Urariano Mota, Recife
– Direto da Redação
Recife (PE) -
As imobiliárias, as construtoras, são irônicas e bárbaras em um só movimento
quando põem nomes nas suas armadilhas, mais conhecidas pela alcunhas de
Residenciais e Edifícios. Não têm escrúpulos nem limites. Vão de Leonardo
da Vinci, de Praia do Sol, de Costa Azul a Paraíso Tropical. Ou de Morada dos
Deuses, de Céu de Anil a Recanto das Acácias, e a tudo o quanto o cérebro do
lucro inventar. Existe toda uma poética de logro e embuste, de roubo e furto,
para enganar incautos e necessitados. Que chegam, que caem, sempre caem, pois a
carência de um lar, de uma casa, é um desejo que resiste a todas as ilusões.
O recente caso do
Conjunto Residencial Eldorado, de 14 prédios juntos no Recife, é ilustrativo
dos edifícios de nomes belos que se revelam trágicos. A começar por sua
localização. A partir do bairro onde precário se plantou houve uma primeira
vitória da imobiliária e corretores, que levaram bem na lábia os compradores
das arapucas. O Eldorado foi construído, mal e porcamente construído, como se
viu depois, em um subúrbio mais conhecido por Água Fria, mas as notícias e
moradores mais bem nascidos (pois sempre há nobres nos que se envergonham da
pobreza) teimam em chamar de Arruda, como se houvesse um salto de qualidade,
quem sabe de renascimento, do Arruda para Água Fria.
E para quê tanta
distinção, se o destino de todos nós é comum, amigos? As primeiras notícias
anunciaram que a fachada do prédio, de um só em todo o Eldorado das 14
construções de ouro, havia cedido e os moradores correram às pressas para a
rua. A desgraça veio com um estrondo, que gritou para exibir rachaduras
profundas no paraíso. Então o que era perpendicular, ou quase firme e
perpendicular à terra, ficou penso, oblíquo. O que fazer? Os técnicos da Defesa
Civil, que atuam como enfermeiros da doença avançada, avaliaram o dano e
concluíram, “sem dúvida, vai cair”. E tomaram a justa medida de providenciar
caminhões de mudanças para os que possuíam alguma família de abrigo um pouco
mais sólido.
Depois, o que
começou em um bloco de estrondo se alastrou por todo o Residencial Eldorado.
Então a Prefeitura do Recife decidiu pela retirada dos moradores de todos os
blocos dourados de Água Fria, ou do Arruda, na Rua da Regeneração (o nome é
esse mesmo), por conta do risco de desabamento de todos os prédios. Daria uma
comédia se o assunto não fosse trágico. Os administradores públicos atuam como
bombeiros sem mangueira, dotados apenas da boa vontade em conjunturas e
sociedades em fogo. Jogam água em um incêndio aqui, ele rebenta em outro. A
população pede providências. O prefeito vai à comunidade, sorri, conversa,
anota, dá ordens e sai declarando que o governo está ao lado dos sem teto,
enquanto a ganância do capital se alastra e prospera. Mas o governo está a seu
lado.
Então vem o mais
comovente. Os ex-donos de apartamentos comprados em sacrificadas economias, que
decoraram suas paredes com quadros, cores e pensavam ali estar em morada que
atravessasse os tempos como herança para os filhos e netos, e que, por outro
lado, julgavam-se diferentes dos que nada têm lá nas favelas, então vem o mais
deprimente, para usar a palavra mais precisa. Os ex-donos fazem protestos com
apitos e cartazes cuja maior reivindicação é um auxílio-aluguel. Ou
auxílio-moradia. Pois estão sem nada, mas ainda têm direitos, pelo menos o da
miséria de uma ajuda municipal. E a construtora, a criminosa? Dizem que ela
faliu, deixando como legado a falência para os que ansiavam morar nos
apartamentos do Eldorado.
No final, houve à
sua maneira o que descobri no romance O filho renegado de Deus:
“Ali, a casa
possuía um valor de vida, sonho e morte.... É de se notar que havia uma
profunda e indecifrável ironia nos nomes que em tudo cercavam aquela gente. A
fieira, ou enfileirado correr de quartos, era chamada de Vila Alegria. A
estreita faixa onde passavam pessoas em fila, o beco, era Rua do Éden, que de
um lado saía para a Rua Esperança.... No entanto, esse aluvião irônico, tamanha
era a sua riqueza e impacto, não era então percebido. Talvez como um choque,
uma descarga de altíssima voltagem, que abalasse e ferisse tão rápido e forte,
que deixava a impressão de destruir sem dor a vida. Assim, mesmo que corra o
risco de não ser maturado, digerido no espírito de quem lê estas linhas,
acrescento que havia em torno da Vila Alegria uma Vila Felicidade, uma Rua
Alegre, mais a Rua das Moças, e uma Rua dos Sete Pecados, que não distava da
Rua da Regeneração”.
*É pernambucano,
jornalista e autor dos livros "Soledad no Recife" e “O filho renegado
de Deus”. O primeiro, recria os últimos dias de Soledad Barrett. O segundo, seu
mais novo romance, é uma longa oração de amor para as mulheres vítimas da
opressão de classes no Brasil.
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