Pedro Rainho –
Jornal i – foto Manuel de Almeida/Lusa
Constitucionalista
considera que governo “desrespeita” a Constituição e que “há margem para fazer
diferente” no Orçamento do Estado
Ponto de partida da
conversa: o Presidente da República (PR) esteve mal, quando decidiu promulgar o
Orçamento e só depois enviá-lo para o Tribunal Constitucional (TC). Jorge
Bacelar Gouveia sublinha que, com essa opção, “matava-se o mal à nascença”, não
entrando em vigor um Orçamento ferido de inconstitucionalidade. Ao mesmo tempo,
o TC ficaria “amarrado”, porque não poderia adiar as consequências da decisão,
como fez no ano passado. Mas, no final de contas, defende o constitucionalista
e ex-deputado do PSD, “mais vale a sucessiva que nenhuma”.
Qual poderá ser a
posição do Tribunal Constitucional (TC) em relação ao pedido de fiscalização
sucessiva feito pelo Presidente da República e pelos deputados?
O Presidente da
República pôs o dedo na ferida ao requerer a fiscalização daquela que, a meu
ver, é a questão principal: a suspensão do subsídio de férias de funcionários
públicos e pensionistas. A questão suscitada tem uma natureza idêntica à que
foi declarada inconstitucional em Julho do ano passado, apesar de algo ter
mudado: a suspensão não é de dois subsídios, mas apenas de um. Mas do ponto de
vista do respeito pelo princípio da igualdade, a violação continua a ser
manifesta e evidente. Há um grupo de pessoas que não vai receber um subsídio
quando todos os outros recebem. Para haver um sacrifício, teria de haver um
sacrifício que todos suportassem e que não fosse apenas uma parte da população
a suportar e a ficar privada do subsídio. Se há uma crise financeira nacional,
essa crise deve ser suportada por todos e não apenas por uma minoria dos
cidadãos.
Que consequências
pode acarretar o Constitucional considerar estas medidas inconstitucionais?
Penso que a questão
mais importante vai ser a de perceber se, perante a decisão de
inconstitucionalidade, haverá novamente o adiamento do subsídio de férias para
o ano seguinte, ou se há outra solução intermédia. Há três posições possíveis.
A primeira posição poderá ser a decisão ter efeitos retroactivos, a partir do
dia 1 de Janeiro; uma solução intermédia, que passará por não ser
inconstitucional até ao momento em que o tribunal decide, mas sê-lo a partir
desse momento e até ao fim do ano – se não for em Maio ou Junho, será no
segundo semestre; e uma terceira solução – uma solução mínima ou solução
nenhuma –, a de ser inconstitucional mas o tribunal adiar os efeitos para 2014,
à semelhança do que fez em 2012.
Qual poderá ser a
opção escolhida?
Penso que nunca
será a terceira, mas pelo menos a solução intermédia, de ser inconstitucional a
partir do momento em que o TC decida. Ou, então, ser inconstitucional desde o
princípio do ano. Atendendo ao facto de ser uma reincidência, penso que o
tribunal não deve decidir da mesma forma que decidiu no ano passado. Porque, se
não se retirarem efeitos práticos dessa fiscalização, isso estaria a beneficiar
um poder legislativo infractor e estaria a reincidir na mesma
inconstitucionalidade. Penso que o tribunal vai decidir de outra maneira.
Reincide-se porque
não há margem para fazer diferente ou porque há um simples desrespeito pela
Constituição?
Há um desrespeito
pela Constituição e há margem para fazer diferente. O governo errou em insistir
e em repetir numa medida que foi objectivamente declarada inconstitucional pelo
TC. Há muitas medidas alternativas que poderiam ser tomadas, e algumas o
governo tomou – como o aumento generalizado dos impostos –, mas em relação aos
funcionários públicos e pensionistas insistiu numa fixação, numa obsessão de
privar do subsídio, tratando-os de uma forma desigualitária em relação a todos
os trabalhadores e dos outros cidadãos.
Como interpreta
essa insistência?
Temo que tenha por
trás de si uma ideologia contra a Função Pública ou um pressuposto errado de
considerar que os funcionários do Estado ganham demais, que os funcionários
públicos não trabalham ou que são em número excessivo. Até admito que as coisas
não estejam bem na Função Pública, mas cada funcionário não pode ser culpado de
um conjunto de opções políticas tomadas ao longo de anos, que não permitiram
que a Função Pública se tornasse mais eficiente e organizada. Não se pode
generalizar e, sobretudo, há que respeitar as expectativas das pessoas. O
Estado tem que agir de boa fé, e este tipo de medidas não traduz esse princípio
de boa fé no relacionamento com os funcionários públicos.
Como vê os
comentários da Comissão Europeia, quando fala em rendimentos dos funcionários
públicos portugueses 20% mais elevados que no resto da União?
Vejo mal. Os países
têm diferentes tradições nas suas administrações públicas e essa é uma matéria
que diz respeito à gestão interna dos países. Muitas vezes, esses técnicos da
Comissão Europeia não têm conhecimento da realidade interna dos diferentes
países e limitam-se a fazer comentários superficiais, que não podem ser levados
a sério. Há um deficit de conhecimento real das situações em relação ao modo
como a FP está organizada.
Não há demasiados
funcionários públicos?
Portugal não tem um
excesso de funcionários públicos, tendo em conta a média europeia, como também
não há ordenados exagerados em relação à média europeia. Tudo isso são opiniões
que nunca são assumidas politicamente pelos órgãos da União Europeia, mas são
veiculadas à socapa por uns pseudo-burocratas que lançam, muitas vezes, a
confusão. Se a União Europeia acha que a Função Pública portuguesa está mal
organizada, que o diga frontalmente através dos seus órgãos legítimos. Não
utilize este subterfúgio de uns porta-vozes, pseudo-técnicos da matéria que dão
uns palpites. Não pode ser assim.
Justificava-se o
pedido de fiscalização de outros artigos?
Penso que a questão
dos subsídios é uma questão importante, mas há mais questões que podem ser
colocadas. Uma delas é a da diminuição dos escalões de IRS. A Constituição não
tem uma indicação precisa, diz apenas que o IRS deve ser progressivo. Claro que
quando reduzimos os escalões, a progressividade diminui e a receita fiscal
aumenta, porque os escalões mais baixos vão encaixar em taxas mais altas, mas
isso não é inconstitucional. Traduz uma opção política de crise, mas não fere
nenhum princípio da Constituição.
E sobre o aumento
de impostos?
Há a questão sobre
se a carga fiscal não terá ultrapassado um limite máximo. O que tem uma
dificuldade acrescida, porque esse limite máximo não está na Constituição.
Falamos que os impostos não podem ser confiscatórios – quando ultrapassem um
máximo acima do qual não poderiam ir –, mas a Constituição não tem esse limite.
E mesmo que fosse objectivável de alguma maneira, não teríamos ainda chegado a
esse limite, porque não estamos na casa dos 80% de tributação. Há o exemplo do
TC em França, em relação a um imposto que Hollande operacionalizou, de 75%
sobre os rendimentos dos mais ricos, que foi considerado inconstitucional.
Estamos ainda muito longe de uma tributação de 75% para os rendimentos mais
altos.
Mesmo com os mais
de 50% sobre os rendimentos mais elevados?
Admito que a
questão seja controversa, mas eu, se fosse juiz, não consideraria inconstitucional.
É, de resto, uma questão associada a uma das propostas do CDS para a revisão
constitucional, que se frustrou, em que o próprio CDS estabelecia um limite
máximo para a carga fiscal. E há um outro problema, da diminuição severa da
autonomia das autarquias locais, porque há uma série de receitas que já não
podem ser deliberadas no âmbito autárquico, aliadas a uma redução das
transferências. Aí, penso que poderá haver um problema de
inconstitucionalidade. Um outro ponto tem que ver com a diminuição severa dos
descontos que os contribuintes podem fazer no âmbito das despesas com a Saúde e
a Educação, que também pode criar um problema de inconstitucionalidade. A
Constituição, no artigo 104º, diz que no IRS deverão considerar-se as condições
concretas do agregado familiar. A partir do momento em que os agregados não
podem descontar estas despesas, necessárias à vida familiar, essas famílias
estão a ser prejudicadas porque vão ter um tratamento igual às famílias que não
têm filhos ou idosos a seu cargo.
Ao aumento de
impostos junta-se um corte de quatro mil milhões de euros nas funções do Estado
que o governo terá de fazer...
É necessário.
Vivemos uma situação de crise, mas é algo que tem de ser visto com cuidado
porque tem que ver com a reforma do Estado Social. Não podemos confundir
medidas conjunturais e medidas estruturais. Admito que o Estado Social sofra
uma redução drástica num curto prazo, para resolvermos o equilíbrio das contas
públicas, mas para o futuro certas medidas não podem continuar.
Não se corre o
risco de que se transformem em medidas permanentes?
Há esse risco, mas
do ponto de vista do discurso político tem de haver a percepção de que há uma
reforma do Estado Social de curto prazo e uma outra de longo prazo. No curto
prazo, as medidas têm de ser aceites. Não gostamos delas, sofremos todos os
dias com essas medidas, mas têm de ser aceites desde que sejam temporárias,
equitativas e proporcionais. Se o sacrifício for para todos, e se for
temporário, a generalidade dos portugueses deve compreender a sua necessidade.
Mas não podem ser perpétuas, devem desaparecer a partir do momento em que
voltarmos a uma situação de normalidade financeira.
E no longo prazo?
As grandes questões
têm que ver com o financiamento da Saúde e da Educação, áreas que ocupam quase
70% da despesa pública. Tem de haver um novo modelo de financiamento que passe
pela eliminação de uma gratuitidade cega que a Constituição ainda estabelece em
relação ao ensino básico e que é injusta mesmo para aqueles que pagam menos ou
que não pagam nada. Neste momento, uma família rica, que está no escalão mais
alto do IRS, não paga nada, tal como uma família pobre que está no escalão mais
baixo. A solução seria deixar de ter um sistema automaticamente gratuito para
passar a um que fosse financiado de acordo com a capacidade económica de cada
agregado familiar. Neste caso, a igualdade absoluta da gratuitidade é uma
desigualdade.
A Constituição é
incompatível com o estado de emergência do país?
A Constituição não
bloqueia nem o desenvolvimento do país, nem a eficiência da economia, nem a
legitimidade do poder político. Pelo contrário, a Constituição Portuguesa,
desde 1976, tem sido um motor de desenvolvimento e um calibrador de crises
políticas em vários momentos. Há um discurso na opinião pública de que é
necessária uma quarta república e uma nova Constituição. Eu compreendo a
irritação de quem tem esse discurso e a fúria de alguns comentadores que querem
fazer um restart do sistema político português. Mas, infelizmente, o problema
não está na Constituição. O problema está nos políticos e nas práticas
políticas, que têm de ser profundamente revistas, com novos valores e novos
princípios. O problema está nas pessoas, que não estão, em grande medida, à
altura das necessidades do país.
Faltam os
políticos?
Falta um político
de uma nova geração. As sociedades têm vindo a evoluir e hoje temos um mundo
internacionalizado, mas precisamos de pessoas que saibam interpretar de uma
outra forma as necessidades dos portugueses. É necessário um novo discurso e
uma nova prática política e isso poderá passar por mudanças nos partidos
políticos e no reequilíbrio de forças político-partidárias. Temos um sistema
partidário muito envelhecido, sempre com os mesmos partidos, com poucas
alterações e começa a aparecer uma necessidade de mudança profunda na sociedade
partidária.
Abrindo-se mais à
sociedade civil?
O 15 de Setembro
foi uma demonstração disso mesmo. As pessoas já não se revêem nos partidos e
muito menos se revêem nas ideologias, querem a resolução das suas necessidades
concretas, mas querem mais do que isso: querem políticos competentes, honestos,
que não mintam constantemente e que possam fazer cedências e compromissos,
independentemente do seu partido ou do seu modo de ver o mundo. E que não seja
sectários. O grande problema de muitos partidos portugueses é o sectarismo de
não acolherem sugestões que venham de outros quadrantes. Esse é também um
problema de incompetência profissional, de pessoas que não têm uma vida
profissional prévia, que não têm mundo, não sabem qual é a realidade, cresceram
nos aparelhos partidários e nunca perceberam muito bem quais são as realidades
concretas das pessoas. É necessária uma nova geração de políticos, com outras
características.
O facto de ter sido
o Presidente a pedir a fiscalização sucessiva pode resultar numa apreciação
mais rápida?
O tribunal trata de
maneira igual qualquer pedido que seja apresentado. Claro que o Presidente tem,
protocolarmente, mais importância que os partidos da oposição. Como os
deputados devem apresentar os pedidos dias depois, penso que o processo será um
único, os vários pedidos vão ser tratados em conjunto. Mas é importante que o
chefe de Estado tenha feito o pedido logo no primeiro dia útil do ano, e julgo
que seria importante o TC decidir o mais rapidamente possível, cumprindo os
prazos. Não é habitual que o faça, mas julgo que desta vez terá oportunidade de
respeitar esses prazos e em três meses tomar uma decisão.
Que consequências
deve o governo tirar, no caso de haver normas consideradas inconstitucionais?
O governo tem o
dever de respeitar a decisão do TC e não deve amuar por causa dessa decisão. Um
governo responsável não vai amuar quando o TC decide a inconstitucionalidade de
uma norma que ele promoveu. Em democracia não há amuos, há respeito pelas instituições
e pelo poder judicial. O governo deve propor à Assembleia da República um
Orçamento rectificativo e arranjar uma alternativa de captação de receitas ou
diminuição da receita correspondente. Sem cair numa chantagem, que me parece
que já começou, em relação ao TC, dizendo que se vai demitir ou que isso vai
criar uma crise política. Mas, felizmente, o TC não se vai deixar pressionar.
Era só o que faltava, num Estado de direito democrático, que o poder
legislativo que faz leis inconstitucionais ameaçar o poder judicial e os
poderes em geral de que vai haver uma crise política, que o país vai ficar
ingovernável e vai entrar na banca rota se o TC considerar uma norma
inconstitucional. O governo tem de ter preparado um plano B.
E o Presidente deve
retirar consequências políticas de um chumbo consecutivo do OE?
Acho que não. O TC
tem independência na decisão e o Presidente da República deve estar vigilante
no sentido de que o governo e o parlamento vão respeitar a decisão do tribunal
de que os subsídios venham a ser devolvidos aos portugueses. Mas não creio que
daí nasça nenhuma crise política. Nem a demissão do governo nem a dissolução da
Assembleia da República. O chefe de Estado tem uma missão importante de defesa
da Constituição. É o único órgão de soberania que jura sobre a Constituição.
Mas normas inconstitucionais há em todos os governos e todos os parlamentos. É
verdade que há uma maior gravidade porque é uma reincidência, mas ainda assim
não penso que seja motivo para qualquer sanção de demissão do governo ou
dissolução da Assembleia da República.
Que factores podem
promover essa crise política?
A grande questão
que se coloca é saber se esta orientação económica e financeira do governo é a
certa para levar Portugal a sair da crise em que se encontra. Mas, sobre isso,
só posso subscrever as palavras do Presidente, que diz preto no branco que o
caminho não é este, que este caminho iria conduzir a uma crise ainda maior.
Será decisivo este primeiro semestre, para ver os resultados desta política
económica.
Na quinta-feira, o
presidente da RTP terá dito que a privatização ficaria resolvida dia 10, em
reunião de Conselho de Ministros. Em que moldes pode ser feita essa
privatização?
A Constituição
ocupa-se muito do problema da Comunicação Social, porque há uma série de normas
que visam garantir a sua transparência e independência, porque é um poder
social muito importante e onde há uma ideia de interesse público, sobretudo o
dever de informar. Em relação à televisão, a Constituição é expressa, ao dizer
no artigo 38, número cinco, que o Estado assegura a existência e o
funcionamento de um serviço público de rádio e televisão. Não de jornais, mas
de televisão. Há várias interpretações possíveis, mas penso que esta norma está
sobretudo preocupada com a substância das coisas, não com a forma das coisas.
Em que se traduz
essa substância?
Em haver uma
actividade televisiva, isto é, a transmissão de televisão em canal aberto, em
que haja informação e entretenimento que possam ser enquadrados nessa ideia de
serviço público. Terá de ser em canal aberto, senão não estaria aberto ao
público, mas a Constituição não fala no número de horas e não se compromete
especificamente com o número de certo tipo de programas – embora inclua
informação e entretenimento –, mas também não fala no número de canais nem da
forma jurídica da empresa, o modo como isso se operacionaliza, nem tinha que
falar. A meu ver, este serviço público deve ser garantido, mas não tem de ser
através de uma empresa 100% pública.
A porta está aberta
a qualquer modelo?
Penso que está.
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