Liberal esteve no
Bairro de Santa Filomena - Amadora (I)
Liberal (cv)
É no silêncio que a
ignomínia levada à cena no Bairro de Santa Filomena se tem instalado,
transformando pessoas com identidade própria em entidades abstratas de natureza
anónima
A partir de hoje,
publicamos três peças de uma reportagem feita naquele bairro da Amadora
(Portugal), em 2 de Dezembro último. De viva voz, residentes cabo-verdianos
contam o calvário da sua precária situação e denunciam a apatia das autoridades
do nosso país
Praia, 10 dezembro
2012 – À chegada ao bairro já alguns moradores sabiam ao que íamos e, logo nos
primeiros passos pela rua da entrada principal, foram-se acercando do repórter
numa simpatia que nos faz pensar não estar tudo perdido, que a morabeza das
ilhas tem ali, naquele recôndito mundo de emaranhado de ruas serpenteantes e
casas modestas, uma trincheira da alma cabo-verdiana.
Numa primeira
vista, o Bairro de Santa Filomena parece zona de guerra, com habitações
arrasadas e casas esventradas. E, na pressa de mostrarem serviço, os
funcionários do município que destroem o lugar sagrado que é o lar de uma
família, deixaram jorrando para os destroços a água límpida que brotava dos
canos de uma habitação, desde o último dia 19 de Novembro, quando a investida
das máquinas madrugou pelo bairro, acordando crianças estremunhadas e
arrancando velhos doentes das camas.
NEM OS DOENTES
ESCAPAM
O homem com quem
primeiro falamos não quer dar a cara. No democrático Portugal de Abril, o medo
anda varejando à solta como se velhos fantasmas regressassem das tumbas, agora
pela mão dos “socialistas” que mandam na Câmara Municipal da Amadora…
António,
chamemos-lhe assim, padece de apneia do sono, uma doença que o obriga a
utilizar um aparelho, ligado à eletricidade, para que a morte súbita não
surpreenda o seu descanso e se afirme irreversível. Nessa segunda-feira, 19 de
Novembro, o corte de luz que antecedeu a demolição desligou a máquina e resgatou-o
do sono.
“Logo de manhã
senti que o aparelho desligou e levantei-me para ver o que se passava, quando
saí para a rua os cabos elétricos estavam espalhados pelo chão”, diz António,
que afiança não o terem avisado de nada. Um facto que o Liberal pôde confirmar.
Efetivamente, os avisos afixados pela Polícia Municipal são generalistas, não
se dirigem a ninguém em particular, como se os habitantes do bairro não
tivessem identidade nem rosto, como se houvessem sido despidos da sua natureza
humana. E também não indicam a data precisa da demolição, o que pode ser
entendido como “terrorismo psicológico e instigação permanente do medo”, como
referiu um ativista social.
“Cortaram a luz e a
água e nem bateram à porta”, diz António, que tinha interposto, inclusive, uma
providência cautelar que obrigava a Câmara Municipal a aguardar pela decisão do
juiz, e violando assim a Lei, no que já não constitui novidade tendo em conta o
histórico de reiteradas violações da legalidade promovidas pela autarquia
liderada pelo “socialista” Joaquim Raposo, ele próprio suspeito já de negócios
pouco claros mas nunca apurados convenientemente. Lá como cá aos ricos e
poderosos a Lei raramente é aplicada… E o argumento para, no caso de António,
violarem a Lei, é um expediente comum com a alegação que a Câmara desconhecia a
providência cautelar…
Para além da apneia
do sono, o nosso interlocutor padece ainda de hipertensão e diabetes, doenças
clinicamente comprovadas, mas que não demoveram a ação destruidora ironicamente
enquadrada pela Polícia de Segurança Pública (PSP) e pela Polícia Municipal
(PM), forças que têm por missão cumprir e fazer cumprir a Lei.
Com mobílias e
haveres remetidos para um armazém municipal, António e a esposa, ainda assim,
tiveram alguma “sorte” e foram alojados numa pensão de Lisboa, de onde a
qualquer momento poderão ser despejados.
MÃO-DE-OBRA BARATA
Desde 1995 em
Portugal, o homem sem casa, que sempre pagou as suas contribuições, mesmo até
as correspondentes ao imóvel que, apesar de “ilegal”, o município sempre
arrecadou nos seus cofres, é também, desde há cinco anos, cidadão português, o
que obstou a colocarem-no na rua de imediato como aconteceu aos demais que
apenas ostentam a cidadania cabo-verdiana. Legalmente “tuga”, António e a
esposa beneficiaram da especial atenção das autoridades…
Durante anos, o
homem afável que abordamos trabalhou na construção civil, quando o Estado
português, no frenesim das obras públicas que os fundos comunitários
suscitaram, precisava de mão-de-obra barata e sem direitos e a riqueza súbita
do país foi responsável pelo “boom” dos setores de construção e imobiliário.
António, como
milhares de outros cabo-verdianos, ajudou ao crescimento de Portugal, nunca se
eximiu a liquidar as suas contribuições e nunca qualquer autoridade obstou a
que tivesse habitação em
Santa Filomena , pelo contrário, até receberam durante anos o
imposto autárquico e, apesar da “ilegalidade” da construção, fizeram com ele
contratos de fornecimento de água e energia elétrica.
O seu caso, comum a
tantos outros, tem ainda um fio condutor: as “beneméritas” assistentes sociais
exigem o silêncio. E, por isso, António não pode dar a cara nem revelar a sua
verdadeira identidade.
O medo instalou-se
entre os desalojados, a chantagem terrorista impede as pessoas de contactarem
associações e, muito menos, falarem com jornalistas.
É no silêncio que a
ignomínia levada à cena no Bairro de Santa Filomena se tem instalado,
transformando pessoas com identidade própria em entidades abstratas de natureza
anónima. E tudo isto com a cumplicidade da nossa embaixada em Lisboa, de gatas
e de mão estendida às “ajudas” portuguesas ao nosso país.
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário