Giorgio Trucchi,
Cidade da Guatemala – Opera Mundi
Para Carlos
Barrientos, presidente que assumiu há um ano não pode seguir ignorando leis
internacionais sobre povos tribais
No último dia 14 de
janeiro, o ex-general Otto Pérez Molina completou um ano na presidência da
Guatemala. Segundo o CUC (Comitê de Unidade Campesina), uma das mais
importantes e históricas organizações indígenas do país, o presidente Molina
ficou “muito aquém” das expectativas que gerou durante sua campanha eleitoral e
ao longo dos primeiros meses de seu mandato.
Em março de 2012, milhares de pessoas se mobilizaram em uma marcha e percorreram
mais de 200 quilômetros para chegar à capital guatemalteca. Homens e mulheres,
jovens, adultos e idosos caminharam por nove dias, compartilhando medos,
esperanças, sonhos, mas também projetos, propostas de mudanças e demandas para
autoridades acostumadas a não dar ouvidos ao clamor dos povos originários.
Naquela ocasião, Daniel Pascual, coordenador geral do CUC, havia explicado que
não aceitaria migalhas por parte do governo e exigiria “uma solução imediata ao
conflito agrário histórico que existe na Guatemala”. Isso só seria possível com
a aprovação de uma Lei de Desenvolvimento Rural Integral, que garantisse o
acesso às e a legalização das terras para as famílias indígenas e campesinas,
colocando um fim definitivo aos despejos forçados.
Entre outras demandas, pediam também o perdão de uma dívida agrária que somava
mais de 300 milhões de quetzales (3,8 milhões de dólares), a desmilitarização
das comunidades, assim como o fim à criminalização dos protestos, “respeitando
o direito do povo de rechaçar a exploração mineira, as hidreelétricas, as
monoculturas em grande escala e os demais megaprojetos”.
Entretanto, o governo não cumpriu nem mesmo as promessas feitas com o movimento
naquela época. Em entrevista a Opera Mundi, o secretário-executivo do CUC,
Carlos Barrientos, lamenta a postura do atual presidente e alerta para o risco
de aumento de conflitos no país.
Um dos locais de
maiores tensão é o Engenho Chabil Utzaj, propriedade do colossal nicaraguense
Grupo Pellas. Em março de 2011, um forte contingente de militares e policiais,
despejou 14 comunidades indígenas do local, deixando desamparado um total de
800 famílias q'eqchi's, que durante gerações vinham habitando e trabalhando
nessas terras. Até mesmo a CIDH interferiu no caso e concedeu medidas
cautelares a favor das 14 comunidades desalojadas, obrigando o governo
guatemalteco a garantir alimentação, saúde, moradia e segurança.
A Marcha indígena, campesina e popular conseguiu que o governo se comprometesse
a utilizar recursos da Secretaria de Assuntos Agrários “para que não menos de
300 famílias afetadas por ano tivessem acesso à terra”.
No entanto, além do acordo não ter saído do papel, um novo despejo foi
realizado em 13 de fevereiro. Famílias q'eqchi's na Comunidade de Agua
Caliente, Panzós, que tinham plantado milho em mais de uma caballería [medida
agrária utilizada na América Central] de terra, para dar espaço a novas
extensões de cana de açúcar, foram retiradas de forma truculenta pelos
funcionários do engenho.
Além disso, o dirigente indígena destaca a falta de beligerância governamental
ante os esforços realizados pelas organizações sociais e os familiares das
vítimas para “combater a impunidade e recuperar a memória histórica”, diz.
Durante o longo conflito armado interno (1960-1966), a população sofreu mais de
600 massacres, o assassinato de mais de 200 mil pessoas e o desaparecimento
forçado de um milhão de guatemaltecos. O início do processo contra o
ex-presidente e general aposentado Efraín Ríos Montt e outros altos quadros das
Forças Armadas pelos crimes de genocídio e de lesa-humanidade cometidos durante
seu mandato (1982-1983) “foi possível unicamente graças ao esforço dos
familiares e da promotoria”, afirma Barrientos.
Leia a entrevisa na íntegra:
Opera Mundi: Como o senhor avalia o desempenho do governo do presidente Otto
Pérez Molina?
Carlos Barrientos: No início da marcha, apresentamos nossas demandas
históricas, que têm a ver com a resolução do conflito agrário, com frear o
avanço do modelo extrativista, das hidrelétricas e a expansão das monoculturas,
assim como deter a criminalização dos protestos, a perseguição das comunidades,
e a aprovação de algumas leis de benefício social. Lamentavelmente, o governo
continua com muitas promessas e compromissos não cumpridos, resolvendo apenas
em parte a questão do perdão da dívida agrária com o Fundo de Terras
(Fontierras) ou Dívida Chortí.
OM: E como ficaram as outras demandas?
CB: O governo não apenas não quis assumir o compromisso de retirar o exército
das zonas onde havia um forte conflito – como nos municípios de San Juan
Sacatepéquez, em Santa Maria Xalapán, Sierras las Minas, Santa Cruz Barillas e
em Alta Verapaz –, como inaugurou duas novas brigadas militares. Trata-se de
uma escalada militarista que levou o exército a ter um orçamento quase igual ao
que tinha durante o último ano do conflito bélico.
O resultado foi um aprofundamento da repressão contra as comunidades indígenas,
que exigem ser consultadas antes da implementação de megaprojetos que
açambarcam territórios e exploram seus recursos. Um exemplo é o estado de sítio
e a repressão ocorrida em Santa Cruz Barillas ou o massacre em Totonicapán,
quando um protesto pacífico de indígenas maia k'iche contra a alta das tarifas
elétricas e a instalação de uma hidrelétrica foi brutalmente reprimido por
militares, com um saldo de oito mortos e mais de trinta feridos a bala.
Este governo não quer entender que já não pode continuar violando o Convênio
169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre os direitos dos povos
indígenas e tribais, nem pode continuar criminalizando e reprimindo os
protestos.
OM: De que forma se está criminalizando os protestos?
CB: Há um assédio e uma perseguição permanente aos líderes comunitários e às
organizações comprometidas com a luta. Além disso, aprovam-se leis que limitam
o direito ao protesto, à livre manifestação e mobilização dos setores
organizados. Se, já há algumas décadas, vêm nos acusam de guerrilheiros e
comunistas, agora os setores governamentais e empresariais nos taxam como narcotraficantes
e até terroristas. Eles demonizaram a questão e lançaram uma campanha midiática
contra o projeto de lei de Desenvolvimento Rural Integral, que simplesmente se
propõe a garantir o direito à segurança alimentar e o acesso democrático e
seguro à terra para milhares de famílias indígenas e campesinas.
OM: No caso do Engenho Chabil Utzaj, o governo deu quais respostas?
CB: Muito poucas. Comprometeu-se a entregar terras a 300 famílias por ano
durante o período 2012-2014 e não cumpriu. Já se passou quase um ano e nem a
Secretaria de Assuntos Agrários e nem o Fundo Nacional para a Paz (FONAPAZ)
puderam ou quiseram terminar o processo de avaliação e aquisição das terras
para as primeiras 300 famílias. Tampouco se cumpriu com as demais medidas
cautelares ditadas pela CIDH para garantir a vida e a integridade física dos
membros das 14 comunidades despejadas.
OM: Como está a
situação dessas famílias?
CB: Dois anos depois do despejo, a situação continua muito difícil. Muitas
famílias estão acampadas na beira da estrada, outras vivem em cabanas e o resto
está pedindo abrigo para algum familiar, amigo, ou alugando alguma casa. É uma
situação de total indefensabilidade e de aberta e brutal violação de seus
direitos fundamentais. Além disso, o Grupo Pellas ampliou a área de cultivo de
cana em pelo menos 50%, alugando terras que antes os trabalhadores rurais
arrendavam para cultivar grãos básicos. Essa situação afetou a segurança
alimentar em dois níveis: reduziu a disponibilidade de grãos básicos e elevou o
preço deles na região. É por isso que rechaçamos o fato de as monoculturas e a
produção de agrocombustíveis estejam acima do direito à alimentação.
OM: Como ficou a
política da “mão dura” e do controle dos altos índices de violência no país?
CB: Tudo ficou em um blefe, em um globo que se desinflou muito rapidamente. Os
índices de violência, corrupção e infiltração do crime organizado e do
narcotráfico permaneceram quase iguais. A “mão dura” existe apenas para
reprimir os protestos e os militares continuam desempenhando funções de
segurança pública.
OM: Houve avanços significativos quanto ao combate à impunidade e à recuperação
da memória histórica. Qual papel teve o governo nisso?
CB: Muito controverso e até tratou de retardar o processo, pretendendo negar
que houve genocídio na Guatemala. O presidente Otto Pérez emitiu um decreto
para limitar a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto a
fatos ocorridos antes de 1987 na Guatemala. Dessa maneira, fecharia a porta à
justiça para milhares de vítimas. A pressão nacional e internacional o obrigou
a desistir e a revogar o decreto. Se, na Guatemala, houve avanços importantes
quanto ao combate à impunidade e ao indiciamento dos genocidas, foi unicamente
por conta do esforço e do compromisso com a verdade dos familiares das vítimas,
das organizações comprometidas com essa luta e da atual Promotora geral Claudia
Paz y Paz.
OM: O que se espera para os próximos anos?
CB: Haverá um aumento dos conflitos, mas vamos manter nossas demandas
históricas e exigir que se resolvam os problemas estruturais que afetam o país.
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