segunda-feira, 18 de março de 2013

Novo governo da Guatemala instiga conflitos ao não cumprir compromissos, diz líder indígena




Giorgio Trucchi, Cidade da Guatemala – Opera Mundi

Para Carlos Barrientos, presidente que assumiu há um ano não pode seguir ignorando leis internacionais sobre povos tribais

No último dia 14 de janeiro, o ex-general Otto Pérez Molina completou um ano na presidência da Guatemala. Segundo o CUC (Comitê de Unidade Campesina), uma das mais importantes e históricas organizações indígenas do país, o presidente Molina ficou “muito aquém” das expectativas que gerou durante sua campanha eleitoral e ao longo dos primeiros meses de seu mandato.

Em março de 2012, milhares de pessoas se mobilizaram em uma marcha e percorreram mais de 200 quilômetros para chegar à capital guatemalteca. Homens e mulheres, jovens, adultos e idosos caminharam por nove dias, compartilhando medos, esperanças, sonhos, mas também projetos, propostas de mudanças e demandas para autoridades acostumadas a não dar ouvidos ao clamor dos povos originários.

Naquela ocasião, Daniel Pascual, coordenador geral do CUC, havia explicado que não aceitaria migalhas por parte do governo e exigiria “uma solução imediata ao conflito agrário histórico que existe na Guatemala”. Isso só seria possível com a aprovação de uma Lei de Desenvolvimento Rural Integral, que garantisse o acesso às e a legalização das terras para as famílias indígenas e campesinas, colocando um fim definitivo aos despejos forçados.

Entre outras demandas, pediam também o perdão de uma dívida agrária que somava mais de 300 milhões de quetzales (3,8 milhões de dólares), a desmilitarização das comunidades, assim como o fim à criminalização dos protestos, “respeitando o direito do povo de rechaçar a exploração mineira, as hidreelétricas, as monoculturas em grande escala e os demais megaprojetos”.

Entretanto, o governo não cumpriu nem mesmo as promessas feitas com o movimento naquela época. Em entrevista a Opera Mundi, o secretário-executivo do CUC, Carlos Barrientos, lamenta a postura do atual presidente e alerta para o risco de aumento de conflitos no país. 

Um dos locais de maiores tensão é o Engenho Chabil Utzaj, propriedade do colossal nicaraguense Grupo Pellas. Em março de 2011, um forte contingente de militares e policiais, despejou 14 comunidades indígenas do local, deixando desamparado um total de 800 famílias q'eqchi's, que durante gerações vinham habitando e trabalhando nessas terras. Até mesmo a CIDH interferiu no caso e concedeu medidas cautelares a favor das 14 comunidades desalojadas, obrigando o governo guatemalteco a garantir alimentação, saúde, moradia e segurança.

A Marcha indígena, campesina e popular conseguiu que o governo se comprometesse a utilizar recursos da Secretaria de Assuntos Agrários “para que não menos de 300 famílias afetadas por ano tivessem acesso à terra”.

No entanto, além do acordo não ter saído do papel, um novo despejo foi realizado em 13 de fevereiro. Famílias q'eqchi's na Comunidade de Agua Caliente, Panzós, que tinham plantado milho em mais de uma caballería [medida agrária utilizada na América Central] de terra, para dar espaço a novas extensões de cana de açúcar, foram retiradas de forma truculenta pelos funcionários do engenho.

Além disso, o dirigente indígena destaca a falta de beligerância governamental ante os esforços realizados pelas organizações sociais e os familiares das vítimas para “combater a impunidade e recuperar a memória histórica”, diz.

Durante o longo conflito armado interno (1960-1966), a população sofreu mais de 600 massacres, o assassinato de mais de 200 mil pessoas e o desaparecimento forçado de um milhão de guatemaltecos. O início do processo contra o ex-presidente e general aposentado Efraín Ríos Montt e outros altos quadros das Forças Armadas pelos crimes de genocídio e de lesa-humanidade cometidos durante seu mandato (1982-1983) “foi possível unicamente graças ao esforço dos familiares e da promotoria”, afirma Barrientos.

Leia a entrevisa na íntegra:

Opera Mundi: Como o senhor avalia o desempenho do governo do presidente Otto Pérez Molina?

Carlos Barrientos: No início da marcha, apresentamos nossas demandas históricas, que têm a ver com a resolução do conflito agrário, com frear o avanço do modelo extrativista, das hidrelétricas e a expansão das monoculturas, assim como deter a criminalização dos protestos, a perseguição das comunidades, e a aprovação de algumas leis de benefício social. Lamentavelmente, o governo continua com muitas promessas e compromissos não cumpridos, resolvendo apenas em parte a questão do perdão da dívida agrária com o Fundo de Terras (Fontierras) ou Dívida Chortí.

OM: E como ficaram as outras demandas?

CB: O governo não apenas não quis assumir o compromisso de retirar o exército das zonas onde havia um forte conflito – como nos municípios de San Juan Sacatepéquez, em Santa Maria Xalapán, Sierras las Minas, Santa Cruz Barillas e em Alta Verapaz –, como inaugurou duas novas brigadas militares. Trata-se de uma escalada militarista que levou o exército a ter um orçamento quase igual ao que tinha durante o último ano do conflito bélico.

O resultado foi um aprofundamento da repressão contra as comunidades indígenas, que exigem ser consultadas antes da implementação de megaprojetos que açambarcam territórios e exploram seus recursos. Um exemplo é o estado de sítio e a repressão ocorrida em Santa Cruz Barillas ou o massacre em Totonicapán, quando um protesto pacífico de indígenas maia k'iche contra a alta das tarifas elétricas e a instalação de uma hidrelétrica foi brutalmente reprimido por militares, com um saldo de oito mortos e mais de trinta feridos a bala.

Este governo não quer entender que já não pode continuar violando o Convênio 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre os direitos dos povos indígenas e tribais, nem pode continuar criminalizando e reprimindo os protestos.

OM: De que forma se está criminalizando os protestos?

CB: Há um assédio e uma perseguição permanente aos líderes comunitários e às organizações comprometidas com a luta. Além disso, aprovam-se leis que limitam o direito ao protesto, à livre manifestação e mobilização dos setores organizados. Se, já há algumas décadas, vêm nos acusam de guerrilheiros e comunistas, agora os setores governamentais e empresariais nos taxam como narcotraficantes e até terroristas. Eles demonizaram a questão e lançaram uma campanha midiática contra o projeto de lei de Desenvolvimento Rural Integral, que simplesmente se propõe a garantir o direito à segurança alimentar e o acesso democrático e seguro à terra para milhares de famílias indígenas e campesinas.

OM: No caso do Engenho Chabil Utzaj, o governo deu quais respostas?

CB: Muito poucas. Comprometeu-se a entregar terras a 300 famílias por ano durante o período 2012-2014 e não cumpriu. Já se passou quase um ano e nem a Secretaria de Assuntos Agrários e nem o Fundo Nacional para a Paz (FONAPAZ) puderam ou quiseram terminar o processo de avaliação e aquisição das terras para as primeiras 300 famílias. Tampouco se cumpriu com as demais medidas cautelares ditadas pela CIDH para garantir a vida e a integridade física dos membros das 14 comunidades despejadas.

OM: Como está a situação dessas famílias?

CB: Dois anos depois do despejo, a situação continua muito difícil. Muitas famílias estão acampadas na beira da estrada, outras vivem em cabanas e o resto está pedindo abrigo para algum familiar, amigo, ou alugando alguma casa. É uma situação de total indefensabilidade e de aberta e brutal violação de seus direitos fundamentais. Além disso, o Grupo Pellas ampliou a área de cultivo de cana em pelo menos 50%, alugando terras que antes os trabalhadores rurais arrendavam para cultivar grãos básicos. Essa situação afetou a segurança alimentar em dois níveis: reduziu a disponibilidade de grãos básicos e elevou o preço deles na região. É por isso que rechaçamos o fato de as monoculturas e a produção de agrocombustíveis estejam acima do direito à alimentação.

OM: Como ficou a política da “mão dura” e do controle dos altos índices de violência no país?

CB: Tudo ficou em um blefe, em um globo que se desinflou muito rapidamente. Os índices de violência, corrupção e infiltração do crime organizado e do narcotráfico permaneceram quase iguais. A “mão dura” existe apenas para reprimir os protestos e os militares continuam desempenhando funções de segurança pública.

OM: Houve avanços significativos quanto ao combate à impunidade e à recuperação da memória histórica. Qual papel teve o governo nisso?

CB: Muito controverso e até tratou de retardar o processo, pretendendo negar que houve genocídio na Guatemala. O presidente Otto Pérez emitiu um decreto para limitar a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto a fatos ocorridos antes de 1987 na Guatemala. Dessa maneira, fecharia a porta à justiça para milhares de vítimas. A pressão nacional e internacional o obrigou a desistir e a revogar o decreto. Se, na Guatemala, houve avanços importantes quanto ao combate à impunidade e ao indiciamento dos genocidas, foi unicamente por conta do esforço e do compromisso com a verdade dos familiares das vítimas, das organizações comprometidas com essa luta e da atual Promotora geral Claudia Paz y Paz.

OM: O que se espera para os próximos anos?

CB: Haverá um aumento dos conflitos, mas vamos manter nossas demandas históricas e exigir que se resolvam os problemas estruturais que afetam o país.

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