quinta-feira, 6 de junho de 2013

Portugal: REAPRENDER A DIZER LIBERDADE

 

José Neves – Jornali, opinião
 
Sei bem que existem vários liberalismos e até diferentes neoliberalismos e que é demasiado gratuito acusar simplesmente o liberalismo do mal que vivemos
 
São por estes dias muitos os que à esquerda manifestam simpatia por José Pacheco Pereira. Também partilho dessa simpatia. Dito isto, há um problema nos comentários de JPP em torno da crise. Se por um lado desmonta - e por vezes de fio a pavio - o argumentário apresentado pelo governo, por outro tende a querer salvaguardar os fundamentos liberais que participam desse mesmo argumentário.
 
Não me custa aceitar que por razões tácticas e até emocionais JPP argumente não ser ele que está em processo de esquerdização mas sim o governo que está a direitizar o PSD. Mas este argumento contém uma ilusão, a de que a solução passa por simplesmente acabar com "este" PSD e "este" liberalismo para regressar à "essência" social-democrata e à pureza da "ideia" liberal. Trata-se de uma ilusão porque, se este governo se tem desviado da política de anteriores governos portugueses, tais desvios não configuram qualquer espécie de "traição". E, na verdade, quando olhamos para a cultura política que tem inspirado as políticas económicas seguidas na Europa como em Portugal nas últimas décadas, só em parte este governo pode ser considerado uma anomalia.
 
Entendam-me bem, por favor: congratulo-me por JPP, olhando-se ao espelho e nele encontrando reflectida a imagem deste governo, não gostar da imagem que lhe é dada a ver e, mais ainda, como já aqui sublinhei uma vez, a sua crítica ao governo é um exemplo de coerência em relação ao qual muito devem figuras como António Costa e António José Seguro - JPP não esperou confortavelmente o timing certo e, com um sentido de urgência à altura dos tempos que correm, criou esse próprio timing; e, no entanto, a crise actual é demasiado profunda para que um liberal possa simplesmente criticar os "excessos" do liberalismo e assim evitar - voluntariamente ou não - uma reflexão de fundo em torno da própria ideia liberal.
 
Sei bem que existem vários liberalismos e até diferentes neoliberalismos e que portanto é demasiado gratuito acusar simplesmente o liberalismo do mal que vivemos. Mas, diferenças à parte, nas últimas décadas, dirigentes políticos tão diversos como Sá Carneiro, Mário Soares, Cavaco Silva, José Sócrates, Passos Coelho e Paulo Portas convergiram no dogma segundo o qual o liberalismo é um programa integral que contempla uma parte política, traduzida em liberdades civis e políticas, e uma parte económica, traduzida na defesa da propriedade privada e no livre comércio, esta afirmando-se como condição daquela. E se existem diferenças significativas entre a esquerda liberal de que JPP se reclamava no início dos anos 80 e o nacional-liberalismo de um projecto como "O Independente", não são só diferenças que existem e não são apenas elas que são significativas.
 
Não estou a pedir, sublinhe-se, que um liberal de hoje simplesmente renegue o liberalismo, que deite fora o menino junto com a água do banho e passe a considerar o liberalismo uma espécie de mal da juventude, um delírio próprio dos anos 80 ou do tempo da Guerra Fria. Mas, se piruetas deste género não são recomendáveis, é já preciso algo mais do que simplesmente bater forte e feio em Coelho e Gaspar.
 
Talvez a história recente da esquerda chamada radical possa ajudar ao debate. Da queda do Muro de Berlim em diante, uma boa parte dessa esquerda renegou simplesmente às ideias socialistas e comunistas e à tradição revolucionária, mas outra parte procurou reinventar essas mesmas ideias e essa mesma tradição. Fê-lo repudiando certos elementos do seu passado e revalorizando outros. Por exemplo, repudiou a propensão centralista e hierárquica da sua organização política, manifesta tanto na forma do partido de vanguarda como na forma do Estado socialista; e se este repúdio foi em alguns casos o primeiro passo para aderir a uma concepção insuportavelmente individualista da política, noutros casos levou a que se insistisse na valorização de uma marca libertária do passado das esquerdas, marca esta entendida em termos sociais e colectivos e não apenas nos termos individualistas que dessa marca são também próprios. Destas novas esquerdas (que se pode dizer serem tão velhas como o 68 italiano ou a Comuna de Paris) chega-nos hoje a proposta para que digamos a liberdade em comum e não em concorrência. É, suponho, um desígnio de que poderá aproximar-se um liberal preocupado seja com os "excessos" seja com a "essência" individualista do liberalismo.
 
Historiador - Escreve quinzenalmente à quinta-feira
 

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