Rui Peralta, Luanda
(ver parte I do texto)
V - A guerra
transformou o Norte do Mali num estranho universo concentracionário, cujo
cenário dantesco é composto por histórias de lapidações, amputações, violações de
mulheres e crianças, fuzilamentos e enforcamentos, para além das torturas,
miséria, fome e mais de oitocentos mil desalojados. As siglas da guerra, aqui,
são diversas: MNLA, MUJAO, BOCORAM, AQMI, ANSARDINE, CEFAO, UA, U.E., USA,
ONU…Para além das siglas a guerra, no Mali, também tem vários nomes: França,
terrorismo, sharia, Ocidente…Os mercenários que são arrastados pela guerra, vêm
do Paquistão, do Iémen, do Afeganistão, de Marrocos, da Argélia, da Tunísia, da
Líbia, do Egipto, dos estados do golfo, da Bósnia, da Nigéria, da
França…Exceptuando os franceses que são os que vêm pela comunidade
internacional, os mercenários “antiterroristas”, os restantes mercenários são
todos “terroristas”.
O problema é que os
mercenários “antiterroristas”, que vão “implementar a paz” no Mali, são cada
vez mais e começaram, também eles a ter diversas proveniências: para além dos
dois mil e quinhentos franceses estão mais seis mil da CEFAO e da UA, e vão
chegar por aí uns doze mil, conhecidos por capacetes azuis, colocados pela ONU.
Fica, desta forma, o Mali uma terra esventrada, com os recursos expostos: uranio,
petróleo, gás, diamantes, algodão, ouro e bauxite, prontos para a
recolonização, que vai ter o nome de reconstrução, sob a égide paternal e do
olhar atento e austero do “pére français”, já não se realiza como um colono,
mas como um novo tipo de colono, um “amigo” que assumirá o “fardo” de levar a
cabo mais uma árdua tarefa de exploração, fertilizando o solo mártir africano,
com sangue mártir de africanos.
A nova táctica dos
neocolonialistas é o humanitarismo, que utiliza uma miríade de ONG, compostas
por voluntaristas, todos “altamente especializados”, que vão colocar o seu
saber ao serviço dos “desgraçados”, ensinar-lhes os princípios da “boa
governação” e do “empreendedorismo”, portadores da “meritocracia” e de outras
armadilhas do Ocidente a que chamam “valores ocidentais”. O novo colono já não
é portador do chicote e já não reside no território. Transita, sai e entra, faz
relatórios, tem o comportamento de funcionário da multinacional, mesmo que não
trabalhe em nenhuma e seja um empreiteiro. Tem várias faces e diversos rostos,
umas vezes veste a capa de expatriado, outras de humanitário, outras de
empresário ou de investidor estrangeiro.
VI - O Mali situa-se
numa zona estratégica para o Ocidente. Os franceses tentam a todo o custo
estabelecer uma base militar em Tessalit, no norte do país, para aumentar o seu
controlo sobre o Sahel, em coordenação com os seus parceiros da U.E e dos seus
aliados dos USA, todos mancomunados na NATO. Quando atacaram a Líbia, as testas
dos malianos franziram e os seus rostos demonstraram preocupação. Os laços
entre a Líbia e o Mali perdem-se na Historia, são compostos por rotas
comerciais, rotas de livros, rotas de culturas…Os tuaregues cruzavam as fronteiras,
repetindo os mesmos trilhos durante seculos. A guarda presidencial de Kadhafi
era composta, em mais de 80%, por tuaregues, berberes e árabes de origem
maliana. Não foi ao acaso que a União Africana (UA) escolheu para mediador do
conflito o presidente do Mali, Amadou Toumani Toure.
Após o assassinato
de Kadhafi, a 20 de Outubro de 2011, os tuaregues malianos que apoiavam a Líbia,
chegaram a um acordo com os franceses, o que lhes permitiu regressar, em
segurança, ao Mali. Saíram de Trípoli, atravessaram o Níger, sem ninguém os
desarmar, sob a protecção da França e retornaram ao Mali, entrando em Novembro
de 2011, onde os seus representantes foram recebidos oficialmente, no palácio
presidencial, recebendo apoio politico e 50 milhões de francos CFA (cerca de
cem mil USD).
Os ataques ao
exército maliano começaram em Janeiro de 2012 e um ano depois a revolta
tuaregue era generalizada e o Movimento Nacional de Libertação de Azawad
(MNLA), controlava algumas áreas a norte do país. Depois rapidamente a situação
descontrola-se e o MNLA ocupa Tombuctu, Gao e Kidal. Alguns dos ministros
tuaregues, que compõem o governo em Bamaco, fogem para Azawad. A aliança com os
franceses, não ofereceu apenas segurança, durante a retirada dos tuaregues de
Trípoli para Bamaco. Estes acordos permitiram aos tuaregues reivindicarem os
seus direitos históricos, muitas vezes esquecidos em Bamaco e sempre
relembrados através de revoltas acalmadas por promessas nunca cumpridas.
Com a revolta
tuaregue instalada no norte do Mali, os bandos fascistoides islâmicos
(activados na Líbia pela OTAN, uma velha história que provem desde os tempos da
guerra no Afeganistão, quando a CIA os criou para combater os soviéticos)
encontraram terreno fértil para a sua instalação. Quando o apoio da França aos
tuaregues terminou, por pressão dos USA, que viam os seus interesses no Sahel
ameaçados pela incógnita tuaregue, o MNLA perdeu a sua posição para os bandos
fascistas, enquanto um grupo de tuaregues apoiados pelos USA, o ANSARDINE (que
significa Luta pela Grandeza do Islão) ganha espaço e importância no terreno. O
ANSARDINE foi criado através das células residuais da CIA na Argélia, razão
pela qual muitos dos seus combatentes são de origem argelina.
Também os USA, tal
como a França e pelos mesmos motivos, pretendem criar uma base militar em
Tessalit, uma localidade do norte do Mali, na província de Kidal.
Os governos do Mali
nunca aceitaram as propostas norte-americanas e francesas para o
estabelecimento de bases militares em Tessalit e Sevare. Na instabilidade
politica de 1991, por exemplo - que levou á queda do presidente Moussa Traore -
para além dos factores internos e da dinâmica social e politica maliana, a
recusa do governo maliano em aceitar as bases militares, foi de peso, embora
secundário. Levou, pelo menos, a que franceses e norte-americanos assobiassem
para o ar, como se estivessem desatentos, enquanto Moussa Traore era deposto.
Em 2012, tal como
em 1991, os factores da dinâmica politica e social interna foram primordiais na
queda de Moussa Traore, mas foram os factores externos que permitiram os meios
necessários a que a revolta tuaregue conduzisse á queda de Amadou Toumani
Toure, em 22 de Março de 2012, substituído no poder por uma Junta Militar, que
se propunha organizar as Forças Armadas e restruturar o Estado, com objectivos
que levariam ao reforço da soberania popular e nacional. Perante o golpe de
estado militar, a CEDAO impõe o bloqueio politico e económico e a Junta Militar
acaba por ceder, abandonando o seu programa inicial, patriótico, sucumbindo às
pressões. Ficaram, assim, adiadas, uma vez mais, as reformas necessárias para
que o Mali reforçasse a soberania popular e nacional, restruturando as
instituições, o aparelho de estado e implementasse mecanismos democráticos e
participativos.
A importância de
uma base militar no Mali é enorme, no cenário geopolítico do Sahel. A posição
do Mali é de extrema importância, a começar pelas suas fronteiras com sete
países: Costa do Marfim, Burkina Faso, Argélia, Senegal, Mauritânia, Níger e
Guiné-Conacri. A potência que ali instalar a sua base fica com um papel
preponderante no Magreb e na África Ocidental. Se a esse factor geopolítico
forem associados os factores geoeconómicos (o controlo dos recursos malianos,
por exemplo) compreenderemos melhor a necessidade do Ocidente em criar
instabilidade no Mali e porque é que armas da NATO andam nas mãos dos bandos
fascistoides.
A ocupação do Mali inicia-se
com a destruição da Líbia. A Líbia e o Mali eram países que compartilhavam uma
visão da Unidade Africana e da integração do continente, até por razões e
condicionantes históricas e culturais. O Mali foi uma nação que sentiu a
necessidade de integração desde o início da sua independência, não só porque
historicamente sempre esteve integrado, através de várias foras políticas, com
os seus vizinhos, como nos primeiros anos da independência política, viveu
federado com o Senegal. A ruptura dessa federação criou imensas dificuldades á
nação maliana, um país interior, sem acesso ao mar e completamente dependente
dos acordos com os seus vizinhos, para exportar e importar mercadorias. Cedo os
malianos aprenderam o valor da integração económica e da sua importância para o
desenvolvimento.
Mas tudo começa com
a Primavera Árabe, uma ferramenta indispensável para redesenhar mapas. Também
nas Primaveras os factores determinantes foram os factores centrífugos da dinâmica
social e politica interna de cada um dos países onde ocorreram mas também aí
foram os factores externos (o cumprimento dos objectivos geopolíticos e
geoeconómicos do ocidente) que permitiram às forças surgidas dessa dinâmica a
sua emersão e ascensão ao poder. O objectivo das Primaveras, no Magreb, atingiu
a segunda fase com a destruição da Líbia. As movimentações na Tunísia e no Egipto
- necessárias, porque as respectivas válvulas de pressão já não aguentavam mais
- serviram perfeitamente os objectivos do Ocidente, que ficaram desta forma em
posição de cercar e eliminar o principal obstáculo em África e na Liga Árabe: a
Líbia.
Por isso enquanto
Ben Ali, na Tunísia e Mubarak no Egipto foram aprisionados e julgados, Kadhafi
foi assassinado. Esta é uma estratégia que “apaga” os países considerados “inimigos”,
tal como acontece hoje com a Síria e qua já foi ensaiada e optimizada dezena de
vezes. Lembram-se do Ceaucescu, o sapateiro rezingão e esclerótico de
Bucareste? Foi executado com a Roménia posta a ferro e fogo. Saddam Hussein, no
Iraque, a mesma situação. Estas execuções são um salto qualitativo nas
estratégias de domínio.
E são as novas
estratégias de domínio, que escondem á opinião pública ocidental, as realidades
das sociedades e da política africana e árabe. A comunicação social europeia,
por exemplo, segue a preceito o cenário do coitadinho africano, vítima de
regimes corruptos e do árabe terrorista, que queima as bandeiras dos países “civilizados”
e bate nas mulheres, que andam todas tapadas. Esta imagem é essencial, para que
as elites europeias prossigam as suas políticas de rapina de recursos, sem que
a opinião pública europeia se interrogue sobre o que andam a fazer os seus
líderes em matéria de política externa.
Os cidadãos
europeus desconheciam que na Líbia a educação era pública e gratuita, assim
como a saúde, que a electricidade era gratuita e que o combustível era barato,
para que a alimentação também o fosse. Desconheciam por completo a política
social do governo Líbio e apenas conheciam os fenómenos de corrupção e as
diatribes de Kadhafi, Nunca tiveram a percepção da importância que a Líbia
tinha para os países vizinhos, nem estavam a par do papel da Líbia na União
Africana.
A Líbia era um
exemplo de soberania, perigoso para o Ocidente. E isso as elites ocidentais não
perdoam.
VII - Em 1991,
Demba Diallo - pan-africanista convicto e um dos participantes na fundação da
OUA, em Adis Abeba – juntou-se a outros patriotas malianos na fundação da União
da Forças Democráticas (UFD), criada na clandestinidade, durante a vigência da
ditadura de Moussa Traore e sobreviveu às convulsões que assolaram, entretanto
o Mali. Apresenta-se às eleições do próximo dia 7 de Julho, inserida numa
coligação de 12 partidos políticos, associações civis, sindicais, camponesas e
culturais.
A UFD representa um
projecto político assente no reforço da soberania popular e da participação
cidadã e procura apoios na Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba e Brasil, países
recentemente visitados pelas suas delegações, considerados pela UFD, exemplos
de transformação (A ligação da UFD á América Latina é profunda. Muitos dos seus
militantes estudaram em Cuba e a UFD sempre seguiu com atenção o processo
bolivariano, que inclusive é mencionado na apresentação das suas bases
programáticas).
A existência de
forças políticas democráticas, independentemente dos sectores que representem
ou das divergências que sustentam, é de importância vital para a sociedade
maliana, que apresenta os piores sintomas de destruturação e degradação. A
busca de soluções, a participação dos cidadãos nos destinos do país, são os
elementos fundamentais de reconstrução do país e o encetar de uma via de
progresso e desenvolvimento social.
As soluções não
passam pelos técnicos perfumados e bem-falantes do FMI, do Banco Mundial ou das
falsas intenções dos humanitaristas de ocasião. As soluções passam por
projectos políticos democráticos, que assegurem a execução da soberania popular
e reforcem a soberania nacional, para que o Mali possa ser integrado nos fóruns
mundiais, na economia-mundo e nas instancias globais, não como um pedinte, mas
como um contribuinte, não como uma nação periférica, mas como uma nação
independente, consciente da sua periferia e do seu papel na sendo do
desenvolvimento.
VIII - As imagens de
África divulgadas pela propaganda das elites ocidentais, nas suas sociedades
apresentam uma África do horror, um continente onde estão generalizados
factores como a fome, a corrupção, as epidemias, o totalitarismo, a violência,
etc. Gostam, particularmente, da imagem de uma África atrasada, onde reina a
selvajaria bárbara e a ignorância, o fanatismo religioso e a submissão da
mulher, ao mesmo tempo que é a África dos recursos, o continente rico em
matérias-primas naturais, mão-de-obra barata e jovem. Nas horas vagas a predileção
dos fazedores de opinião é falarem sobre uma África condenada, onde as pessoas
não têm vontade de mudar e de progredir. Depois para distrais as mentes, vem a
África da natureza, a África diversão, a África National Geographique, a África
do Rei de Espanha, cheia de mistérios, perigos, aventuras, paisagens únicas e
deslumbrantes, tribos exóticas e bichos para caçar.
Servem estas
imagens para ignorar a África real, a África Futuro, aquela que constrói o
futuro no presente inóspito, aquela que dá dois pequenos passos em frente e um
bem grande para trás, mas que teima, sempre, em avançar e avança pela
tenacidade dos seus cidadãos. Através destas imagens o Ocidente ignora que
Africa é um continente onde coexistem cinco grandes regiões, treze
ecossistemas, cinquenta e quatro países, mais de seiscentas etnias, mil e
setecentas línguas, uma multiplicidade de sistemas religiosos, políticos,
sociais, económicos e culturais, um mosaico….
Esta realidade
africana, que os meios de comunicação ocidentais, as ONG, as instituições
públicas e privadas, escondem, escamoteiam, omitem e iludem, manipulam através
das imagens, não pode nunca chegar ao conhecimento dos eleitores ocidentais.
Neste sentido o neocolonialismo actual segue as pisadas do colonialismo, que
sempre iludiu e manipulou os europeus, através da miragem africana, de figuras
como a árvore das patacas, do continente negro e outras patranhas obscuras.
Desta forma,
através destas imagens deturpadas e manipuladas, justifica-se tudo: a exploração
dos recursos alheios, actualmente escondida sob a capa da “necessidade de
ajudar os africanos” (sempre essa do “estamos aqui para ajudar”, uma típica
demonstração do etnocentrismo ocidental, que sempre carregou esse “fardo”) e a
necessidade histórica de converter (seja aos desígnio de deus, seja, aos mais
racionalistas desígnios da actualidade, os do mercado). A “cooperação para o
desenvolvimento” assume o papel de uma “missão laica” para difusão da ciência,
da civilização, da democracia, dos direitos humanos, do crescimento sustentado,
etc., tudo incluído numa acção missionária e evangelizadora, cujo evangelho é
baseado nos mandamentos do mercado e que nos salvará a todos - pretos, brancos
e mestiços, cristãos, ateus, animistas e muçulmanos - da barbárie.
Claro que alguns
ocidentais perguntam: como vivem então os africanos? Como conseguem sobreviver
no meio de toda esta miséria, corrupção e totalitarismo? E como não são
dizimados pelos bichos que pululam nas selvas e nas savanas? Como sobrevivem ao
avanço dos desertos? E a resposta da propaganda é simples: através da economia
informal. Com este termo tudo fica resolvido. Somos, os africanos, uma cambada
de indigentes, que para além da música e de uns toques na bola, temos olho para
o negócio.
No actual momento
histórico global, em que nas sociedades ocidentais os direitos cívicos e
sociais e a liberdade individual são ameaçados, agredidos e o contracto social
é rasgado, em que os cidadãos do Ocidente vêm-se espoliados da sua privacidade,
colocados no desemprego, esventrados pela austeridade e erguem-se em luta pelos
seus direitos conquistados em outras lutas de seculos, é altura de praticarmos
- nós os cidadãos do mundo, os aldeões da utópica aldeia global em que nos
querem encerrar - um acto de solidariedade activa e global: a de nos
conhecermos e de nos identificarmos. Concluiremos, então, que as nossas lutas
são comuns e que o mundo é de todos nós, os povos da humanidade.
Descortinaremos, em conjunto, a realidade que sempre nos esconderam: que somos
um só Povo e uma só Humanidade. E poderemos começar pelo Mali.
Fontes
Castel, Antoni y
Sendín, José Carlos (eds). Imaginar África. Los estereotipos occidentales sobre África y los africanos. Catarata. Madrid.
(2009).
Latouche, Serge. La
Otra África. Autogestión y apaño frente al mercado global Editorial Oozebap. Barcelona.
(2007).
Rubio Rosendo,
Moisés Un mosaico africano. Transforma lo que piensas y lo que sientes sobre
África. Observatorio Internacional CIMAS. Madrid. (2013).
Rufanges, Jordi
Calvo http://www.diagonalperiodico.net/global/papel-espana-la-guerra-mali.html
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