso não lhe trouxer vantagens». «Transpondo essa máxima
para a situação actual (…) é possível fazer hoje o contrário do que se anunciou
ontem, se isso aumentar a oportunidade de ganhar as próximas eleições».
Merkel evita tomar
posição no conflito virulento que divide europeístas e eurocépticos. E, com
ironia maquiavélica, «faz depender a disposição da Alemanha em conceder
créditos da disposição dos países endividados em aceitar as condições da
política alemã de estabilidade. É o primeiro princípio de Maquiavel: quando se
trata de ajudar os países endividados com o dinheiro alemão, a posição de
Angela Merkel não é nem um sim franco nem um não categórico, mas uma mistura
entre os dois».
Mas como pôr em
prática esta posição paradoxal? – interroga-se Beck. Seguindo estritamente
Maquiavel, seria necessário fazer prova de virtude, de energia política e
combatividade. Mas Merkel introduz outra variação irónica no modelo
maquiavélico: «O poder de Merkiavel baseia-se com efeito no desejo de nada
fazer, no seu pendor para o-não-agir-ainda, para agir mais tarde, para hesitar.
Esta arte do adiamento selectivo, esta mistura de indiferença, de recusa da
Europa e de envolvimento europeu está na origem da posição de força da Alemanha
numa Europa fustigada pela crise».
A política de adiamento
das decisões alimenta a política de domesticação da Europa, refém dos créditos
e da doutrina germânica. «Merkel ganha assim em dois tabuleiros: alargando o
seu poder na Europa e ganhando o favor dos eleitores alemães».
Maquiavel
interroga-se no Príncipe se mais vale ser amado ou temido. Ora Merkel «quer ser
temida no estrangeiro e amada no seu país – porventura, justamente porque ela
ensinou o temor aos outros países». Esse temor que ela ensinou à Grécia ou a
Portugal, por exemplo, e de que a sua recente visita a Lisboa foi uma encenação
reveladora. Palavras simpáticas para com os hóspedes e valetes de serviço
sempre à espera de um sinal encorajador. Mas nenhum compromisso, nenhuma
esperança. Pelo contrário: o caminho seguido até aqui tem de ser continuado,
custe o que custar, doa a quem doer, até um dia podermos regressar à superfície
do buraco onde mergulhámos. Só que não se sabe como nem quando. Sabemos, sim,
que as previsões e as receitas vão falhando umas atrás das outras. Mas essa é
uma questão que escapa à perspectiva imediata de Merkiavel – e, já agora, ao
atento, venerador e obrigado Governo português.
Como conclui Beck,
«Merkiavel atinge pouco a pouco os seus limites, porque é preciso reconhecer
que a política de austeridade alemã não registou até agora nenhum sucesso. Pelo
contrário, a crise do endividamento ameaça agora também a Espanha, a Itália e
porventura, em breve, a própria França. Os pobres tornam-se ainda mais pobres,
as classes médias estão ameaçadas de desclassificação e não se vê ainda o fundo
do túnel».
Entretanto, os
sinais são claros: a crise europeia já ameaça de estagnação a economia alemã.
Os custos da austeridade imposta à Europa por Merkiavel trazem de volta à
origem virtuosa os temores da recessão. Nem Merkel, nem Maquiavel ou o seu
Príncipe são imunes aos efeitos mortíferos do cinismo político.
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