Rui Peralta, Luanda
I - O governo sírio
considerou os ataques aéreos israelitas em território sírio um acto de guerra
que “abriria a porta a todas as possibilidades” e o governo turco descreveu os
ataques israelitas como “inaceitáveis”, considerando que eles eram uma
“oportunidade de ouro” para Bashar al-Assad continuar o massacre dos seus
oponentes.
Enquanto isso os
USA rumam para a intervenção directa. O senador Democrata de New Jersey, Robert
Menéndez levou ao Senado a discussão de uma lei que permite ao governo
norte-americano fornecer armas, munições, equipamento, treino militar alimentos
e medicamentos, a bandos armados, que actuam em território sírio. A proposta
apresentada no Senado comporta mais um relatório, daqueles do costume (e que
pelo nome do senador, deve ter sido encomendado a um estúdio de novelas
mexicanas) que confirma a utilização de armas químicas por parte do governo
sírio. A proposta foi aprovada pela Comissão de Relações Exteriores do Senado,
por 15 votos a favor e 3 contra.
A gradual
movimentação dos USA para uma intervenção directa prosseguiu, com uma viagem de
John Kerry a Moscovo, onde abordou a questão síria com Putin e apresentou as
ultimas avaliações da Casa Branca. Os USA têm nos últimos tempos, de forma cada
vez mais insistente, batido na tecla da utilização de armas pelas forças
armadas sírias. As últimas derrotas militares que os bandos armados sofreram,
são motivo de preocupação para a NATO e principalmente para os USA.
A questão das armas
químicas, que os norte-americanos, a NATO e o governo turco têm utilizado como
“leitmotiv” para a invasão, não fazem muito sentido. Os sírios sempre tiveram
armas químicas, fornecidas pelos Russos, desde os tempos primórdios de Hafez
al-Assad e da URSS e nunca ninguém, no tempo da guerra-fria, fez questão em
considerar isso uma ameaça. No período pós guerra fria as preocupações com os
arsenais químicos tornaram-se uma obsessão, para o Ocidente, principalmente se
o possuidor de arsenais químicos não for um partidário da nova ordem, da boa
governação e de outros estereótipos do pensamento único.
Nunca vi nenhuma
voz oficial do Ocidente preocupar-se com o arsenal químico de Israel (que é tão
legitimo como outro qualquer, mas que é utilizado contra os palestinianos e que
foi utilizado no Líbano) ou da Turquia (que é utilizado contra os curdos), ou
dos países membros da OTAN, por exemplo. Mas se esses arsenais estiverem na
posse de países considerados “non grata” a coisa complica. As armas químicas
são tão imorais, amorais e morais, como qualquer outra, se a questão for ética.
São tão legítimas ou ilegítimas, como qualquer outra, se a questão for de
legitimidade. Não deixam de ser mais legítimas ou morais, se forem utilizadas
ou estiverem em posse de A, B, ou C. O problema, seja ele ético ou de Direito,
não incide sobre as armas em si mas sim sobre a sua utilização.
E neste aspecto,
moralidade á parte, a Síria não tem necessidade de desperdiçar o seu arsenal
químico, atendendo á sua capacidade militar aérea (os MIG são muito mais
destrutivos do que as armas químicas) e á sua bem equipada artilharia (que tem
um poder de fogo considerável e que por várias vezes foi utilizada pelas forças
armadas sírias, no seu próprio território). Os oficiais sírios sabem muito bem
que estão com os olhos do mundo postos nas suas movimentações e na utilização
da sua capacidade logística. Não vão criar um precedente grave (sabendo que o
Ocidente usou esse argumento no Iraque, por exemplo) e abrirem um flanco que
justifique a invasão do seu território por parte da OTAN, dos turcos e dos
USA.
As “preocupações”
norte-americanas (e israelitas) recaem agora sobre a eventualidade deste
arsenal cair nas “mãos erradas”: do Hamas, do Hezbollah, ou, na hipótese de uma
debandada do regime sírio, caírem nas mãos dos bandos próximos á Al Qaeda, como
a al-Nusra. Ora, se o discurso oficial norte-americano e sionista temem que o
arsenal químico sírio caia nas “mãos erradas” é porque neste momento está nas
mãos certas, ou pelo menos não está nas “mãos erradas”. Os arenais estão na
posse de quem devem de estar que é o Estado, neste caso o Estado Sírio e por aí
devem de ficar, independentemente se Bashar fica ou sai, se o actual quadro de
regime se mantém ou não. O fundamental é que as instituições permaneçam, para
que os tais arsenais não caiam nas “mãos erradas”.
Para que isso
aconteça, os USA e aliados, não podem usar a política de terra-queimada, que
usaram no Iraque, no Afeganistão e na Líbia (e que, através dos seus aliados
franceses, estão a usar no Mali). Porque se as estruturas institucionais
ficarem destruídas e o Estado entregue aos bandos, ou a políticos oportunistas
que partem de situações fragilizadas e que não estão em posição de força para
adquirir directamente o poder, sendo obrigados ao compromisso com os bandos ou
a permanecerem debaixo da sombrinha do Ocidente (o que não é confortável, pois
para o Ocidente a destruição é o principal, ou seja os objectivos são atingidos
com altos níveis de destruição, sendo que a reconstrução não é um objectivo,
mas apenas uma forma de subvencionar as economias ocidentais), então as armas,
inevitavelmente, vão parar às “mãos erradas”.
II - Foi com base
em inquéritos e relatórios da Médecins Sans Frontières e do Comité
Internacional da Cruz Vermelha – ICRC, que Israel justificou os seus ataques,
num discurso absurdo, quase dadaísta, em que ficamos a saber que existem
provas, possíveis provas, que a Síria talvez tenha usado, ou possa ter usado,
mas que deve ter usado, pois está em condições de usar e que já utilizou armas
químicas. Depois desse teatro do absurdo, que foram as justificações
israelitas, assentes em inquéritos onde se concluía que sim, não e talvez,
alguém começou a falar em gás sarin e John Kerry aparece a disser que Assad
usou armas químicas. Obama falou que pensava, que acreditava, que talvez Assad
usasse, talvez no futuro venha a usar e que é necessário prevenir.
Mas antes do dia
terminar, Obama lá admitiu que é necessário ter provas, ou seja, que ainda não
havia provas. Mas para que o condimento não falte, surge dias depois Carla Del
Ponte (com o seu quê de sensual, que ninguém sabe onde, mas que anda por ali)
dizendo que parece, que talvez, os bandos armados tenham usado armas químicas.
Não existem provas.
Os Israelita não apareceram qualquer prova, Os norte-americanos não têm provas
e a ONU não tem qualquer prova sobre a utilização de armas químicas por parte
dos bandos armados estrangeiros na Síria, ou do governo. Como não há provas e
enquanto não aparecem (se aparecerem), aponta-se o dedo ao Irão.
Quando Obama estava
na Costa Rica, falou sobre os ataques aéreos israelitas, dizendo que sim, que
os israelitas tinham toda a razão em impedir o abastecimento sírio de armas ao
Hezbollah. Foi, portanto, para Obama e para a Casa Branca, uma questão de
autodefesa, legitima. É claro que se fosse ao contrário, se fosse a Síria a
tacar Israel, por considerar-se ameaçada pelos misseis estacionados no Negueve,
aí já não era uma questão de autodefesa, mas sim uma agressão e a Síria
acabaria por cair sob o peso das bombas aliadas.
Uma das
preocupações dos norte-americanos e israelitas, para além das armas químicas, é
o míssil Fateh-110, testado pelo Irão, no ano 2002. Os sírios são acusados de
estarem a fornecer estes misseis ao Hezbollah, para que não fiquem em posse dos
rebeldes quando estes entrarem em Damasco. É uma história cheia de
incongruências. Mas pensemos um pouco. Por que razão o exercito sírio iria doar
o Fateh-110, que até tem sido utilizado pelas Força Armadas Sírias no combate
aos bandos armados e na libertação das áreas tomadas de assalto pelas forças
mercenárias? Porque iriam os sírios embarcar os misseis para o Hezbollah no
Líbano? E se assim fosse, onde é que o
Hezbollah escondeu os misseis? Nas marchas e paradas militares do Hezbollah,
não são vistos Fateh-110, preferindo o Hezbollah, aparentemente, misseis mais
recentes e com maior raio de alcance e precisão. Até porque o Hezbollah se
quisesse misseis Fateh-110, teria o quanto quisesse a partir do Irão, sem
necessitar do papel da Síria.
III - Na Síria, o
governo decidiu integrar as milícias do Partido Baas (o principal partido da
frente governamental), nas forças armadas, devidamente uniformizados e com
salário. As shabiba (fantasmas), como eram conhecidas estas milícias, foram
acusadas, em diversas ocasiões, de atrocidades e crimes. Com esta medida, o
governo sírio tenta assumir o controlo sobre os grupos armados de apoiantes
governamentais, inserindo-os no quadro legal institucional.
Sobre este assunto,
os órgãos de propaganda do ocidente, disfarçados de meios de comunicação
social, não fizeram qualquer referência. Nem tampouco às palavras do ministro
sírio do Exterior, Faisal Mekdad, logo após os ataques israelitas. Disse o
ministro sírio, resumindo a posição oficial, que “todas as opções estão na
mesa”. É evidente que isto é um cliché, daqueles que são usados para fazer
bluff. Um facto é que os sírios sabem muito bem que não estão em posição de
responder aos israelitas, de abrirem mais uma frente declarada.
Vejamos as coisas
deste modo: a força aérea síria utiliza os seus MIG-29 contra as forças
mercenárias, que ocupam cidades, vilas e aldeias. Utilizam-nos pela seu poder
de fogo, pela sua versatilidade, ou seja, usam o MIG-29, pela sua capacidade
destrutiva (mata que se farta, conforme rezava um antigo anuncio a uma marca de
pesticidas). No entanto esta maravilha da tecnologia bélica, não consegue
derrubar os caças israelitas, impedindo a violação da sua própria soberania. A
resposta síria reside neste facto. Esta é a primeira opção que está na mesa:
não atacar Israel, não reagir às provocações sionistas.
Este tipo de
análise não interessa aos órgãos de propaganda e os factos são apresentados á
opinião pública ocidental (e não só) como se os sírios, malvados e traiçoeiros,
fossem entrar numa fase aberta de olho por olho, dente por dente. E então aí
estariam os israelitas (e os USA, e a OTAN e a Turquia), em prontidão, para
lhes tirar os olhos e os dentes, um por um. A preguiça mental tomou conta dos
órgãos de propaganda e dos serviços de inteligência. O pensamento único, a
alienação mercantil que tomou conta da vida mental dos Homens, está a atingir o
seu objectivo: a transformação da sociedade humana num vasto território habitado
por mentecaptos.
Repare-se, por
exemplo, na tal proposta de lei do Menéndez de New Jersey. Os USA ficam
habilitados a fornecer armas, instrução militar, equipamentos, etc., aos grupos
sírios. A lição afegã não foi apreendida pelos USA. Os grupos afegãos (entre
eles o de Osama Bin Laden) receberam toneladas de armamento, munições,
equipamento e treino, foram transformados em “combatentes da liberdade”
(conforme os designava a CIA e a administração Reagan). O resultado foi visível
algum tempo depois, com a Al Qaeda.
Na Síria existem
imensos grupos armados, bandos, do mesmo tipo dos grupos afegãos. Enquanto o
governo sírio teve o cuidado de inserir as milícias do Baas, nas suas forças de
defesa, a oposição síria não tem a mesma capacidade, nem a mesma autoridade sob
os grupos oposicionistas e não consegue controlar os bandos de assassinos que
pululam em torno do Conselho Nacional Sírio. A Frente al-Nusra, por exemplo, é
um braço da Al-Qaeda. Vão eles gozar do apoio norte-americano? O problema é que
já usufruem desse apoio, não directamente dos USA (como propõe o Menéndez de
New Jersey), mas através da Turquia e dos estados do golfo.
Os franceses
justificam a sua actuação no Mali de diversas formas, sendo a mais corrente a
de que o Mali é um centro da Al-Qaeda em África. Só que os seus aliados em
Londres e Washington, quando fazem a tradução de francês para inglês, traduzem
o Mali por Síria. Com a lei Menéndez, os USA irão apoiar a Al-Qaeda em Damasco
enquanto no Mali os franceses tentam liquidar as eventuais estruturas da
Al-Qaeda. Contrassensos…
Mas os israelitas
continuam preocupados com o Hezbollah e agora fingem estar preocupados com uma
eventual reacção síria. Fingem estar, mas não estão, porque os israelitas sabem
que os sírios não irão reagir, que este não é o momento de eles reagirem. De
qualquer forma os israelitas fazem teatro, quando, por exemplo, Netanyahu
viajou a Moscovo, tentando impedir a venda á Síria dos misseis S-300, uma
versão russa do Patriot. Nada se sabe sobre o encontro, a não ser uma
advertência de Putin, para que os ataques israelitas á Síria não se repitam.
IV - Na história
das provas, o primeiro-ministro turco, Erdogan, foi apanhado de surpresa pela
diplomacia da Casa Branca. Visitou Obama, que o recebeu com pompa e circunstância
(coisa que os governantes otomanos adoram. “Chama-me doutor que eu gosto”),
levando na mala dois argumentos que - pensava o turco – iriam fazer com que os
USA entrassem de cabeça na invasão á Síria. Os dois argumentos turcos eram o
atentado em Reyhanli e supostas provas de utilização de armas químicas por
parte de Assad.
De forma polida,
Obama, ouvia Erdogan, enquanto olhava longínquo, para a Rússia. Depois de
Erdogan ter falado, Obama referiu que “não há fórmulas mágicas para a Síria”,
insistindo na “mobilização da comunidade internacional”. Estes e outros polidos
argumentos, foram um banho de água fria para Erdogan (habituado aos banhos
turcos) e sem dúvida que, apesar da firmeza da sua aliança na OTAN, as relações
USA-Turquia, resfriaram na frente síria.
O conflito sírio já
gerou cerca de 400 mil refugiados na Turquia, que acolhe os refugiados sírios,
enquanto ajuda os grupos oposicionistas e os bandos armados, que operam na
fronteira. O atentado de Reyhanli (duas explosões com um intervalo de meia-hora,
causadas por mil quilos de TNT, colocados em duas carrinhas), que eliminou 51
pessoas, serviu para Ancara falar alto e grosso, acusando Damasco de estar por
detrás do atentado. Mas os turcos não calendarizam devidamente o momento.
O atentado ocorreu num período em que os USA
negoceiam com a Rússia a realização de uma cimeira internacional, cujo
objectivo seja negociar uma transição para a Síria. As pressões turcas chegaram
em momento inoportuno e foram, delicadamente, ignorados por Washington e Moscovo.
Para agravar a inoportunidade turca, a comunicação social de Ancara observou
que o atentado foi efectuado por grupos oposicionistas sírios, para fortalecer
a posição de Erdogan e obrigar os USA a intervir de forma directa, ou pelo
menos, criar uma zona de exclusão aérea sobre a Síria.
Tirando o facto
deste atentado ter provocado a fuga de centenas de refugiados sírios, que
receavam represálias da população turca, Erdogan não ganhou mais nada com o
ocorrido, a não ser o tal banho de água fria quando foi recebido na Casa
Branca. De nada serviram também os pedidos do primeiro-ministro turco para que
Washington tome uma atitude mais dura na questão síria. Ainda puxou da manga
(os governantes otomanos sempre se rodearam das artes mágicas) pelo uso das
armas químicas por parte de Assad, mas Obama foi irredutível com as provas, por
enquanto (será que estão a fabricar provas credíveis?)
Seja como for os
turcos estão dispostos a participar numa cimeira internacional sobre a Síria,
anunciada para Junho. Mas a posição turca é assaz interessante. Dizem os
responsáveis turcos que na cimeira internacional, onde participarão governo
sírio e oposição, Assad deve declarar que cede os seus poderes ao governo de
transição. Portanto a Turquia vai para a cimeira internacional, mas já decidiu
a agenda. É uma posição otomana, sem dúvida…Os sultões otomanos decidem o que
os outros devem fazer, como se a Síria fosse uma província do império otomano.
Alguém devia chamar os responsáveis turcos á atenção. Habituaram-se a
espezinhar povos. Foram os arménios, foram os curdos e agora? Será que querem
espezinhar os sírios?
(continua)
Fontes
Prieto, Mónica G. http://www.cuartopoder.es/elfarodeoriente/el-contagio-sirio-en-turquia-de-la-mano-de-un-defensor-de-la-limpieza-sectaria/4494
Kayleh, Salama http://www.blogger.com/profile/13846965362462065292
Van Auken, Bill http://www.globalresearch.ca/behind-syria-peace-talks-us-prepares-regional-war/5336100
The Guardian,
April, 6, 2013
Washington Post,
May, 11, 2013.
Sem comentários:
Enviar um comentário