sexta-feira, 21 de junho de 2013

O Mali, África e o Mundo. As perspectivas de uma Nova Cultura Politica (II)



Rui Peralta, Luanda (ver parte I do texto)

V - A guerra transformou o Norte do Mali num estranho universo concentracionário, cujo cenário dantesco é composto por histórias de lapidações, amputações, violações de mulheres e crianças, fuzilamentos e enforcamentos, para além das torturas, miséria, fome e mais de oitocentos mil desalojados. As siglas da guerra, aqui, são diversas: MNLA, MUJAO, BOCORAM, AQMI, ANSARDINE, CEFAO, UA, U.E., USA, ONU…Para além das siglas a guerra, no Mali, também tem vários nomes: França, terrorismo, sharia, Ocidente…Os mercenários que são arrastados pela guerra, vêm do Paquistão, do Iémen, do Afeganistão, de Marrocos, da Argélia, da Tunísia, da Líbia, do Egipto, dos estados do golfo, da Bósnia, da Nigéria, da França…Exceptuando os franceses que são os que vêm pela comunidade internacional, os mercenários “antiterroristas”, os restantes mercenários são todos “terroristas”.

O problema é que os mercenários “antiterroristas”, que vão “implementar a paz” no Mali, são cada vez mais e começaram, também eles a ter diversas proveniências: para além dos dois mil e quinhentos franceses estão mais seis mil da CEFAO e da UA, e vão chegar por aí uns doze mil, conhecidos por capacetes azuis, colocados pela ONU. Fica, desta forma, o Mali uma terra esventrada, com os recursos expostos: uranio, petróleo, gás, diamantes, algodão, ouro e bauxite, prontos para a recolonização, que vai ter o nome de reconstrução, sob a égide paternal e do olhar atento e austero do “pére français”, já não se realiza como um colono, mas como um novo tipo de colono, um “amigo” que assumirá o “fardo” de levar a cabo mais uma árdua tarefa de exploração, fertilizando o solo mártir africano, com sangue mártir de africanos. 

A nova táctica dos neocolonialistas é o humanitarismo, que utiliza uma miríade de ONG, compostas por voluntaristas, todos “altamente especializados”, que vão colocar o seu saber ao serviço dos “desgraçados”, ensinar-lhes os princípios da “boa governação” e do “empreendedorismo”, portadores da “meritocracia” e de outras armadilhas do Ocidente a que chamam “valores ocidentais”. O novo colono já não é portador do chicote e já não reside no território. Transita, sai e entra, faz relatórios, tem o comportamento de funcionário da multinacional, mesmo que não trabalhe em nenhuma e seja um empreiteiro. Tem várias faces e diversos rostos, umas vezes veste a capa de expatriado, outras de humanitário, outras de empresário ou de investidor estrangeiro.

VI - O Mali situa-se numa zona estratégica para o Ocidente. Os franceses tentam a todo o custo estabelecer uma base militar em Tessalit, no norte do país, para aumentar o seu controlo sobre o Sahel, em coordenação com os seus parceiros da U.E e dos seus aliados dos USA, todos mancomunados na NATO. Quando atacaram a Líbia, as testas dos malianos franziram e os seus rostos demonstraram preocupação. Os laços entre a Líbia e o Mali perdem-se na Historia, são compostos por rotas comerciais, rotas de livros, rotas de culturas…Os tuaregues cruzavam as fronteiras, repetindo os mesmos trilhos durante seculos. A guarda presidencial de Kadhafi era composta, em mais de 80%, por tuaregues, berberes e árabes de origem maliana. Não foi ao acaso que a União Africana (UA) escolheu para mediador do conflito o presidente do Mali, Amadou Toumani Toure.
      
Após o assassinato de Kadhafi, a 20 de Outubro de 2011, os tuaregues malianos que apoiavam a Líbia, chegaram a um acordo com os franceses, o que lhes permitiu regressar, em segurança, ao Mali. Saíram de Trípoli, atravessaram o Níger, sem ninguém os desarmar, sob a protecção da França e retornaram ao Mali, entrando em Novembro de 2011, onde os seus representantes foram recebidos oficialmente, no palácio presidencial, recebendo apoio politico e 50 milhões de francos CFA (cerca de cem mil USD).

Os ataques ao exército maliano começaram em Janeiro de 2012 e um ano depois a revolta tuaregue era generalizada e o Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA), controlava algumas áreas a norte do país. Depois rapidamente a situação descontrola-se e o MNLA ocupa Tombuctu, Gao e Kidal. Alguns dos ministros tuaregues, que compõem o governo em Bamaco, fogem para Azawad. A aliança com os franceses, não ofereceu apenas segurança, durante a retirada dos tuaregues de Trípoli para Bamaco. Estes acordos permitiram aos tuaregues reivindicarem os seus direitos históricos, muitas vezes esquecidos em Bamaco e sempre relembrados através de revoltas acalmadas por promessas nunca cumpridas.

Com a revolta tuaregue instalada no norte do Mali, os bandos fascistoides islâmicos (activados na Líbia pela OTAN, uma velha história que provem desde os tempos da guerra no Afeganistão, quando a CIA os criou para combater os soviéticos) encontraram terreno fértil para a sua instalação. Quando o apoio da França aos tuaregues terminou, por pressão dos USA, que viam os seus interesses no Sahel ameaçados pela incógnita tuaregue, o MNLA perdeu a sua posição para os bandos fascistas, enquanto um grupo de tuaregues apoiados pelos USA, o ANSARDINE (que significa Luta pela Grandeza do Islão) ganha espaço e importância no terreno. O ANSARDINE foi criado através das células residuais da CIA na Argélia, razão pela qual muitos dos seus combatentes são de origem argelina. 
    
Também os USA, tal como a França e pelos mesmos motivos, pretendem criar uma base militar em Tessalit, uma localidade do norte do Mali, na província de Kidal.

Os governos do Mali nunca aceitaram as propostas norte-americanas e francesas para o estabelecimento de bases militares em Tessalit e Sevare. Na instabilidade politica de 1991, por exemplo - que levou á queda do presidente Moussa Traore - para além dos factores internos e da dinâmica social e politica maliana, a recusa do governo maliano em aceitar as bases militares, foi de peso, embora secundário. Levou, pelo menos, a que franceses e norte-americanos assobiassem para o ar, como se estivessem desatentos, enquanto Moussa Traore era deposto.

Em 2012, tal como em 1991, os factores da dinâmica politica e social interna foram primordiais na queda de Moussa Traore, mas foram os factores externos que permitiram os meios necessários a que a revolta tuaregue conduzisse á queda de Amadou Toumani Toure, em 22 de Março de 2012, substituído no poder por uma Junta Militar, que se propunha organizar as Forças Armadas e restruturar o Estado, com objectivos que levariam ao reforço da soberania popular e nacional. Perante o golpe de estado militar, a CEDAO impõe o bloqueio politico e económico e a Junta Militar acaba por ceder, abandonando o seu programa inicial, patriótico, sucumbindo às pressões. Ficaram, assim, adiadas, uma vez mais, as reformas necessárias para que o Mali reforçasse a soberania popular e nacional, restruturando as instituições, o aparelho de estado e implementasse mecanismos democráticos e participativos.

A importância de uma base militar no Mali é enorme, no cenário geopolítico do Sahel. A posição do Mali é de extrema importância, a começar pelas suas fronteiras com sete países: Costa do Marfim, Burkina Faso, Argélia, Senegal, Mauritânia, Níger e Guiné-Conacri. A potência que ali instalar a sua base fica com um papel preponderante no Magreb e na África Ocidental. Se a esse factor geopolítico forem associados os factores geoeconómicos (o controlo dos recursos malianos, por exemplo) compreenderemos melhor a necessidade do Ocidente em criar instabilidade no Mali e porque é que armas da NATO andam nas mãos dos bandos fascistoides.

A ocupação do Mali inicia-se com a destruição da Líbia. A Líbia e o Mali eram países que compartilhavam uma visão da Unidade Africana e da integração do continente, até por razões e condicionantes históricas e culturais. O Mali foi uma nação que sentiu a necessidade de integração desde o início da sua independência, não só porque historicamente sempre esteve integrado, através de várias foras políticas, com os seus vizinhos, como nos primeiros anos da independência política, viveu federado com o Senegal. A ruptura dessa federação criou imensas dificuldades á nação maliana, um país interior, sem acesso ao mar e completamente dependente dos acordos com os seus vizinhos, para exportar e importar mercadorias. Cedo os malianos aprenderam o valor da integração económica e da sua importância para o desenvolvimento.

Mas tudo começa com a Primavera Árabe, uma ferramenta indispensável para redesenhar mapas. Também nas Primaveras os factores determinantes foram os factores centrífugos da dinâmica social e politica interna de cada um dos países onde ocorreram mas também aí foram os factores externos (o cumprimento dos objectivos geopolíticos e geoeconómicos do ocidente) que permitiram às forças surgidas dessa dinâmica a sua emersão e ascensão ao poder. O objectivo das Primaveras, no Magreb, atingiu a segunda fase com a destruição da Líbia. As movimentações na Tunísia e no Egipto - necessárias, porque as respectivas válvulas de pressão já não aguentavam mais - serviram perfeitamente os objectivos do Ocidente, que ficaram desta forma em posição de cercar e eliminar o principal obstáculo em África e na Liga Árabe: a Líbia.

Por isso enquanto Ben Ali, na Tunísia e Mubarak no Egipto foram aprisionados e julgados, Kadhafi foi assassinado. Esta é uma estratégia que “apaga” os países considerados “inimigos”, tal como acontece hoje com a Síria e qua já foi ensaiada e optimizada dezena de vezes. Lembram-se do Ceaucescu, o sapateiro rezingão e esclerótico de Bucareste? Foi executado com a Roménia posta a ferro e fogo. Saddam Hussein, no Iraque, a mesma situação. Estas execuções são um salto qualitativo nas estratégias de domínio.

E são as novas estratégias de domínio, que escondem á opinião pública ocidental, as realidades das sociedades e da política africana e árabe. A comunicação social europeia, por exemplo, segue a preceito o cenário do coitadinho africano, vítima de regimes corruptos e do árabe terrorista, que queima as bandeiras dos países “civilizados” e bate nas mulheres, que andam todas tapadas. Esta imagem é essencial, para que as elites europeias prossigam as suas políticas de rapina de recursos, sem que a opinião pública europeia se interrogue sobre o que andam a fazer os seus líderes em matéria de política externa.

Os cidadãos europeus desconheciam que na Líbia a educação era pública e gratuita, assim como a saúde, que a electricidade era gratuita e que o combustível era barato, para que a alimentação também o fosse. Desconheciam por completo a política social do governo Líbio e apenas conheciam os fenómenos de corrupção e as diatribes de Kadhafi, Nunca tiveram a percepção da importância que a Líbia tinha para os países vizinhos, nem estavam a par do papel da Líbia na União Africana.             
A Líbia era um exemplo de soberania, perigoso para o Ocidente. E isso as elites ocidentais não perdoam.

VII - Em 1991, Demba Diallo - pan-africanista convicto e um dos participantes na fundação da OUA, em Adis Abeba – juntou-se a outros patriotas malianos na fundação da União da Forças Democráticas (UFD), criada na clandestinidade, durante a vigência da ditadura de Moussa Traore e sobreviveu às convulsões que assolaram, entretanto o Mali. Apresenta-se às eleições do próximo dia 7 de Julho, inserida numa coligação de 12 partidos políticos, associações civis, sindicais, camponesas e culturais.

A UFD representa um projecto político assente no reforço da soberania popular e da participação cidadã e procura apoios na Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba e Brasil, países recentemente visitados pelas suas delegações, considerados pela UFD, exemplos de transformação (A ligação da UFD á América Latina é profunda. Muitos dos seus militantes estudaram em Cuba e a UFD sempre seguiu com atenção o processo bolivariano, que inclusive é mencionado na apresentação das suas bases programáticas).

A existência de forças políticas democráticas, independentemente dos sectores que representem ou das divergências que sustentam, é de importância vital para a sociedade maliana, que apresenta os piores sintomas de destruturação e degradação. A busca de soluções, a participação dos cidadãos nos destinos do país, são os elementos fundamentais de reconstrução do país e o encetar de uma via de progresso e desenvolvimento social.

As soluções não passam pelos técnicos perfumados e bem-falantes do FMI, do Banco Mundial ou das falsas intenções dos humanitaristas de ocasião. As soluções passam por projectos políticos democráticos, que assegurem a execução da soberania popular e reforcem a soberania nacional, para que o Mali possa ser integrado nos fóruns mundiais, na economia-mundo e nas instancias globais, não como um pedinte, mas como um contribuinte, não como uma nação periférica, mas como uma nação independente, consciente da sua periferia e do seu papel na sendo do desenvolvimento.

VIII - As imagens de África divulgadas pela propaganda das elites ocidentais, nas suas sociedades apresentam uma África do horror, um continente onde estão generalizados factores como a fome, a corrupção, as epidemias, o totalitarismo, a violência, etc. Gostam, particularmente, da imagem de uma África atrasada, onde reina a selvajaria bárbara e a ignorância, o fanatismo religioso e a submissão da mulher, ao mesmo tempo que é a África dos recursos, o continente rico em matérias-primas naturais, mão-de-obra barata e jovem. Nas horas vagas a predileção dos fazedores de opinião é falarem sobre uma África condenada, onde as pessoas não têm vontade de mudar e de progredir. Depois para distrais as mentes, vem a África da natureza, a África diversão, a África National Geographique, a África do Rei de Espanha, cheia de mistérios, perigos, aventuras, paisagens únicas e deslumbrantes, tribos exóticas e bichos para caçar.
      
Servem estas imagens para ignorar a África real, a África Futuro, aquela que constrói o futuro no presente inóspito, aquela que dá dois pequenos passos em frente e um bem grande para trás, mas que teima, sempre, em avançar e avança pela tenacidade dos seus cidadãos. Através destas imagens o Ocidente ignora que Africa é um continente onde coexistem cinco grandes regiões, treze ecossistemas, cinquenta e quatro países, mais de seiscentas etnias, mil e setecentas línguas, uma multiplicidade de sistemas religiosos, políticos, sociais, económicos e culturais, um mosaico…. 
 
Esta realidade africana, que os meios de comunicação ocidentais, as ONG, as instituições públicas e privadas, escondem, escamoteiam, omitem e iludem, manipulam através das imagens, não pode nunca chegar ao conhecimento dos eleitores ocidentais. Neste sentido o neocolonialismo actual segue as pisadas do colonialismo, que sempre iludiu e manipulou os europeus, através da miragem africana, de figuras como a árvore das patacas, do continente negro e outras patranhas obscuras.

Desta forma, através destas imagens deturpadas e manipuladas, justifica-se tudo: a exploração dos recursos alheios, actualmente escondida sob a capa da “necessidade de ajudar os africanos” (sempre essa do “estamos aqui para ajudar”, uma típica demonstração do etnocentrismo ocidental, que sempre carregou esse “fardo”) e a necessidade histórica de converter (seja aos desígnio de deus, seja, aos mais racionalistas desígnios da actualidade, os do mercado). A “cooperação para o desenvolvimento” assume o papel de uma “missão laica” para difusão da ciência, da civilização, da democracia, dos direitos humanos, do crescimento sustentado, etc., tudo incluído numa acção missionária e evangelizadora, cujo evangelho é baseado nos mandamentos do mercado e que nos salvará a todos - pretos, brancos e mestiços, cristãos, ateus, animistas e muçulmanos - da barbárie.  

Claro que alguns ocidentais perguntam: como vivem então os africanos? Como conseguem sobreviver no meio de toda esta miséria, corrupção e totalitarismo? E como não são dizimados pelos bichos que pululam nas selvas e nas savanas? Como sobrevivem ao avanço dos desertos? E a resposta da propaganda é simples: através da economia informal. Com este termo tudo fica resolvido. Somos, os africanos, uma cambada de indigentes, que para além da música e de uns toques na bola, temos olho para o negócio.

No actual momento histórico global, em que nas sociedades ocidentais os direitos cívicos e sociais e a liberdade individual são ameaçados, agredidos e o contracto social é rasgado, em que os cidadãos do Ocidente vêm-se espoliados da sua privacidade, colocados no desemprego, esventrados pela austeridade e erguem-se em luta pelos seus direitos conquistados em outras lutas de seculos, é altura de praticarmos - nós os cidadãos do mundo, os aldeões da utópica aldeia global em que nos querem encerrar - um acto de solidariedade activa e global: a de nos conhecermos e de nos identificarmos. Concluiremos, então, que as nossas lutas são comuns e que o mundo é de todos nós, os povos da humanidade. Descortinaremos, em conjunto, a realidade que sempre nos esconderam: que somos um só Povo e uma só Humanidade. E poderemos começar pelo Mali.   
   
Fontes
Castel, Antoni y Sendín, José Carlos (eds). Imaginar África. Los estereotipos occidentales sobre África y los africanos. Catarata. Madrid. (2009).
Latouche, Serge. La Otra África. Autogestión y apaño frente al mercado global Editorial Oozebap. Barcelona. (2007).
Rubio Rosendo, Moisés Un mosaico africano. Transforma lo que piensas y lo que sientes sobre África. Observatorio Internacional CIMAS. Madrid. (2013).

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