terça-feira, 16 de julho de 2013

A SAGA AMERICANA – PARTE 3. O AVIÃO DO PRESIDENTE (conclusão)



Rui Peralta, Luanda

XI - A situação a que foi submetido o Presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Evo Morales, por parte da U.E. (em particular dos governos da França, Portugal, Itália e Espanha), constitui um acto insólito, inamistoso e hostil, configurando um facto ilícito que afecta a liberdade de trânsito e deslocação de um Chefe de Estado e sua delegação oficial. Este acto é revelador de duas atitudes marcantes que caraterizam a situação politica actual: revela as práticas neocoloniais que persistem nas políticas externas dos países do centro (periferia é sempre colónia, centro é sempre colonizador) e revela os atentados que diariamente são realizados contra a livre circulação de pessoas (o direito de viajar, a criminalização da emigração, a dificuldade em alguns países para obter passaporte, etc.).

A flagrante violação dos Tratados Internacionais que regem a convivência pacífica, solidariedade e cooperação entre os Estados, foi realizada de uma forma banal, como se fosse uma relação entre metrópole e província ultramarina, em que os senhores interpelam com altivez o representante indígena, o autóctone, o aborígene. A falta de transparência sobre as motivações das decisões políticas que impediram o trânsito aéreo do avião presidencial boliviano e o agravo sofrido pelo presidente Evo Morales, que ofende não só o povo boliviano, em particular, as nações sul-americanas, em grupo e todos os Estados da denominada periferia, em geral, são a consequência das práticas ilegais de espionagem, mecanismos ilegais, contrários às Constituições dos Estados que a praticam, às convenções internacionais e aos direitos humanos e que põem em risco os direitos cidadãos e a convivência amistosa entre povos e nações.

Perante o ocorrido com o avião presidencial da Bolívia, a União das Nações Sul-Americanas (UNASUR), em reunião extraordinária realizada na cidade de Cochabamba, na Bolívia, redigiu a Declaração de Cochabamba, subscrita no dia 4 de Julho de 2013 pelos presidentes, delegados presidenciais e embaixadores presentes na reunião. A Declaração de Cochabamba é uma denúncia, endereçada á comunidade internacional e aos diversos organismos multilaterais, que realça a importância das soberanias populares e do respeito pela soberania nacional, exigindo o fim da ingerência dos centros hegemónicos mundiais, superando a lógica dos países de primeira, segunda e terceira classe.
  
A inaceitável restrição à liberdade do Presidente Evo Morales é um perigoso precedente em matéria do direito internacional, uma violação das normas e dos princípios básicos do direito internacional. França, Portugal, Itália e Espanha deverão explicar, de forma clara, as razões que conduziram á decisão de impedir o sobrevoo do avião presidencial do Estado Plurinacional da Bolívia pelo seu espaço aéreo e de igual forma devem apresentar as desculpas públicas. O Estado Plurinacional da Bolívia apresentou queixa ao Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, pela grave violação de Direitos Humanos, que colocou em perigo de vida o Presidente Evo Morales. Foi, também, formada uma Comissão de Acompanhamento deste processo, no âmbito da UNASUR.

XII - A histeria em torno do caso Snowden esteve, aparentemente, na origem deste grave incidente diplomático, ocorrido quando o presidente Evo Morales regressava da Rússia, onde foi assistir a uma reunião de países produtores de gás. Desde 1945 que nenhuma nação do mundo tinha impedido um avião presidencial de sobrevoar o seu território, ou seja a Ordem Internacional estabelecida no período pós II Guerra Mundial, nunca quebrou o seu respeito perante este procedimento. Mas a nova Ordem é tão caótica como Wall Street nos períodos de efervescência máxima dos movimentos bolsistas.

O governo francês cobriu a França de ridículo, dando uma imagem de servilidade perante os seus parceiros maioritários de Washington. O Eliseu curvou-se perante a Casa Branca, mesmo contra os seus interesses e de nada valeu Hollande ter feito voz grossa, quando as revelações de Snowden permitiram descobrir que afinal o sócio maioritário espia os accionistas menores. Serviçal e traído, como nos dramas de faca e alguidar, em que o esposo solícito descobre, afinal, ser corno.

Itália, Espanha e Portugal, foram outros que seguiram as orientações de Washington, tendo a Espanha, inclusive, exigido inspecionar o avião presidencial (são os arquétipos da colonialidade, já demonstrados quando o rei caçador de elefantes mandou calar Hugo Chavez). Quanto a Portugal, o ministro demissionário dos negócios estrangeiros do governo a prazo (ministro conhecido por entrar pelas mesmas portas por onde saiu) explicou que não se teria passado nada e que era tudo um equívoco. Da Itália nada se ouve, nem os tenores, nem os sopranos, ficando os cantores com uma laringite súbita.

UNASUR, ALBA, OEA, denunciaram em uníssono a “agressão grosseira, brutal, inadequada” como Nicolas Maduro, presidente da Venezuela, designou os acontecimentos. "¡Nuestra América no puede tolerar tanto abuso" avisou Rafael Correa, presidente do Equador. A Nicaragua denuncio a "acción criminal y bárbara", enquanto Havana fustigava o “acto inadmisible, infundado y arbitrario que ofende a toda la América Latina y el Caribe". Para a Presidente argentina "están todos locos. El Jefe de Estado y su avión tienen inmunidad total. No puede ser este grado de impunidad".

O que a U.E. deveria fazer, se tivesse uma política externa independente da de Washington e uma agenda política própria, europeia, seria albergar o homem que lhe permitiu descobrir que era vítima de espionagem, em sinal de reconhecimento, em vez de procurar por todos os meios entregar Snowden aos USA e ao “soba” Obama. Ou será que as elites europeias sofrem do mesmo sintoma que emplastra as elites africanas e deslumbram-se com as doçarias com que o amo agracia os fiéis amigos…

XIII - Já todos nos acostumámos aos cenários montados, que justificaram a guerra fria, a queda do muro, a implosão do socialismo real, as agressões ao Iraque, a luta contra o terrorismo (sempre financiado pelos que a conduzem, parecendo aquela história do policia de giro que vê o ladrão a roubar na rua, mas nada faz, porque se não fossem os ladrões, não haveria policias e ele estaria desempregado). Já todos nos habituámos á conversa das revoluções de veludo, de laranja e das Primaveras. Estamos habituados aos dramas como os da Líbia e da Síria, que tentam destruir povos e recortar mapas e linhas fronteiriças. Já sabemos, muito bem, que esta é uma guerra contra todos nós, os que pertencemos aos 99% porque não procuramos o sucesso para chegar ao 1%.

Somos canalhas, preguiçosos e indigentes e andamos sempre a girar em torno de um eixo maléfico. Não poupamos, não gostamos de trabalhar e não temos norte na vida. Só temos sul na alma e sangue tórrido nas veias. Sabemos isso de cor e salteado. Foi uma lengalenga que ouvimos durante cinco séculos, em que a noite foi escura como o breu e o sol era claro como uma bola de neve.

Esta guerra constante, feita de intervenções contínuas, agressões, ameaças, invasões e humilhações é uma história triste e sempre inacabada, de uma infinita colonialidade. Este episódio com o avião de Morales é apenas mais um, que sucedeu á ameaça velada que os USA fizeram ao Equador, quando este país pensou em dar abrigo a Snowden, uma ameaça sugerida nas entrelinhas, que falou em consequências económicas.

Mas o que é que mais incomoda as elites do centro do sistema-mundo, quando se fala em livre informação, livre publicação e livre acesso ao conhecimento? Que se evidenciem os actos de rapina a que sujeitam as periferias do sistema-mundo? Que se proclamem direitos internacionais, individuais e sociais? Que se dê voz á soberania popular e se quebre o feitiço da representatividade e do voto de quatro em quatro anos? Que os mecanismos democráticos tornem-se efectivos e participativos? Que caia o véu do segredo de estado e que a queda do véu revele que, afinal, os segredos do estado eram apenas segredos de negócios e negócios em segredo? Ou que a queda do véu revele que sem segredo não há domínio e que o objectivo é desregulamentar o segredo de estado e torná-lo num medievo e inquisitorial Estado do Segredo?

É que o PRISM, o programa de vigilância mundial dos USA que Snowden revelou, é um atentado aos segredos de todos nós, cidadãos de todo o mundo e aos segredos dos outros Estados. Porque também os Estados são vigiados e têm a sua informação violada. O PRISM viola a privacidade e os direitos civis e políticos dos cidadãos e a segurança dos Estados. Este descomunal projecto de controlo e vigilância converte o mundo em campo de concentração. Não é mais do que um estado de emergência permanente e de mobilização total.

O que aconteceu com o presidente Evo Morales não é casual, nem foi devido somente á suspeita de que Snowden ia no avião presidencial, protegido pela imunidade diplomática. O que se passou foi uma amostra do estado de guerra permanente em que o centro se encontra. São pequenos balões de ensaio, anotados e analisados, preparando o grande teste final que implantará a Grande Colónia…Penal.

XIV - Também pode ser considerado que o ocorrido com o avião presidencial boliviano foi um acto de pirataria aérea, como mencionou o vice-presidente da Bolívia, Garcia Linera. Evo Morales foi detido durante 13 horas, sequestrado em Viena. Mas é assim que a Nova Ordem Internacional trata os “aborígenes”. Em Espanha, cujo governo queria revistar o avião presidencial da Bolívia, os imigrantes indocumentados vivem completamente desprotegidos, sem acesso ao sistema de saúde, completamente á margem do que é proclamado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Morales é tão desrespeitado, por Espanha, quanto o foi Hugo Chavez, mandado calar pelo rei da Espanha neocolonial (mas com a mesma velha e caduca escumalha de condes e condessas, barões e baronesas, marqueses e marquesas, duques e duquesas, de sempre) e quanto o são os 873 mil imigrantes “ilegais” a que o Estado espanhol retirou o cartão de saúde. A desculpa oficial do governo espanhol é a habitual: “evitar a fraude na obtenção do cartão de saúde”. A realidade? Condenar 873 mil almas á doença e á morte, com a mesma displicência com que colocaram em risco a vida de Morales e sempre com a formal desculpa “técnica” por detrás.

O decreto que condena os imigrantes indocumentados á doença é denominado Real Decreto. Real, no sentido de realeza, como o rei que mandou calar Chavez, enquanto o que colocou Morales em risco, foi presidencial…dos USA (afinal o rei é suserano e não soberano)! Mas a suserania é só em relação á Casa Branca, ao presidente do grande, imenso e vasto Imperial Conselho de Administração, porque no que toca aos “aborígenes” o rei é soberano absoluto - não fosse ele o grande caçador branco, que vai matar elefantes a África, continente de onde provêm grande parte dos indocumentados – sejam os “aborígenes” pés descalços ou presidentes.

XV - O artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos do Homem diz que “em caso de perseguição, toda a pessoa tem o direito de procurar asilo e de disfrutar dele em qualquer país”. A máquina de propaganda globalizada tenta passar a mensagem (reforçada pelos “especialistas” e “opinionmeiqueres” e “alcachofas” do Direito, de várias latitudes) de que Snowden está a escapar a um sistema judicial, escamoteando o facto de se estar na presença de uma perseguição, de um encarceramento predeterminado, de um sistema que mantem em Guantánamo mortos-vivos e que julga o soldado Bradley Manning como se fosse criminoso de guerra e não um cidadão que agiu segundo a sua consciência e de acordo com o quadro constitucional. 
        
Enquanto Morales esteve retido no avião, um drone norte-americano assassinou 16 pessoas no Norte do Paquistão. É este gangsterismo que toma conta do Ocidente, de forma sistemática. Mata-se aqui, aprisiona-se ali, retém-se acolá, criam-se teias de mentiras, vigarices, burlas, inventam-se cenários e engana-se o mundo, que acaba por enganar-se a ele próprio. As brutalidades sistemáticas cometidas pelo socialismo real foram conhecidas por todos, no Ocidente. Eram diariamente falados e discutidos, os crimes cometidos no Leste e as aberrações do sistema eram colocados a nu. Mas os crimes do Ocidente (em particular os do USA) são apenas superficialmente abordados, de forma vaga, confundidos com “danos colaterais”, não sendo reconhecidos a maioria dos actos criminosos praticados pela “santidade democrática do Ocidente”.

O Der Spiegel descreveu a administração Obama de “totalitarismo suave”…Bom, o conceito de suavidade do Der Spiegel será provavelmente baseado na “insustentável leveza do voo dos drones” e na suavidade com que cruzam os céus, mas não com a real natureza do regime norte-americano após o golpe institucional do 11 de Setembro de 2001… Além do mais seria bom que o Der Spiegel analisasse a “suavidade” de Merkel. Porquê ir tão longe, ao outro lado do oceano, se em casa o remedio é o mesmo …
      
Estamos perante uma estratégia de domínio de amplo espectro, alicerçada sobre o melhor da Doutrina de Segurança Nacional da década de 60 e 70 do século passado e das guerras de intensidade variável da década de 80. O mundo foi convertido em teatro de operações de uma guerra de longo prazo, umas vezes secreta, outras notada e às vezes declarada. Este foi um conceito que ganhou configuração na Cimeira da NATO, em Novembro de 2010, com a formulação do Novo Conceito Estratégico, que permite a intervenção do Ocidente em qualquer parte do mundo, seja qual for o motivo. Foi este o conceito que levou á detenção de Morales e á perseguição sobre Snowden.

Evo Morales assinalou que todos estes acontecimentos foram usados para enviar uma mensagem aos povos e governos que levantam bem alto as bandeiras da independência e da soberania popular. O sequestro do “indígena” foi mais um balão de ensaio e simultaneamente uma forma encoberta de pressionar os governos “canalhas” da América Latina e de reduzir a crescente influencia da UNASUR, da ALBA e da CELAC. Não foi por acaso que, os presidentes ausentes da reunião extraordinária da UNASUR - salvo a presidente Dilma Roussef, a braços com uma crise politica e social no Brasil – são responsáveis dos países latino-americanos que assinaram contractos de Comercio Livre com os USA e formam parte do projecto da Aliança do Pacifico.

As acções de agressão são constantes. Este mês o Der Spiegel publicou um artigo que refere uma operação de recolha de informações e de dados, em massa e indiscriminada, levada a cabo pela NSA na rede de comunicações eletrónicas alemãs e o jornalista Glenn Greenwald reportou no jornal brasileiro O Globo as operações sistemáticas da NSA na rede de telecomunicações do Brasil, interceptando e armazenando correio eletrónico e chamadas telefónicas de milhões de Brasileiros, informação que foi cedida por Snowden, que se encontrou com o jornalista quando ainda estava em Hong Kong.
   
Estas acções percorrem toda a América Latina, periodicamente. Argentina, Uruguai, Peru, Colômbia, Venezuela e México, são constantemente “visitados” pelo NSA. O New York Times reporta: "In more than a dozen classified rulings, the nation’s surveillance court has created a secret body of law giving the National Security Agency the power to amass vast collections of data on Americans while pursuing not only terrorism suspects, but also people possibly involved in nuclear proliferation, espionage and cyberattacks, officials say." (Ver http://www.nytimes.com/2013/07/07/us/in-secret-court-vastly-broadens-powers-of-nsa.html). Concluímos, então, que todos somos suspeitos, pois todos nós poderemos estar envolvidos em qualquer uma das actividades mencionadas. E como já não é a culpa que tem de ser provada, mas a inocência, estamos todos metidos numa camisa-de-onze-varas.
   
E assim a violação do direito de confidencialidade e de privacidade dos cidadãos (todos, porque “possivelmente” estarão envolvidos, ou “possivelmente” sabem de qualquer coisa ou de quem sabe) e dos “Estados Canalhas” torna-se prática comum, conforme descobriu o embaixador equatoriano em Londres ao descobrir um microfone na sala da embaixada onde recebe os seus convidados e onde esteve a conferenciar, recentemente com o ministro das relações Exteriores do seu país, Ricardo Patiño, que foi a Londres encontrar-se com o seu homólogo britânico, William Hague, para discutir, entre outros assuntos o artigo 14 da Declaração Internacional dos Direitos Humanos, no caso concreto de Assange.
Mas para o Ocidente tudo serve, quando se trata de calar os seus dissidentes. Até reter presidentes, á boa maneira dos “cowboys” que atavam, de pés e mãos, os índios selvagens…É o fardo do “civilizador”!

Fontes
Guerra Cabrera, Ángel El secuestro de Evo y el servilismo ante Washington. http://www.rebelion.org/noticia.php?id=170652
Lamrani, Salim The Economic War Against Cuba. A Historical and Legal Perspective on the U.S. Blockade, New York, MonthlyReview Press, 2013


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