sexta-feira, 7 de junho de 2013

A SOMÁLIA E OS NEGÓCIOS DA FOME

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - A fome de 2011, que afectou cerca de 3 milhões e 700 mil pessoas, deixou marcas profundas na martirizada Somália e nos países vizinhos, o Quénia e a Etiópia, onde se refugiaram os somalis das zonas afectadas.  
 
A fragilidade causada pelo desmembramento, leva a que a comunidade internacional aja no país de forma muito particular, não se preocupando em disfarçar os seus interesses próprios e tentando tirar partido da fragilidade somali. Por exemplo, a Espanha, impulsionou a operação Atalanta, oferecendo protecção militar às embarcações europeias que operam na costa da Somália, praticando políticas pesqueiras de rapina.
 
O lógico (e o bom senso a isso aconselha) seria que a comunidade internacional fomentasse uma política de recuperação e relançamento da actividade pesqueira artesanal e local, o que representaria um factor de desenvolvimento económico e social das comunidades litorais, lançando as bases contributivas para o desenvolvimento sustentável da Somália, a nível comunitário     . Esta seria, simultaneamente, uma política de combate muito mais eficaz (e menos dispendiosa) ao fenómeno da chamada “pirataria” do que todas as frotas da OTAN, ou dos BRICS, na região.
 
No entanto o factor humanitário leva-nos a esquecer que o conflicto na Somália é uma parte da vasta campanha militar do Pentágono e da OTAN, inserida na nova ordem e na necessidade de restruturar e redesenhar as periferias, de forma a diminuir custos de exploração e a aumentar os níveis de rentabilidade dos recursos naturais das regiões periféricas.
 
As intervenções militares norte-americanas (e francesas) em África reflectem-se de forma directa na Somália, vitima dos drones norte-americanos, que actuam no seu espaço aéreo, em nome do combate ao terrorismo da al-Qaeda. A presença de tropas quenianas no território somali com o objectivo de combater a Al-Shabaab, que controla amplas zonas do país, é motivo para Paris implementar os seus agentes do território, sob a capa da cooperação militar.
 
Os franceses fornecem equipamento diverso às forças quenianas que operam no Sul da Somália e enviam formadores e conselheiros para a região. Estes conselheiros e formadores têm como objectivo estabelecer uma base operacional dos serviços franceses, para suporte das acções francesas na Costa do Marfim, Guiné-Conacri e suporte de inteligência às forças francesas estacionadas no Mali, assim como desenvolveram um importante sector de apoio, de rectaguarda e background de informação, durante a invasão da Líbia.
 
Quanto aos USA armaram e financiaram, durante a administração Bush e armam e financiam, desde o início da administração Obama (primeira e segunda, ou seja durante a vigência de Hillary e agora na de Kerry) a Missão da União Africana na Somália, que tem como missão principal, proteger o incipiente e fragilizado governo somali, apoiado por Washington.
 
II - Os ataques de drones na Somália fazem parte do quotidiano da população somali e tornaram-se uma faceta da realidade do país. Claro que esta realidade transporta consigo a morte de civis inocentes e também esse factor é hoje sentido por toda a sociedade somali. Quando não são os drones norte-americanos são acidentes ocorridos com equipamento militar, ou meios aéreos militares, como o que ocorreu a 11 de Novembro do passado ano. Os norte-americanos lançaram um ataque de drones sobre a cidade de Bilis Qooqaani, a sul de Mogadíscio. A operação envolvia forças francesas e quenianas, e foi precisamente um helicóptero francês, que proporcionava cobertura aérea às forças quenianas, que se estatelou na cidade portuária de Kismayo, matando nove pessoas.
 
Quando não são os drones norte-americanos, ou os helicópteros franceses, ou a arrogância das tropas quenianas (existem relatos de atrocidades cometidas pelos quenianos e em numerosos relatórios e informes, constam abusos de diversa ordem, efectuados pelos quenianos, cujas forças não são propriamente um exemplo em disciplina), são os atentados e as acções indiscriminadas da al-Shabaab. E é neste inferno que os somalis vivem á décadas. Forças militares estrangeiras, senhores da guerra, bandos fascistoides islâmicos, bandos de narcotraficantes, redes clandestinas de tráfico de mulheres e de crianças, etc.
 
As operações militares das forças estrangeiras e os atentados da al-Shabaab tornam-se cada vez mais mortíferos e indiscriminados. Os drones norte-americanos Reapers estão baseados no aeroporto civil de Arba Minch, no sul da Etiópia. Inicialmente Washington alegava que os drones estariam desarmados e eram usados apenas em missões de vigilância. Mas as aldeias piscatórias somalis foram as primeiras a sentir na pele os misseis Hellfire, que equipam os drones, para além das bombas guiadas por satélite.
 
Por sua vez, apesar de imensas baixas e de uma evidente redução nos meios logísticos, a al-Shabaab lança poderosas contraofensivas, para além dos números atentados nas cidades. Na operação descrita acima, na qual se estatelou o helicóptero das forças francesas, morreram mais de 30 soldados quenianos, emboscados pelos combatentes islâmicos da al-Shabaab. Por outro lado é cada vez mais evidente a presença israelita, visível no suporte e formação às forças quenianas.
 
Para agravar ainda mais a situação humanitária, a escalada de violência no sul da Somália trouxe consigo uma epidemia de cólera, que incide principalmente nas regiões de Jilib Town e de Hoomboy, onde já morreram, pelos dados oficiais, cerca de 100 pessoas. Esta região do sul da Somália foi também vítima de inundações, que provocaram a destruição de milhares de habitações.
 
III - A Missão da União Africana, inicialmente composta por soldados do Burundi e do Uganda, é complementada pelas forças de defesa do Quénia e tem como missão, manter o governo federal, para além da restruturação das forças armadas somalis e da polícia. Auxiliadas por conselheiros militares norte-americanos e franceses, contam ainda com o apoio de unidades especiais dos USA, ao nível das forças armadas norte-americanas e da CIA, do suporte militar e dos serviços secretos franceses e das operações encobertas e camufladas de Israel, realizadas pela MOSSAD e pelo Shein Beith, através de empresas privadas de segurança e vigilância.
 
A al-Shabaab é um dos objectivos destas forças. Só que a al-Shabaab nasceu com o apoio dos estados do golfo, aliados dos norte-americanos, com o objectivo de preservar a influência islâmica na região. Um facto é que a al-Shabaab encontrou um terreno fértil na Somália, devido á guerra (interna e externa) que afecta o país desde a aventura de Siad Barre contra a Etiópia, nos finais da década de setenta e princípios de oitenta.
 
Siad Barre, um típico político africano, estilo rolha, daqueles que flutuam conforme as marés, decidiu, durante os primeiros ameaços da Glasnot e da Perestroika, mudar de campo. Durante a vigência no poder do partido de Siad Barre, o Partido Socialista Revolucionário (PSR), a Somália era um daqueles estados africanos que estavam ao lado do célebre campo socialista e era apontado, pelos “teóricos” do socialismo real, como um exemplo de progresso para o continente africano. Siad Barre, no entanto, zangou-se com os soviéticos e o PSR passou a receber comissões dos negócios com o Ocidente, o que revelou-se bastante mais próspero para a camada burocrática administrativa somali, que assim se lançou no campo dos negócios e na aventura da “economia de mercado”.
 
Para provar a veracidade da sua conversão aos valores da liberalização económica e assim receberem mais uns doces do Ocidente, Siad Barre e o seu governo do PSR encetaram uma aventura militar contra a Etiópia, aproveitando-se da fome que grassava naquele país (lembram-se das campanhas de Hollywood, que punham as vedetas da canção, num acto de responsabilidade social, a cantar umas lamechices e que serviram de promoção ao Bob Geldof, que foi promovido de punk a star socialmente comprometida?). O resultado desta guerra com a Etiópia foi desastroso e a Somália entrou numa espiral de violência interna.
 
O Estado (que nunca o foi fora de Mogadíscio e que assentava não no exercício do poder, mas na negociação com os grupos tribais e com os clãs) desagregou-se e o país mergulhou numa guerra civil de décadas, até os fascistas islâmicos (depois de se terem zangado com os seus antigos parceiros da CIA, por promessas não cumpridas) terem descoberto que a Somália era um terreno fértil para se desenvolverem e implementar um Estado Islâmico, ou coisa que os valha. Surge a al-Shabaab, com os seus tribunais islâmicos, que impuseram ordem no caos e ganharam, assim, a confiança de muitos somalis.
 
IV - É evidente que os somalis não têm muito em que confiar. A Missão da União Africana, os USA, os franceses, os quenianos, não são propriamente, garantias de estabilidade e de prosperidade para a Somália. Os frères africanos, se atendermos aos roubos e aos maus tratos praticados pelos mercenários burundienses, ugandeses e quenianos, não representam qualquer garantia de paz e de estabilidade. Quanto á amostra de governo, esses não são absolutamente nada confiáveis, por muito boas intenções que alguns tenham.
 
Por outro lado é difícil aos somalis confiarem no Ocidente. É que não são apenas as mortes causadas pelos drones norte-americanos, ou o conto do vigário dos “Jean Pierre” franceses, que surgem no território, como empresários, jornalistas, funcionários ou disfarçados de Médecins Sans Frontières. São também histórias como a já acima referida operação Atlanta, que foi prorrogado até Dezembro de 2014, que levam os somalis a sentirem-se desconfiados.
 
Na prorrogação, a U.E. acrescentou alguns objectivos á Atlanta, para lá daqueles da protecção aos barcos da ajuda humanitária, às embarcações pesqueiras e comerciais da U.E e ao combate á “pirataria”. Agora ficou aprovada a ampliação das zonas de operações, nas águas territoriais e nas águas interiores, ao território costeiro da Somália e ao seu espaço aéreo. Por detrás desta ampliação do raio de acção da Atlanta, está o requerimento do primeiro-ministro somali, o senhor Abdiweli, Mohamed Ali, que enviou uma carta ao Secretário-geral da ONU, o senhor Ban Ki Moon (engraçado como os rolhas se encontram, sempre flutuando á tona de água, levados por ventos, correntes e marés), solicitando a ampliação das prorrogativas e dos objectivos da missão naval.
 
E porque se deu a este trabalho o fragilizado primeiro-ministro do incipiente governo somali? Porque na região autónoma de Puntland foram descobertos grandes jazigos de petróleo. A canadiana Africa Oil descobriu reservas de 4 mil milhões de barris de crude, mas os seus estudos apontam para uns 10 mil milhões de barris, dissipados pelo território de Puntland. Isto para além dos 100 mil milhões de barris, que poderão ser extraídos na costa da Somália, nas zonas abissais do Indico.  
 
William Hague, o ministro das relações exteriores do governo de Sua Majestade, visitou de imediato Mogadíscio e levou na manga muita ajuda humanitária e assistência para a segurança. As autoridades regionais de Puntland confirmaram, pouco tempo depois, que os britânicos “assessorarão tecnicamente, para maximizar os ganhos da indústria petrolífera”.
 
A Atlanta, que subsiste do credo globalmente institucionalizado da luta contra o terrorismo, para proteger a democracia, fica, portanto, inserida nesta mais vasto projecto de rapina de recursos, “democraticamente” aprovada pelas autoridades nativas, conforme as regras neocoloniais.
 
VI - Anthony Lake, que já foi director da CIA e é actualmente uns dos manda-chuvas que dá umas sentenças nos organismos humanitários da ONU (as voltas que a vida dá), deu a conhecer numa conferência de imprensa, em Abril do ano passado, o orçamento de 2013 para apoio e ajuda aos refugiados somalis: 35 milhões de USD para alimentar durante 2013, mais de um milhão de pessoas (numero que aumenta a cada dia que passa), ou seja, menos de 10 cêntimos por dia.
 
Estou já a ouvir umas piedosas almas cristãs a dizerem que vale mais pouco do que nada, ou que é pouco, mas é de boa vontade, mas gostaria de recordar que o orçamento da ONU para as forças militares da União Africana na Somália é de 350 milhões de USD, quase 30 milhões de USD por mês, para um numero que varia de nove mil a vinte mil soldados. Se pensarmos bem talvez haja uma razão para isso e para o Anthony Lake ter passado da CIA às instituições humanitárias internacionais.
 
É um pressuposto histórico. É que no passado, o exército norte-americano usou a táctica da fome para movimentar os índios norte-americanos para as reservas. Que foi o mesmo que fizeram nas Filipinas, no início do século XX, quando o exército norte-americano, ficou por ali uns anos e foi o mesmo método que o exército norte-americano utilizou em algumas regiões do Vietname, na década de sessenta. Sendo a intervenção estrangeira na Somália, parte integrante da estratégia da Guerra Global contra o terrorismo e sendo, nesta estratégia, a ONU um mero instrumento da Pax Americana, então estão justificados os 10 cêntimos por dia doados aos refugiados somalis.
 
E estão também justificadas as figuras como Anthony Lake, que passam de directores da CIA a directores de programas humanitários. Deve ser o novo papel das instituições da ONU: servirem para a reforma dos ex-directores da CIA, que terão assim uma velhice mais amparada e dentro da actividade a que tanto se dedicaram e que tanta adrenalina lhes proporcionou.
 
A adrenalina causada pela fome dos povos…   
 
Fontes
Washington Post, October, 27, 2012.
 

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