José Neves – Jornali, opinião
Sei bem que existem
vários liberalismos e até diferentes neoliberalismos e que é demasiado gratuito
acusar simplesmente o liberalismo do mal que vivemos
São por estes dias
muitos os que à esquerda manifestam simpatia por José Pacheco Pereira. Também
partilho dessa simpatia. Dito isto, há um problema nos comentários de JPP em
torno da crise. Se por um lado desmonta - e por vezes de fio a pavio - o
argumentário apresentado pelo governo, por outro tende a querer salvaguardar os
fundamentos liberais que participam desse mesmo argumentário.
Não me custa
aceitar que por razões tácticas e até emocionais JPP argumente não ser ele que
está em processo de esquerdização mas sim o governo que está a direitizar o
PSD. Mas este argumento contém uma ilusão, a de que a solução passa por
simplesmente acabar com "este" PSD e "este" liberalismo
para regressar à "essência" social-democrata e à pureza da
"ideia" liberal. Trata-se de uma ilusão porque, se este governo se
tem desviado da política de anteriores governos portugueses, tais desvios não
configuram qualquer espécie de "traição". E, na verdade, quando
olhamos para a cultura política que tem inspirado as políticas económicas
seguidas na Europa como em Portugal nas últimas décadas, só em parte este governo
pode ser considerado uma anomalia.
Entendam-me bem,
por favor: congratulo-me por JPP, olhando-se ao espelho e nele encontrando
reflectida a imagem deste governo, não gostar da imagem que lhe é dada a ver e,
mais ainda, como já aqui sublinhei uma vez, a sua crítica ao governo é um
exemplo de coerência em relação ao qual muito devem figuras como António Costa
e António José Seguro - JPP não esperou confortavelmente o timing certo e, com
um sentido de urgência à altura dos tempos que correm, criou esse próprio timing;
e, no entanto, a crise actual é demasiado profunda para que um liberal possa
simplesmente criticar os "excessos" do liberalismo e assim evitar -
voluntariamente ou não - uma reflexão de fundo em torno da própria ideia
liberal.
Sei bem que existem
vários liberalismos e até diferentes neoliberalismos e que portanto é demasiado
gratuito acusar simplesmente o liberalismo do mal que vivemos. Mas, diferenças
à parte, nas últimas décadas, dirigentes políticos tão diversos como Sá
Carneiro, Mário Soares, Cavaco Silva, José Sócrates, Passos Coelho e Paulo
Portas convergiram no dogma segundo o qual o liberalismo é um programa integral
que contempla uma parte política, traduzida em liberdades civis e políticas, e
uma parte económica, traduzida na defesa da propriedade privada e no livre
comércio, esta afirmando-se como condição daquela. E se existem diferenças
significativas entre a esquerda liberal de que JPP se reclamava no início dos
anos 80 e o nacional-liberalismo de um projecto como "O
Independente", não são só diferenças que existem e não são apenas elas que
são significativas.
Não estou a pedir,
sublinhe-se, que um liberal de hoje simplesmente renegue o liberalismo, que
deite fora o menino junto com a água do banho e passe a considerar o
liberalismo uma espécie de mal da juventude, um delírio próprio dos anos 80 ou
do tempo da Guerra Fria. Mas, se piruetas deste género não são recomendáveis, é
já preciso algo mais do que simplesmente bater forte e feio em Coelho e Gaspar.
Talvez a história
recente da esquerda chamada radical possa ajudar ao debate. Da queda do Muro de
Berlim em diante, uma boa parte dessa esquerda renegou simplesmente às ideias
socialistas e comunistas e à tradição revolucionária, mas outra parte procurou
reinventar essas mesmas ideias e essa mesma tradição. Fê-lo repudiando certos
elementos do seu passado e revalorizando outros. Por exemplo, repudiou a
propensão centralista e hierárquica da sua organização política, manifesta
tanto na forma do partido de vanguarda como na forma do Estado socialista; e se
este repúdio foi em alguns casos o primeiro passo para aderir a uma concepção
insuportavelmente individualista da política, noutros casos levou a que se
insistisse na valorização de uma marca libertária do passado das esquerdas,
marca esta entendida em termos sociais e colectivos e não apenas nos termos
individualistas que dessa marca são também próprios. Destas novas esquerdas
(que se pode dizer serem tão velhas como o 68 italiano ou a Comuna de Paris)
chega-nos hoje a proposta para que digamos a liberdade em comum e não em
concorrência. É, suponho, um desígnio de que poderá aproximar-se um liberal
preocupado seja com os "excessos" seja com a "essência"
individualista do liberalismo.
Historiador - Escreve
quinzenalmente à quinta-feira
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