terça-feira, 4 de junho de 2013

COMO SOLETRAR DÁ-ME ASCO, OU OS NOVOS CONTOS DAS MIL E UMA NOITES (1)

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - O governo sírio considerou os ataques aéreos israelitas em território sírio um acto de guerra que “abriria a porta a todas as possibilidades” e o governo turco descreveu os ataques israelitas como “inaceitáveis”, considerando que eles eram uma “oportunidade de ouro” para Bashar al-Assad continuar o massacre dos seus oponentes.
 
Enquanto isso os USA rumam para a intervenção directa. O senador Democrata de New Jersey, Robert Menéndez levou ao Senado a discussão de uma lei que permite ao governo norte-americano fornecer armas, munições, equipamento, treino militar alimentos e medicamentos, a bandos armados, que actuam em território sírio. A proposta apresentada no Senado comporta mais um relatório, daqueles do costume (e que pelo nome do senador, deve ter sido encomendado a um estúdio de novelas mexicanas) que confirma a utilização de armas químicas por parte do governo sírio. A proposta foi aprovada pela Comissão de Relações Exteriores do Senado, por 15 votos a favor e 3 contra.  
 
A gradual movimentação dos USA para uma intervenção directa prosseguiu, com uma viagem de John Kerry a Moscovo, onde abordou a questão síria com Putin e apresentou as ultimas avaliações da Casa Branca. Os USA têm nos últimos tempos, de forma cada vez mais insistente, batido na tecla da utilização de armas pelas forças armadas sírias. As últimas derrotas militares que os bandos armados sofreram, são motivo de preocupação para a NATO e principalmente para os USA.
 
A questão das armas químicas, que os norte-americanos, a NATO e o governo turco têm utilizado como “leitmotiv” para a invasão, não fazem muito sentido. Os sírios sempre tiveram armas químicas, fornecidas pelos Russos, desde os tempos primórdios de Hafez al-Assad e da URSS e nunca ninguém, no tempo da guerra-fria, fez questão em considerar isso uma ameaça. No período pós guerra fria as preocupações com os arsenais químicos tornaram-se uma obsessão, para o Ocidente, principalmente se o possuidor de arsenais químicos não for um partidário da nova ordem, da boa governação e de outros estereótipos do pensamento único.
 
Nunca vi nenhuma voz oficial do Ocidente preocupar-se com o arsenal químico de Israel (que é tão legitimo como outro qualquer, mas que é utilizado contra os palestinianos e que foi utilizado no Líbano) ou da Turquia (que é utilizado contra os curdos), ou dos países membros da OTAN, por exemplo. Mas se esses arsenais estiverem na posse de países considerados “non grata” a coisa complica. As armas químicas são tão imorais, amorais e morais, como qualquer outra, se a questão for ética. São tão legítimas ou ilegítimas, como qualquer outra, se a questão for de legitimidade. Não deixam de ser mais legítimas ou morais, se forem utilizadas ou estiverem em posse de A, B, ou C. O problema, seja ele ético ou de Direito, não incide sobre as armas em si mas sim sobre a sua utilização.
 
E neste aspecto, moralidade á parte, a Síria não tem necessidade de desperdiçar o seu arsenal químico, atendendo á sua capacidade militar aérea (os MIG são muito mais destrutivos do que as armas químicas) e á sua bem equipada artilharia (que tem um poder de fogo considerável e que por várias vezes foi utilizada pelas forças armadas sírias, no seu próprio território). Os oficiais sírios sabem muito bem que estão com os olhos do mundo postos nas suas movimentações e na utilização da sua capacidade logística. Não vão criar um precedente grave (sabendo que o Ocidente usou esse argumento no Iraque, por exemplo) e abrirem um flanco que justifique a invasão do seu território por parte da OTAN, dos turcos e dos USA. 
 
As “preocupações” norte-americanas (e israelitas) recaem agora sobre a eventualidade deste arsenal cair nas “mãos erradas”: do Hamas, do Hezbollah, ou, na hipótese de uma debandada do regime sírio, caírem nas mãos dos bandos próximos á Al Qaeda, como a al-Nusra. Ora, se o discurso oficial norte-americano e sionista temem que o arsenal químico sírio caia nas “mãos erradas” é porque neste momento está nas mãos certas, ou pelo menos não está nas “mãos erradas”. Os arenais estão na posse de quem devem de estar que é o Estado, neste caso o Estado Sírio e por aí devem de ficar, independentemente se Bashar fica ou sai, se o actual quadro de regime se mantém ou não. O fundamental é que as instituições permaneçam, para que os tais arsenais não caiam nas “mãos erradas”.
 
Para que isso aconteça, os USA e aliados, não podem usar a política de terra-queimada, que usaram no Iraque, no Afeganistão e na Líbia (e que, através dos seus aliados franceses, estão a usar no Mali). Porque se as estruturas institucionais ficarem destruídas e o Estado entregue aos bandos, ou a políticos oportunistas que partem de situações fragilizadas e que não estão em posição de força para adquirir directamente o poder, sendo obrigados ao compromisso com os bandos ou a permanecerem debaixo da sombrinha do Ocidente (o que não é confortável, pois para o Ocidente a destruição é o principal, ou seja os objectivos são atingidos com altos níveis de destruição, sendo que a reconstrução não é um objectivo, mas apenas uma forma de subvencionar as economias ocidentais), então as armas, inevitavelmente, vão parar às “mãos erradas”.     
 
II - Foi com base em inquéritos e relatórios da Médecins Sans Frontières e do Comité Internacional da Cruz Vermelha – ICRC, que Israel justificou os seus ataques, num discurso absurdo, quase dadaísta, em que ficamos a saber que existem provas, possíveis provas, que a Síria talvez tenha usado, ou possa ter usado, mas que deve ter usado, pois está em condições de usar e que já utilizou armas químicas. Depois desse teatro do absurdo, que foram as justificações israelitas, assentes em inquéritos onde se concluía que sim, não e talvez, alguém começou a falar em gás sarin e John Kerry aparece a disser que Assad usou armas químicas. Obama falou que pensava, que acreditava, que talvez Assad usasse, talvez no futuro venha a usar e que é necessário prevenir.
 
Mas antes do dia terminar, Obama lá admitiu que é necessário ter provas, ou seja, que ainda não havia provas. Mas para que o condimento não falte, surge dias depois Carla Del Ponte (com o seu quê de sensual, que ninguém sabe onde, mas que anda por ali) dizendo que parece, que talvez, os bandos armados tenham usado armas químicas.
 
Não existem provas. Os Israelita não apareceram qualquer prova, Os norte-americanos não têm provas e a ONU não tem qualquer prova sobre a utilização de armas químicas por parte dos bandos armados estrangeiros na Síria, ou do governo. Como não há provas e enquanto não aparecem (se aparecerem), aponta-se o dedo ao Irão.
 
Quando Obama estava na Costa Rica, falou sobre os ataques aéreos israelitas, dizendo que sim, que os israelitas tinham toda a razão em impedir o abastecimento sírio de armas ao Hezbollah. Foi, portanto, para Obama e para a Casa Branca, uma questão de autodefesa, legitima. É claro que se fosse ao contrário, se fosse a Síria a tacar Israel, por considerar-se ameaçada pelos misseis estacionados no Negueve, aí já não era uma questão de autodefesa, mas sim uma agressão e a Síria acabaria por cair sob o peso das bombas aliadas.                
 
Uma das preocupações dos norte-americanos e israelitas, para além das armas químicas, é o míssil Fateh-110, testado pelo Irão, no ano 2002. Os sírios são acusados de estarem a fornecer estes misseis ao Hezbollah, para que não fiquem em posse dos rebeldes quando estes entrarem em Damasco. É uma história cheia de incongruências. Mas pensemos um pouco. Por que razão o exercito sírio iria doar o Fateh-110, que até tem sido utilizado pelas Força Armadas Sírias no combate aos bandos armados e na libertação das áreas tomadas de assalto pelas forças mercenárias? Porque iriam os sírios embarcar os misseis para o Hezbollah no Líbano?    E se assim fosse, onde é que o Hezbollah escondeu os misseis? Nas marchas e paradas militares do Hezbollah, não são vistos Fateh-110, preferindo o Hezbollah, aparentemente, misseis mais recentes e com maior raio de alcance e precisão. Até porque o Hezbollah se quisesse misseis Fateh-110, teria o quanto quisesse a partir do Irão, sem necessitar do papel da Síria.        
 
III - Na Síria, o governo decidiu integrar as milícias do Partido Baas (o principal partido da frente governamental), nas forças armadas, devidamente uniformizados e com salário. As shabiba (fantasmas), como eram conhecidas estas milícias, foram acusadas, em diversas ocasiões, de atrocidades e crimes. Com esta medida, o governo sírio tenta assumir o controlo sobre os grupos armados de apoiantes governamentais, inserindo-os no quadro legal institucional.
 
Sobre este assunto, os órgãos de propaganda do ocidente, disfarçados de meios de comunicação social, não fizeram qualquer referência. Nem tampouco às palavras do ministro sírio do Exterior, Faisal Mekdad, logo após os ataques israelitas. Disse o ministro sírio, resumindo a posição oficial, que “todas as opções estão na mesa”. É evidente que isto é um cliché, daqueles que são usados para fazer bluff. Um facto é que os sírios sabem muito bem que não estão em posição de responder aos israelitas, de abrirem mais uma frente declarada.  
 
Vejamos as coisas deste modo: a força aérea síria utiliza os seus MIG-29 contra as forças mercenárias, que ocupam cidades, vilas e aldeias. Utilizam-nos pela seu poder de fogo, pela sua versatilidade, ou seja, usam o MIG-29, pela sua capacidade destrutiva (mata que se farta, conforme rezava um antigo anuncio a uma marca de pesticidas). No entanto esta maravilha da tecnologia bélica, não consegue derrubar os caças israelitas, impedindo a violação da sua própria soberania. A resposta síria reside neste facto. Esta é a primeira opção que está na mesa: não atacar Israel, não reagir às provocações sionistas.
 
Este tipo de análise não interessa aos órgãos de propaganda e os factos são apresentados á opinião pública ocidental (e não só) como se os sírios, malvados e traiçoeiros, fossem entrar numa fase aberta de olho por olho, dente por dente. E então aí estariam os israelitas (e os USA, e a OTAN e a Turquia), em prontidão, para lhes tirar os olhos e os dentes, um por um. A preguiça mental tomou conta dos órgãos de propaganda e dos serviços de inteligência. O pensamento único, a alienação mercantil que tomou conta da vida mental dos Homens, está a atingir o seu objectivo: a transformação da sociedade humana num vasto território habitado por mentecaptos.
 
Repare-se, por exemplo, na tal proposta de lei do Menéndez de New Jersey. Os USA ficam habilitados a fornecer armas, instrução militar, equipamentos, etc., aos grupos sírios. A lição afegã não foi apreendida pelos USA. Os grupos afegãos (entre eles o de Osama Bin Laden) receberam toneladas de armamento, munições, equipamento e treino, foram transformados em “combatentes da liberdade” (conforme os designava a CIA e a administração Reagan). O resultado foi visível algum tempo depois, com a Al Qaeda.
 
Na Síria existem imensos grupos armados, bandos, do mesmo tipo dos grupos afegãos. Enquanto o governo sírio teve o cuidado de inserir as milícias do Baas, nas suas forças de defesa, a oposição síria não tem a mesma capacidade, nem a mesma autoridade sob os grupos oposicionistas e não consegue controlar os bandos de assassinos que pululam em torno do Conselho Nacional Sírio. A Frente al-Nusra, por exemplo, é um braço da Al-Qaeda. Vão eles gozar do apoio norte-americano? O problema é que já usufruem desse apoio, não directamente dos USA (como propõe o Menéndez de New Jersey), mas através da Turquia e dos estados do golfo.
 
Os franceses justificam a sua actuação no Mali de diversas formas, sendo a mais corrente a de que o Mali é um centro da Al-Qaeda em África. Só que os seus aliados em Londres e Washington, quando fazem a tradução de francês para inglês, traduzem o Mali por Síria. Com a lei Menéndez, os USA irão apoiar a Al-Qaeda em Damasco enquanto no Mali os franceses tentam liquidar as eventuais estruturas da Al-Qaeda. Contrassensos…
 
Mas os israelitas continuam preocupados com o Hezbollah e agora fingem estar preocupados com uma eventual reacção síria. Fingem estar, mas não estão, porque os israelitas sabem que os sírios não irão reagir, que este não é o momento de eles reagirem. De qualquer forma os israelitas fazem teatro, quando, por exemplo, Netanyahu viajou a Moscovo, tentando impedir a venda á Síria dos misseis S-300, uma versão russa do Patriot. Nada se sabe sobre o encontro, a não ser uma advertência de Putin, para que os ataques israelitas á Síria não se repitam.
 
IV - Na história das provas, o primeiro-ministro turco, Erdogan, foi apanhado de surpresa pela diplomacia da Casa Branca. Visitou Obama, que o recebeu com pompa e circunstância (coisa que os governantes otomanos adoram. “Chama-me doutor que eu gosto”), levando na mala dois argumentos que - pensava o turco – iriam fazer com que os USA entrassem de cabeça na invasão á Síria. Os dois argumentos turcos eram o atentado em Reyhanli e supostas provas de utilização de armas químicas por parte de Assad.
 
De forma polida, Obama, ouvia Erdogan, enquanto olhava longínquo, para a Rússia. Depois de Erdogan ter falado, Obama referiu que “não há fórmulas mágicas para a Síria”, insistindo na “mobilização da comunidade internacional”. Estes e outros polidos argumentos, foram um banho de água fria para Erdogan (habituado aos banhos turcos) e sem dúvida que, apesar da firmeza da sua aliança na OTAN, as relações USA-Turquia, resfriaram na frente síria.
 
O conflito sírio já gerou cerca de 400 mil refugiados na Turquia, que acolhe os refugiados sírios, enquanto ajuda os grupos oposicionistas e os bandos armados, que operam na fronteira. O atentado de Reyhanli (duas explosões com um intervalo de meia-hora, causadas por mil quilos de TNT, colocados em duas carrinhas), que eliminou 51 pessoas, serviu para Ancara falar alto e grosso, acusando Damasco de estar por detrás do atentado. Mas os turcos não calendarizam devidamente o momento.
 
O atentado ocorreu num período em que os USA negoceiam com a Rússia a realização de uma cimeira internacional, cujo objectivo seja negociar uma transição para a Síria. As pressões turcas chegaram em momento inoportuno e foram, delicadamente, ignorados por Washington e Moscovo. Para agravar a inoportunidade turca, a comunicação social de Ancara observou que o atentado foi efectuado por grupos oposicionistas sírios, para fortalecer a posição de Erdogan e obrigar os USA a intervir de forma directa, ou pelo menos, criar uma zona de exclusão aérea sobre a Síria.
 
Tirando o facto deste atentado ter provocado a fuga de centenas de refugiados sírios, que receavam represálias da população turca, Erdogan não ganhou mais nada com o ocorrido, a não ser o tal banho de água fria quando foi recebido na Casa Branca. De nada serviram também os pedidos do primeiro-ministro turco para que Washington tome uma atitude mais dura na questão síria. Ainda puxou da manga (os governantes otomanos sempre se rodearam das artes mágicas) pelo uso das armas químicas por parte de Assad, mas Obama foi irredutível com as provas, por enquanto (será que estão a fabricar provas credíveis?)
 
Seja como for os turcos estão dispostos a participar numa cimeira internacional sobre a Síria, anunciada para Junho. Mas a posição turca é assaz interessante. Dizem os responsáveis turcos que na cimeira internacional, onde participarão governo sírio e oposição, Assad deve declarar que cede os seus poderes ao governo de transição. Portanto a Turquia vai para a cimeira internacional, mas já decidiu a agenda. É uma posição otomana, sem dúvida…Os sultões otomanos decidem o que os outros devem fazer, como se a Síria fosse uma província do império otomano. Alguém devia chamar os responsáveis turcos á atenção. Habituaram-se a espezinhar povos. Foram os arménios, foram os curdos e agora? Será que querem espezinhar os sírios?
 
(continua)
 
Fontes
The Guardian, April, 6, 2013
Washington Post, May, 11, 2013.
 

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